Carlos Nougué
Nota prévia. A partir deste artigo, não raro invocarei nesta série, dialogicamente, o referido texto de Tomás Melendo, Entre moderno y postmoderno. E o farei, antes de tudo, porque também para esse autor o Cogito cartesiano indica o que venho dizendo desde o início: que o pensar é a causa do ser – por incrível que pareça não só aos formuladores de certas objeções, mas ao comum dos homens, porque de fato, como diz Tomás Melendo, “a afirmação [de Descartes] se opõe ao são senso comum e ao conjunto da filosofia pré ou extracartesiana”. Mas Melendo também é muito importante para os objetivos desta série exatamente porque é de todo insuspeito: o seu fim é antípoda do nosso. Com efeito, enquanto o nosso objetivo é, não só nesta série, mas neste blog como um todo, mostrar que o mundo surgido das ruínas da civilização cristã é resultante de uma espécie de pensamento mágico que, entendendo a liberdade humana como liberdade de consciência, não só a eleva à categoria de transcendental, mas a entroniza onde antes se sentava, absolutamente reinante, a lei natural, o objetivo de Melendo se entende pela seguinte passagem sua:
“Nada disso supõe, contrariamente ao que ingenuamente alguns argúem, a consideração da modernidade inteira como uma espécie de colossal erro ou de desvio com respeito à irretocável retidão do pensamento ‘tradicional’. Por isso, como se poderá comprovar ao longo de toda a investigação, o que propugno não é una espécie de ‘retorno’ — tão ineficaz quanto impossível — a um pensamento anterior. Muito longe disso, ao modo da Aufhebung hegeliana, a superação da metafísica moderna impõe que se conserve a exigência mais profunda da filosofia recente: a fundamentação definitiva da liberdade humana; mas, além disso, e sobretudo, exige que se estabeleça o princípio especulativo que permita responder com rigor a esse estímulo, transcendendo o niilismo terminal a que os pressupostos imanentista-cartesianos a conduziram. O que proponho é uma determinante redefinição do fundamento, capaz de salvar as pretensões de maior alcance da civilização dos últimos séculos.”
Ora, é indubitável, por um lado, que as “pretensões de maior alcance da civilização dos últimos séculos” visam à “morte de Deus” e de sua Lei, e, por outro, que a noção moderna de liberdade humana, noção que Melendo precisamente busca defender ou manter, tem por pressupostos, sim, o remoto voluntarismo de Duns Scott e o nominalismo de Guilherme de Ockham, mas sobretudo o mesmo Cogito cartesiano. Parece-me claro pois que Melendo se enreda em suas próprias premissas, o que aliás se pode comprovar com relativa facilidade pelo conjunto do próprio Entre moderno y postmoderno (cuja análise mais detida ficará, porém, para outra oportunidade), e não nos é dado entender com grande facilidade como um filósofo que se reivindica não só do Catolicismo, mas, ao que parece, do próprio tomismo, pode invocar a Aufhebung hegeliana para os seus propósitos, uma vez que é nela que radica o que de mais radical e de maior alcance produziu o mundo moderno: o materialismo marxista. Como quer que seja, porém, é penetrante a investigação melendiana do Cogito cartesiano, e, embora vamos divergir dela quanto a precisões lógicas, convergiremos com ela quanto a afirmar o que diz o título desta série.
Antes de prosseguirmos, todavia, pergunte-se ainda: que quererá dizer precisamente Melendo com este algo enigmático “a exigência mais profunda da filosofia recente: a fundamentação definitiva da liberdade humana”?
Nota prévia. A partir deste artigo, não raro invocarei nesta série, dialogicamente, o referido texto de Tomás Melendo, Entre moderno y postmoderno. E o farei, antes de tudo, porque também para esse autor o Cogito cartesiano indica o que venho dizendo desde o início: que o pensar é a causa do ser – por incrível que pareça não só aos formuladores de certas objeções, mas ao comum dos homens, porque de fato, como diz Tomás Melendo, “a afirmação [de Descartes] se opõe ao são senso comum e ao conjunto da filosofia pré ou extracartesiana”. Mas Melendo também é muito importante para os objetivos desta série exatamente porque é de todo insuspeito: o seu fim é antípoda do nosso. Com efeito, enquanto o nosso objetivo é, não só nesta série, mas neste blog como um todo, mostrar que o mundo surgido das ruínas da civilização cristã é resultante de uma espécie de pensamento mágico que, entendendo a liberdade humana como liberdade de consciência, não só a eleva à categoria de transcendental, mas a entroniza onde antes se sentava, absolutamente reinante, a lei natural, o objetivo de Melendo se entende pela seguinte passagem sua:
“Nada disso supõe, contrariamente ao que ingenuamente alguns argúem, a consideração da modernidade inteira como uma espécie de colossal erro ou de desvio com respeito à irretocável retidão do pensamento ‘tradicional’. Por isso, como se poderá comprovar ao longo de toda a investigação, o que propugno não é una espécie de ‘retorno’ — tão ineficaz quanto impossível — a um pensamento anterior. Muito longe disso, ao modo da Aufhebung hegeliana, a superação da metafísica moderna impõe que se conserve a exigência mais profunda da filosofia recente: a fundamentação definitiva da liberdade humana; mas, além disso, e sobretudo, exige que se estabeleça o princípio especulativo que permita responder com rigor a esse estímulo, transcendendo o niilismo terminal a que os pressupostos imanentista-cartesianos a conduziram. O que proponho é uma determinante redefinição do fundamento, capaz de salvar as pretensões de maior alcance da civilização dos últimos séculos.”
Ora, é indubitável, por um lado, que as “pretensões de maior alcance da civilização dos últimos séculos” visam à “morte de Deus” e de sua Lei, e, por outro, que a noção moderna de liberdade humana, noção que Melendo precisamente busca defender ou manter, tem por pressupostos, sim, o remoto voluntarismo de Duns Scott e o nominalismo de Guilherme de Ockham, mas sobretudo o mesmo Cogito cartesiano. Parece-me claro pois que Melendo se enreda em suas próprias premissas, o que aliás se pode comprovar com relativa facilidade pelo conjunto do próprio Entre moderno y postmoderno (cuja análise mais detida ficará, porém, para outra oportunidade), e não nos é dado entender com grande facilidade como um filósofo que se reivindica não só do Catolicismo, mas, ao que parece, do próprio tomismo, pode invocar a Aufhebung hegeliana para os seus propósitos, uma vez que é nela que radica o que de mais radical e de maior alcance produziu o mundo moderno: o materialismo marxista. Como quer que seja, porém, é penetrante a investigação melendiana do Cogito cartesiano, e, embora vamos divergir dela quanto a precisões lógicas, convergiremos com ela quanto a afirmar o que diz o título desta série.
Antes de prosseguirmos, todavia, pergunte-se ainda: que quererá dizer precisamente Melendo com este algo enigmático “a exigência mais profunda da filosofia recente: a fundamentação definitiva da liberdade humana”?
* * *
Pois bem, terminamos o artigo anterior vendo, com Melendo, que em Sur les Cinquièmes objections, "opondo-se à advertência de Gassendi de que o Cogito pressupunha uma premissa maior e, portanto, não era um primeiro princípio, Descartes responde que a proposição é evidente em si mesma, ainda que o sujeito nunca tenha pensado nela. E acrescenta: estamos diante una proposição particular não deduzida de nenhuma outra geral”.
Ora, caráter de evidência têm dois conjuntos de coisas: os primeiros princípios e os transcendentais. Dizia Santo Tomás de Aquino que “preexistem em nós certas sementes das ciências, a saber, as primeiras concepções do intelecto, que são imediatamente conhecidas à luz do intelecto agente mediante as espécies abstraídas das coisas sensíveis, sejam elas complexas, como os axiomas [dignitates, premissas imediatamente evidentes e universalmente verdadeiras sem necessidade de demonstração, ou seja, os primeiros princípios] ou não-complexas, como a noção [ratio] de ente, a de uno e similares, que o intelecto apreende de imediato. Ora, nesses princípios universais se encontram, como em razões seminais, todos os conhecimentos seguintes” (De Veritate, q. 11, a.1, corpus). Ou seja, para que o Cogito cartesiano tenha caráter de evidência, como queria seu inventor, é preciso que ele seja ou um primeiro princípio (o que nega em sua terminologia imprecisa o epicurista Gassendi), ou um transcendental. Vejamo-lo.
1) Há primeiros princípios de duas espécies: os primeiros princípios da razão teórica e os primeiros princípios da razão prática (e lembremos que essa duas razões não são senão as duas faces de uma mesma razão, a humana).
Os primeiros princípios da razão prática são os preceitos básicos da lei natural, preceitos que captamos imediatamente por meio de uma propensão habitual chamada sindérese (em outra série veremos tudo isso detalhadamente). São eles: o respeito à vida; a unicidade e indissolubilidade do matrimônio; a busca da verdade e o dever de viver social ou civicamente. Ou seja, trata-se de princípios morais, entre os quais obviamente não se enquadra o Cogito cartesiano. Vejamos porém se pode ele enquadrar-se entre os primeiros princípios da razão teórica ou especulativa.
Entre estes está o de contradição (ou não-contradição), segundo o qual “O que é não é o que não é” (ou seja, a negação de uma proposição afirmativa verdadeira será falsa e vice-versa, pois o contrário do falso é o verdadeiro). Trata-se, pois, em termos estritamente lógicos (como já estudamos), de uma proposição categórica negativa, que se pode desdobrar, porém, em uma proposição claramente composta ou formalmente hipotética de caráter copulativo: “A é A [princípio de identidade] e não é B ao mesmo tempo e pelo mesmo aspecto”. Pois bem, todos os primeiros princípios da razão teórica ou são proposições categóricas, ou podem desdobrar-se em proposições hipotéticas copulativas.
Tentemos todavia pôr o princípio de contradição em formato semelhante ao do Cogito cartesiano. Ele ficaria assim:
● A é A (ou eu sou A);
● Logo, A não é (eu não sou) B.
Sucede porém que fazendo-o criamos automaticamente um silogismo truncado ou entimema, que com sua premissa maior exposta ficaria assim:
● O que é não é o que não é ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto;
● Ora, A é A (eu sou A);
● Logo, A não é (eu não sou) B ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
Ou seja, se tentássemos pôr o princípio de contradição em formato semelhante ao do Cogito cartesiano, cairíamos num círculo vicioso, porque então o primeiro princípio, sem deixar de ser primeiro princípio, passaria apenas a fazer parte de um silogismo como sua premissa maior (oculta ou exposta), da qual o restante decorreria como de uma razão seminal. E isso é assim precisamente porque, como vimos pelas palavras do Aquinate, os primeiros princípios ou dignitates não admitem prova: são indemonstráveis porque evidentes, derivando naturalmente deles tudo o mais. Ora, o “logo” do Cogito cartesiano, como o “logo” de qualquer silogismo, indica “conclusão”, e conclusão pressupõe “demonstração”. Logo, o Cogito cartesiano não só não é “primeiro princípio”, mas tampouco é “proposição” ou “juízo” senão em termos muitíssimo impróprios; é propriamente, como se vem dizendo aqui desde o princípio, um “entimema”.
Concedamos ab absurdo, porém, para esgotar todas as possibilidades dialéticas, que Descartes tenha posto o “logo” em seu Cogito de maneira inadvertida, e que em verdade (como já ouvi sugerir...) seu Cogito deveria formular-se como proposição hipotética copulativa: “Penso e sou”. Se assim fosse, poderia atribuir-se ao Cogito cartesiano o caráter de primeiro princípio? Ou para Descartes se trataria efetivamente de um transcendental? É o que veremos no próximo artigo.
(Continua.)
Em tempo 1: Repita-se sempre: o próprio Descartes nega (na “Carta ao Sr. Clerselier”) que seu Cogito seja parte do silogismo “Aquele que pensa é; ora, eu penso; logo, sou”, esclarecendo que o epicurista Gassendi, ao afirmá-lo, “não fez mais que inventar falsas premissas maiores a seu bel-prazer, como se eu tivesse deduzido delas as verdades que expliquei”. Mas por que será então que Descartes, no Discurso do método, aceita que se trata, sim, de tal silogismo? Talvez, apenas talvez, a resposta a isso esteja implícita no que o mesmo Descartes diz ainda no Discurso do método, mais adiante (Quinta Parte): “Seria muito de meu agrado continuar a expor aqui toda a cadeia de outras verdades que deduzi dessas primeiras. Porém, suposto que, para tal realização, seria agora necessário que abordasse muitas questões controvertidas entre os eruditos, dos quais não desejo atrair a inimizade, acredito que seja melhor eu abster-me e apenas dizer...”
Em tempo 2: Sobretudo nesta série a paciência haverá de ser o nosso guia, porque estamos de fato diante de um labirinto mental: o labirinto mental sem saída que, tendo por pressuposto o obscurecimento da razão por um conjunto de paixões, serviria de fundamento para o liberalismo e pois para o mundo moderno.
Ora, caráter de evidência têm dois conjuntos de coisas: os primeiros princípios e os transcendentais. Dizia Santo Tomás de Aquino que “preexistem em nós certas sementes das ciências, a saber, as primeiras concepções do intelecto, que são imediatamente conhecidas à luz do intelecto agente mediante as espécies abstraídas das coisas sensíveis, sejam elas complexas, como os axiomas [dignitates, premissas imediatamente evidentes e universalmente verdadeiras sem necessidade de demonstração, ou seja, os primeiros princípios] ou não-complexas, como a noção [ratio] de ente, a de uno e similares, que o intelecto apreende de imediato. Ora, nesses princípios universais se encontram, como em razões seminais, todos os conhecimentos seguintes” (De Veritate, q. 11, a.1, corpus). Ou seja, para que o Cogito cartesiano tenha caráter de evidência, como queria seu inventor, é preciso que ele seja ou um primeiro princípio (o que nega em sua terminologia imprecisa o epicurista Gassendi), ou um transcendental. Vejamo-lo.
1) Há primeiros princípios de duas espécies: os primeiros princípios da razão teórica e os primeiros princípios da razão prática (e lembremos que essa duas razões não são senão as duas faces de uma mesma razão, a humana).
Os primeiros princípios da razão prática são os preceitos básicos da lei natural, preceitos que captamos imediatamente por meio de uma propensão habitual chamada sindérese (em outra série veremos tudo isso detalhadamente). São eles: o respeito à vida; a unicidade e indissolubilidade do matrimônio; a busca da verdade e o dever de viver social ou civicamente. Ou seja, trata-se de princípios morais, entre os quais obviamente não se enquadra o Cogito cartesiano. Vejamos porém se pode ele enquadrar-se entre os primeiros princípios da razão teórica ou especulativa.
Entre estes está o de contradição (ou não-contradição), segundo o qual “O que é não é o que não é” (ou seja, a negação de uma proposição afirmativa verdadeira será falsa e vice-versa, pois o contrário do falso é o verdadeiro). Trata-se, pois, em termos estritamente lógicos (como já estudamos), de uma proposição categórica negativa, que se pode desdobrar, porém, em uma proposição claramente composta ou formalmente hipotética de caráter copulativo: “A é A [princípio de identidade] e não é B ao mesmo tempo e pelo mesmo aspecto”. Pois bem, todos os primeiros princípios da razão teórica ou são proposições categóricas, ou podem desdobrar-se em proposições hipotéticas copulativas.
Tentemos todavia pôr o princípio de contradição em formato semelhante ao do Cogito cartesiano. Ele ficaria assim:
● A é A (ou eu sou A);
● Logo, A não é (eu não sou) B.
Sucede porém que fazendo-o criamos automaticamente um silogismo truncado ou entimema, que com sua premissa maior exposta ficaria assim:
● O que é não é o que não é ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto;
● Ora, A é A (eu sou A);
● Logo, A não é (eu não sou) B ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
Ou seja, se tentássemos pôr o princípio de contradição em formato semelhante ao do Cogito cartesiano, cairíamos num círculo vicioso, porque então o primeiro princípio, sem deixar de ser primeiro princípio, passaria apenas a fazer parte de um silogismo como sua premissa maior (oculta ou exposta), da qual o restante decorreria como de uma razão seminal. E isso é assim precisamente porque, como vimos pelas palavras do Aquinate, os primeiros princípios ou dignitates não admitem prova: são indemonstráveis porque evidentes, derivando naturalmente deles tudo o mais. Ora, o “logo” do Cogito cartesiano, como o “logo” de qualquer silogismo, indica “conclusão”, e conclusão pressupõe “demonstração”. Logo, o Cogito cartesiano não só não é “primeiro princípio”, mas tampouco é “proposição” ou “juízo” senão em termos muitíssimo impróprios; é propriamente, como se vem dizendo aqui desde o princípio, um “entimema”.
Concedamos ab absurdo, porém, para esgotar todas as possibilidades dialéticas, que Descartes tenha posto o “logo” em seu Cogito de maneira inadvertida, e que em verdade (como já ouvi sugerir...) seu Cogito deveria formular-se como proposição hipotética copulativa: “Penso e sou”. Se assim fosse, poderia atribuir-se ao Cogito cartesiano o caráter de primeiro princípio? Ou para Descartes se trataria efetivamente de um transcendental? É o que veremos no próximo artigo.
(Continua.)
Em tempo 1: Repita-se sempre: o próprio Descartes nega (na “Carta ao Sr. Clerselier”) que seu Cogito seja parte do silogismo “Aquele que pensa é; ora, eu penso; logo, sou”, esclarecendo que o epicurista Gassendi, ao afirmá-lo, “não fez mais que inventar falsas premissas maiores a seu bel-prazer, como se eu tivesse deduzido delas as verdades que expliquei”. Mas por que será então que Descartes, no Discurso do método, aceita que se trata, sim, de tal silogismo? Talvez, apenas talvez, a resposta a isso esteja implícita no que o mesmo Descartes diz ainda no Discurso do método, mais adiante (Quinta Parte): “Seria muito de meu agrado continuar a expor aqui toda a cadeia de outras verdades que deduzi dessas primeiras. Porém, suposto que, para tal realização, seria agora necessário que abordasse muitas questões controvertidas entre os eruditos, dos quais não desejo atrair a inimizade, acredito que seja melhor eu abster-me e apenas dizer...”
Em tempo 2: Sobretudo nesta série a paciência haverá de ser o nosso guia, porque estamos de fato diante de um labirinto mental: o labirinto mental sem saída que, tendo por pressuposto o obscurecimento da razão por um conjunto de paixões, serviria de fundamento para o liberalismo e pois para o mundo moderno.