segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A estrutura da ação humana em sua completude (XI)

Sidney Silveira
Retomo agora a série “A estrutura da ação humana em sua completude”, depois de algum tempo sem atualizá-la. Peço desculpas aos leitores, mas é que, nestes últimos dois meses, outros assuntos acabaram entrando na pauta do blog.

Falávamos no último artigo sobre a virtude (na perspectiva da metafísica de Santo Tomás) como uma força que auxilia determinada potência a atingir o fim específico ao qual naturalmente tende — lembrando, na ocasião, que o fim próximo de uma coisa é atualizar todas as potências que lhe são distintivas, ou seja: o fim para o qual está ordenada a virtude dessa coisa. Daí que, no caso do homem, alcançar a virtude significa ter desenvolvido as potencialidades mais importantes em seu nível de excelência.

Pois bem, retomemos agora o caminho falando da prudência, a virtudes das virtudes humanas. Virtude supracapital, como diz Tomás de Aquino, que é para todas as outras virtudes uma nascente.

A PRUDÊNCIA

Já vimos, no decorrer destes textos, que o intelecto é o princípio reitor da personalidade humana, o epicentro do caráter, na medida em que tem influência decisiva não apenas sobre a vontade, mas sobre toda a afetividade sensitiva, conforme salienta Martín Echavarría, autor da obra-prima La praxis de la psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás — cujas pegadas seguimos de perto, nesta série de textos. E, dentre todas as virtudes, há uma que aperfeiçoa o intelecto e o leva a ordenar as paixões e condutas: a ela o Aquinate chama prudentia, que, por suas características, é também nomeada por ele como a reta razão no agir.

A prudência é uma virtude intelectual, pois o seu sujeito principal é o intelecto. A matéria da prudência é a ética, a sabedoria nas coisas humanas (sapientia in rebus humanis, dirá Santo Tomás, repetindo neste ponto Aristóteles), porque busca conduzir-nos a alcançar o fim último de toda a vida humana — fim ao qual também nos referimos no último texto —, a partir de meios adequados para lográ-lo. A prudência versa, portanto, sobre os meios. E, embora seja uma virtude prática, a prudência é essencialmente intelectual porque é o intelecto que, na prática, capta a proporção entre meios e fins. É nele que se encontra a razão de fim, que um bichano, por exemplo, não tem: o bichano simplesmente come e bebe, mas não sabe que tem de comer e beber para viver.

Diz ainda Echavarría que, de certa forma, a prudência consiste nos sentidos internos, pois é a partir da memória — um dos quatro sentidos internos — que se chega a um julgamento dos fatos particulares experimentados (cf. Suma Teológica, II-II, q. 47, a.3 ad. 1), aos quais a prudência se refere. A isto chama Santo Tomás experimentum, que é o produto final da ação conjunta da cogitativa e da memória. Assim, muitas coisas recordadas constituem um experimentum. Ora, a experiência é absolutamente necessária para a prática humana, em qualquer ordem de coisas, e a formação dessa experiência supõe a atividade de todas as nossas potências cognoscitivas, razão pela qual o experimentum da prudência não se adquire somente pela memória, mas sobretudo pelo exercício do preceituar retamente (cf. Suma Teológica, II-II, q. 47, a. 14, ad. 3). E esse preceituar retamente supõe um conjunto orgânico de imagens intencionalmente laboradas, ou seja: imagens unidas a juízos do intelecto. Em termos técnicos, trata-se da conexão entre a vis cogitativa e as distintas intentiones. Assim, entre lembrar de um fato, simplesmente, e lembrar dele ajuizando-o (por exemplo, como algo que não se deva fazer outra vez) há uma distância tremenda. É o que, entre outras coisas, distingue a ação humana da ação dos outros animais da escala zoológica, coisa que absolutamente escapou ao liberal Von Mises em sua Human Action, livro ao qual voltaremos no final da série.

Uma pessoa com dificuldade para ajuizar as imagens (ou seja: dar-lhes uma intenção, uma diretriz) está tendo, na prática, o seu acesso à realidade impedido ou então, para dizer pouco, grandemente dificultado. Segundo Echavarría, alguém numa situação dessas só poderá obter uma cura (no sentido literal da palavra) a partir da dissolução das falsas imagens, pondo fim à rede de representações mentais que, durante longo tempo, fez de si mesmo e das coisas e pessoas em torno — representações essas que não correspondem à realidade real. Neste contexto, não nos devemos esquecer de que a memória é também receptáculo de juízos falsos. Ah, e quantas pessoas são psicologicamente destruídas porque a sua dinâmica psíquica ergueu-se sobre falsas imagens (ou seja: imagens mal ajuizadas) de si e dos demais! Como se vê, acreditar no erro é uma tragédia para a psique humana.

Esse reto juízo sobre as coisas particulares, nota distintiva da prudência, não nos vem por um passe de mágica, pois só pode haver prudência onde há retidão das inclinações — tanto intelectivas como sensitivas. Estas, se desvirtuadas dos fins para os quais naturalmente tendem, só podem se reordenar a partir de uma transformação de toda a afetividade, por um ato da vontade (que é apetite intelectivo do bem). Não basta, para Echavarría, uma dissolução “analítica” dos complexos, como na psicanálise de cunho freudiano; é preciso alcançar a verdade, acerca de nós mesmos e das coisas. Neste caso, alcançar querendo, ou seja, intencionalmente, pois as verdades mais fundamentais não se alcançam se não se quer alcançá-las. Muito antes de Husserl e com muito maior profundidade, Santo Tomás já salientara a intencionalidade do conhecimento humano.

Em suma, se não conseguimos ter uma simpatia pelas boas obras, não chegamos a ter nenhuma virtude. O desvirtuado, por sua vez, tem antipatia por tudo o que é bom e lícito. Quer macular as coisas com as más intenções (ou intenções falhas) que, consciente ou inconscientemente, engendrou no âmago da sua alma.

Como a prudência — mãe e fonte de todas as virtudes — não é um milagre, dado que deita raízes em nossos sentidos internos e na razão, pressupor que devemos e podemos experimentar de tudo (inclusive experimentar o mal em nós mesmos) é trabalhar pela destruição da possibilidade da principal das virtudes humanas. É trabalhar pela dispersão dos nossos apetites sensitivo e intelectivo em uma multiplicidade de objetos. É trabalhar para que nos distraiamos das coisas realmente necessárias. É trabalhar pela queda do homem no abismo. E a razão clínica é simples: o experimentum do mal, se continuado, acabará por fazer um homem acreditar naquilo que tem de pior em si — supor que a sua enfermidade é o que o constitui per essentiam. Tal homem estará na situação depravada para a qual Aristóteles diz, na Ética a Nicômaco, não haver saída: será para sempre refém das imagens do mal vivido ou praticado. É por isto que experimentar o mal deve ser uma contingência em nossa vida (pois o próprio mal é uma contingência metafísica), e não algo querido e buscado, à guisa de experiência.

Por essas e outras coisas, afirmar que a consciência individual é “autônoma” (e já dissemos noutro texto que os liberais, quando indagados sobre tal “autonomia”, engrolam a língua e não respondem) é, no ato, forjar uma espécie de homem condenado, de antemão, ao precipício dos vícios, pois nenhum homem prudente até hoje foi “autônomo”, mas, ao contrário: rendeu-se à realidade das coisas, pela inteligência e pela vontade. É claro que esse render-se à realidade é consciente, mas na acepção verdadeira do termo “consciência”, como destaca Santo Tomás: a consciência como a mera aplicação de uma determinada ciência a algo. E não como uma instância libérrima, “independente”, alheia às coisas — alheia à verdade sobre as coisas. Isto simplesmente porque a liberdade humana está circunscrita ao ser.

Se não fosse assim, a liberdade seria um dos transcendentais do ser, como tão erroneamente pressupôs Leonardo Polo, em sua Antropología Transcendental. E pior: seria fundante do ser. O que é ainda mais absurdo.