domingo, 7 de dezembro de 2008

A amizade (II)

Sidney Silveira
Pediram-me alguns para escrever mais sobre a amizade, porque lhes pareceu bem o texto anterior sobre o tema, publicado aqui no Contra Impugnantes. Resolvo fazê-lo, então, tendo como modelo o que nos diz São Francisco de Sales em sua Introdução à Vida Devota, conhecida também como Filotéia — um livro simplesmente extraordinário, um clássico recomendável a pessoas de todas as idades e condições de vida. Edificante, belo, cheio de conselhos luminosos.

Lembra-nos ali o grande Santo e grande Confessor que há as amizades boas e as más. As más nos levam a pecar contra os outros e contra nós mesmos, e rematam em palavras e pedidos torpes, convites tortuosos, “às vezes injúrias, calúnias, imposturas, tristezas, confusões, mentiras, ciúmes — e nos conduzem, geralmente, a brutalidades ou desvarios”. De minha parte, eu diria que, na prática, essas amizades acabam, com o tempo, conformando-se aos seus maus motivos iniciais, são como um espelho das intenções ou inclinações viciadas que as originaram. Sendo assim, devemos estar atentos para não fazer amizades justamente com as pessoas que vão agravar as nossas patologias, vão suscitar em nós o que temos de pior. Com muita razão dizia Santo Agostinho num famoso sermão: “Queres conhecer se o teu amor é bom? Vê o que ele te leva a fazer!”. Esse critério nos serve, também, para discernir as amizades. Não vamos, portanto, ser alcoólatras a travar amizade com o dono do boteco, que mais dia menos dia nos oferecerá um trago de pinga a custo “zero”.

Nesse tipo de amizade, a corrupção é insidiosa porque vem escondida sob o afeto. Por isso o autor de Filotéia nos fala da necessidade de nos armarmos com grande firmeza, nas ocasiões em que pretensos amigos nos chamam para fazer coisas indignas, ou falam sobre baixezas como a nos apontar um caminho de gozo ou mesmo de vingança. Afirma São Francisco:

“Não recebais a moeda falsa com a verdadeira, nem o ouro aquilatado com o falso; separai o que é precioso do que é vil e desprezível. Decerto, ninguém existe que não tenha certas imperfeições — e por que razão devemos, na amizade, participar das imperfeições do amigo? Devemos amá-lo, embora imperfeito, mas não devemos apropriar-nos nós das suas imperfeições e nem amá-las [nem ele das nossas mazelas, quedas, vícios, etc.]”.

Outra máxima muito verdadeira é a que diz: tornamo-nos semelhantes ao que amamos. Ou, como escrevera poeticamente Camões: Transforma-se o amador na cousa amada. Na amizade, essa máxima vale muito, razão pela qual é de bom alvitre tomarmos o grande cuidado de não amar, no amigo, algo por si mau. Mas como descobrir isto? Bem, aconselham-nos grandes autores — como o próprio São Francisco de Sales — a fazermos o escrutínio de um exame de consciência que alcance os nossos gostos e preferências, desde os mais ocultos aos mais óbvios, as nossas escolhas e até os amigos com quem partilhamos os momentos de alegria. E o motivo é simples: com que facilidade caímos por causa da admiração de atos dos nossos amigos que, ao fim e ao cabo, são o mero reflexo de um defeito ou de uma má tendência nossa! Uma palavra, um gesto, um escrito, algo simples assim é capaz de engendrar as mais daninhas simpatias. Daninhas porque são a raiz da nossa piora, ou seja: do agravamento de um defeito, ainda que sob a aparência de algo nobre e bom.

Em Filotéia afirma-se outra coisa da amizade, que vale deixar consignada: a mais perfeita amizade, a amizade verdadeira (simpliciter, diria Santo Tomás) é a que tem por motivo as perfeições divinas.

Isto porque a perfeição divina é a razão de ser da nossa perfectibilidade. É o arquétipo a que aspiramos e ao qual tendemos, e em cuja falta só nos resta cair nos piores abismos.