Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)
A VIRTUDE
Já se anunciou noutro texto que aprofundaríamos o conceito de virtude segundo Santo Tomás. Façamo-lo, a partir da seguinte divisão:
1- A virtude, em termos metafísicos e também ontológicos, é o que auxilia uma potência a atingir o ato específico ao qual tende. Nas palavras do Aquinate, trata-se de uma operação que ajuda um ente a alcançar o seu fim, razão pela qual se chama “força” (unde et vis dicitur). Ora, o fim próximo de uma coisa é atualizar todas as potências que lhe são distintivas; para este fim está ordenada a virtude da coisa. Daí Santo Tomás salientar que “a virtude de um cavalo é ser um bom cavalo”. Portanto, alcançar a virtude significa ter desenvolvido as potencialidades mais importantes em seu nível de excelência, de modo a alcançar a plenitude entitativa. Sendo assim, um homem virtuoso será o que aperfeiçoou as suas potências superiores (inteligência e vontade), fundamentais para que ele obre em ordem ao seu fim (no caso, o fim último, que é Deus).
2- A virtude, em sentido moral, é o meio-termo entre os vícios extremos referidos a um mesmo objeto. Meio-termo a ser buscado pelo homem. Trata-se, na prática, de um equilíbrio dinâmico que faz uso da prudência aplicando-a aos casos particulares. Esse equilíbrio, embora jamais chegue à perfeição nesta vida, se transforma em hábito bom que distingue o caráter de uma pessoa.
O objeto transcendental da virtude humana: o fim último
Se a virtude de uma perna são as potências motrizes que, quando atualizadas, propiciam a um homem o perfeito caminhar, e se a virtude de um estômago é a potência de enzimas que, quando atualizada, catalisa proteínas e acelera reações bioquímicas — facilitando com isto a digestão do alimento, para a qual o estômago opera —, o que dizer da virtude do homem enquanto ente? Para tanto, é necessário não perder de vista o fim último, como veremos.
O axioma escolástico “todo ente que obra, obra por um fim” nos aponta que a perfeição de uma coisa é o que a completa, é o que a torna plena. E, como diz o já citado Martín Echavarría, de acordo com a antropologia tomista, primeiramente se quer o fim, e secundariamente se querem as coisas que se ordenam ao fim. O fim é, portanto, a razão de o ente dotado de inteligência querer tudo o que quer. Aqui entra o “pulo do gato” da teoria da vontade de Santo Tomás: para o homem, entre todos os fins é necessário haver um fim último, pelo qual se desejam todos os demais; caso não o houvesse, não existiria nenhuma operação ou conduta propriamente humana. O problema estaria em resolver qual seria esse fim último estruturador de toda a vida humana, e que lhe dá sentido.
A resolução do problema nós a encontramos na Suma Teológica, IªIIª, questões 1 e 2 (ao todo, são apenas 16 artigos, cuja leitura eu firmemente recomendo!). Estão descritos ali o fim último e, também, em que consiste a bem-aventurança do homem; ou melhor: em que ela não pode consistir.
a) Não pode consistir nas riquezas;
b) não pode consistir nas honrarias;
c) não pode consistir na fama ou glória humana;
d) não pode consistir no poder;
e) não pode consistir em nenhum bem corporal;
f) não pode consistir no prazer;
g) não pode consistir em nenhum bem espiritual da alma.
h) não pode consistir em nenhum bem criado.
E não pode a bem-aventurança consistir em nenhuma dessas coisas porque nenhuma delas faz a vontade repousar absolutamente. Ora, se a felicidade se define como a posse habitual dos bens queridos, é claro que todos esses bens, sendo contingentes e passageiros, não podem trazer a felicidade em sentido estrito, nem fazer a vontade repousar — e quando digo “repousar”, não me refiro a uma suposta paralisia da vontade, mas ao fato de o querer estar perfeitamente contemplado pela inesgotável superabundância de bens a que pode dirigir-se. Assim, ninguém com muitos bens (sobretudos espirituais) quereria ter poucos; ninguém com saúde perfeita quereria perdê-la; ninguém que sabe muitas coisas quereria saber poucas; Deus, que é o Próprio Ser, não quereria ser o nada; etc. A pessoa mais feliz, portanto, seria aquela que, querendo um bem qualquer, logo estivesse na plena posse dele. Ora, só o fim último, que é Deus — doador do ser e fonte de todos os bens possíveis — poderia propiciar-nos tal felicidade perfeita, imperecível.
Leiamos uma famosa passagem da Suma Teológica (IªIIª, q. 3, a. 8., resp) , em que Santo Tomás diz o seguinte:
“A bem-aventurança última e perfeita só pode estar na visão da essência divina. Para compreender isto, é preciso considerar duas coisas: A primeira é o que o homem não é perfeitamente bem-aventurado enquanto lhe falta algo por querer e buscar. A segunda é que a perfeição de qualquer potência se aprecia segundo a razão do seu objeto. Ora, o objeto do entendimento é o que é, quer dizer, a essência da coisa, como se diz no Livro III do De Anima. Por isso, a perfeição do entendimento progride na medida em que conhece a essência de uma coisa. Contudo, se o entendimento conhece a essência de um efeito, mas, por ela, não pode conhecer a essência da causa a ponto de saber desta o que é, não se diz que o entendimento chegou à essência da causa em sentido próprio (simpliciter), embora, mediante o efeito, possa saber apenas que a causa é. Assim, quando um homem conhece um efeito e sabe que este tem uma causa, naturalmente aumenta nele o desejo de saber o que é a causa. E este é um desejo [proveniente] da admiração, causa da investigação, como se diz no começo da Metafísica. Por exemplo: se alguém conhece o eclipse do sol, pensa que está produzido por uma causa e se admira com ela, porque não sabe o que é. E porque se admira, investiga. E esta investigação não cessa até que ele chegue a conhecer a essência da causa. Se, pois, o intelecto humano, conhecedor da essência de algum efeito criado, chega a conhecer a respeito de Deus que [Ele] é, [...] não alcança realmente a causa primeira, mas lhe fica um desejo natural de buscá-la. Por isso não pode [ainda] ser perfeitamente bem-aventurado. Assim, pois, para uma bem-aventurança perfeita se requer que o entendimento alcance a essência da causa primeira. E assim terá sua perfeição, mediante uma união com Deus como com o seu objeto, no qual unicamente consiste a bem-aventurança do homem (...)”.
Sendo assim, para o efetivo crescimento da virtude humana (a qual será sempre assintótica, diga-se), é necessário o fim último. Extirpe-se artificiosamente o fim último do horizonte humano, e tudo no homem se desagregará. Mas isto é questão complexa para outro texto (dado que seria necessário enumerar aqui as objeções dos que negam o fim último, e este post se estenderia por demais). Reitere-se apenas que a razão de ser de todas as virtudes não pode ser outra senão Deus — fim último e princípio de todas as coisas.
Uma questão
Já que falamos de virtude, deixemos agora um problema de teologia em aberto, para ser aprofundado noutra ocasião: se é ordinariamente a virtude dos sacramentos — ao quais operam in persona Christi — o que propicia ao homem a Graça, sendo esta absolutamente necessária para a sua salvação, como poderia um homem salvar-se fora da Igreja Católica, única administradora de todos os sacramentos? E mais: se a salvação for possível fora da Igreja, por que meios poderia formalmente acontecer, já que as virtudes meramente humanas são insuficientes para a bem-aventurança perfeita dos que se salvam?
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)
A VIRTUDE
Já se anunciou noutro texto que aprofundaríamos o conceito de virtude segundo Santo Tomás. Façamo-lo, a partir da seguinte divisão:
1- A virtude, em termos metafísicos e também ontológicos, é o que auxilia uma potência a atingir o ato específico ao qual tende. Nas palavras do Aquinate, trata-se de uma operação que ajuda um ente a alcançar o seu fim, razão pela qual se chama “força” (unde et vis dicitur). Ora, o fim próximo de uma coisa é atualizar todas as potências que lhe são distintivas; para este fim está ordenada a virtude da coisa. Daí Santo Tomás salientar que “a virtude de um cavalo é ser um bom cavalo”. Portanto, alcançar a virtude significa ter desenvolvido as potencialidades mais importantes em seu nível de excelência, de modo a alcançar a plenitude entitativa. Sendo assim, um homem virtuoso será o que aperfeiçoou as suas potências superiores (inteligência e vontade), fundamentais para que ele obre em ordem ao seu fim (no caso, o fim último, que é Deus).
2- A virtude, em sentido moral, é o meio-termo entre os vícios extremos referidos a um mesmo objeto. Meio-termo a ser buscado pelo homem. Trata-se, na prática, de um equilíbrio dinâmico que faz uso da prudência aplicando-a aos casos particulares. Esse equilíbrio, embora jamais chegue à perfeição nesta vida, se transforma em hábito bom que distingue o caráter de uma pessoa.
O objeto transcendental da virtude humana: o fim último
Se a virtude de uma perna são as potências motrizes que, quando atualizadas, propiciam a um homem o perfeito caminhar, e se a virtude de um estômago é a potência de enzimas que, quando atualizada, catalisa proteínas e acelera reações bioquímicas — facilitando com isto a digestão do alimento, para a qual o estômago opera —, o que dizer da virtude do homem enquanto ente? Para tanto, é necessário não perder de vista o fim último, como veremos.
O axioma escolástico “todo ente que obra, obra por um fim” nos aponta que a perfeição de uma coisa é o que a completa, é o que a torna plena. E, como diz o já citado Martín Echavarría, de acordo com a antropologia tomista, primeiramente se quer o fim, e secundariamente se querem as coisas que se ordenam ao fim. O fim é, portanto, a razão de o ente dotado de inteligência querer tudo o que quer. Aqui entra o “pulo do gato” da teoria da vontade de Santo Tomás: para o homem, entre todos os fins é necessário haver um fim último, pelo qual se desejam todos os demais; caso não o houvesse, não existiria nenhuma operação ou conduta propriamente humana. O problema estaria em resolver qual seria esse fim último estruturador de toda a vida humana, e que lhe dá sentido.
A resolução do problema nós a encontramos na Suma Teológica, IªIIª, questões 1 e 2 (ao todo, são apenas 16 artigos, cuja leitura eu firmemente recomendo!). Estão descritos ali o fim último e, também, em que consiste a bem-aventurança do homem; ou melhor: em que ela não pode consistir.
a) Não pode consistir nas riquezas;
b) não pode consistir nas honrarias;
c) não pode consistir na fama ou glória humana;
d) não pode consistir no poder;
e) não pode consistir em nenhum bem corporal;
f) não pode consistir no prazer;
g) não pode consistir em nenhum bem espiritual da alma.
h) não pode consistir em nenhum bem criado.
E não pode a bem-aventurança consistir em nenhuma dessas coisas porque nenhuma delas faz a vontade repousar absolutamente. Ora, se a felicidade se define como a posse habitual dos bens queridos, é claro que todos esses bens, sendo contingentes e passageiros, não podem trazer a felicidade em sentido estrito, nem fazer a vontade repousar — e quando digo “repousar”, não me refiro a uma suposta paralisia da vontade, mas ao fato de o querer estar perfeitamente contemplado pela inesgotável superabundância de bens a que pode dirigir-se. Assim, ninguém com muitos bens (sobretudos espirituais) quereria ter poucos; ninguém com saúde perfeita quereria perdê-la; ninguém que sabe muitas coisas quereria saber poucas; Deus, que é o Próprio Ser, não quereria ser o nada; etc. A pessoa mais feliz, portanto, seria aquela que, querendo um bem qualquer, logo estivesse na plena posse dele. Ora, só o fim último, que é Deus — doador do ser e fonte de todos os bens possíveis — poderia propiciar-nos tal felicidade perfeita, imperecível.
Leiamos uma famosa passagem da Suma Teológica (IªIIª, q. 3, a. 8., resp) , em que Santo Tomás diz o seguinte:
“A bem-aventurança última e perfeita só pode estar na visão da essência divina. Para compreender isto, é preciso considerar duas coisas: A primeira é o que o homem não é perfeitamente bem-aventurado enquanto lhe falta algo por querer e buscar. A segunda é que a perfeição de qualquer potência se aprecia segundo a razão do seu objeto. Ora, o objeto do entendimento é o que é, quer dizer, a essência da coisa, como se diz no Livro III do De Anima. Por isso, a perfeição do entendimento progride na medida em que conhece a essência de uma coisa. Contudo, se o entendimento conhece a essência de um efeito, mas, por ela, não pode conhecer a essência da causa a ponto de saber desta o que é, não se diz que o entendimento chegou à essência da causa em sentido próprio (simpliciter), embora, mediante o efeito, possa saber apenas que a causa é. Assim, quando um homem conhece um efeito e sabe que este tem uma causa, naturalmente aumenta nele o desejo de saber o que é a causa. E este é um desejo [proveniente] da admiração, causa da investigação, como se diz no começo da Metafísica. Por exemplo: se alguém conhece o eclipse do sol, pensa que está produzido por uma causa e se admira com ela, porque não sabe o que é. E porque se admira, investiga. E esta investigação não cessa até que ele chegue a conhecer a essência da causa. Se, pois, o intelecto humano, conhecedor da essência de algum efeito criado, chega a conhecer a respeito de Deus que [Ele] é, [...] não alcança realmente a causa primeira, mas lhe fica um desejo natural de buscá-la. Por isso não pode [ainda] ser perfeitamente bem-aventurado. Assim, pois, para uma bem-aventurança perfeita se requer que o entendimento alcance a essência da causa primeira. E assim terá sua perfeição, mediante uma união com Deus como com o seu objeto, no qual unicamente consiste a bem-aventurança do homem (...)”.
Sendo assim, para o efetivo crescimento da virtude humana (a qual será sempre assintótica, diga-se), é necessário o fim último. Extirpe-se artificiosamente o fim último do horizonte humano, e tudo no homem se desagregará. Mas isto é questão complexa para outro texto (dado que seria necessário enumerar aqui as objeções dos que negam o fim último, e este post se estenderia por demais). Reitere-se apenas que a razão de ser de todas as virtudes não pode ser outra senão Deus — fim último e princípio de todas as coisas.
Uma questão
Já que falamos de virtude, deixemos agora um problema de teologia em aberto, para ser aprofundado noutra ocasião: se é ordinariamente a virtude dos sacramentos — ao quais operam in persona Christi — o que propicia ao homem a Graça, sendo esta absolutamente necessária para a sua salvação, como poderia um homem salvar-se fora da Igreja Católica, única administradora de todos os sacramentos? E mais: se a salvação for possível fora da Igreja, por que meios poderia formalmente acontecer, já que as virtudes meramente humanas são insuficientes para a bem-aventurança perfeita dos que se salvam?
Veremos, em outra oportunidade, o que nos diz Santo Tomás, com a autoridade doutrinal de Doutor Comum da Igreja.