segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser (VI e final)

Carlos Nougué
Como vimos ao longo desta série, o Cogito cartesiano, por um lado, não é um primeiro princípio nem um transcendental, nem, por outro, é um juízo, mas é efetivamente um entimema, apesar da afirmação em contrário do próprio Descartes. Se assim é, qual a sua verdadeira premissa maior? Aquela que dissemos desde o princípio, a saber: “Para ser, é preciso pensar”? Se não, qual?

Antes de concluirmos, porém, é preciso ainda refutar uma coisa: a afirmação do próprio Descartes de que seu Cogito é uma espécie de intuição, o que não é refutado explicitamente, em termos próprios, nem sequer por Tomás Melendo.

Mas veja-se que ante um pensamento como o cartesiano devemos ter a postura firme de não lhe atribuir coerência absoluta (às vezes, nem sequer relativa a seus próprios termos). Com efeito, como atribuir tal coerência a alguém capaz de negar que seu Cogito tenha por premissa maior “para pensar, é preciso ser”, assim como o tão referido silogismo de Santo Agostinho, cuja premissa menor era “ora, eu me equivoco” e cuja conclusão era “logo, eu sou”, tinha por premissa maior “para equivocar-se, é preciso ser”? Estamos naquele mesmo terreno “psicopatológico” de que falava Étienne Gilson ao referir-se ao pensamento moderno – psicopatológico e, pois, em nossos termos, perfeitamente mágico. De fato, no Discurso do Método Descartes diz ter por objetivo único combater o cepticismo com relação a Deus e ao real; mas combate-o de modo tal, que seu mesmo raciocínio conduz em outros escritos, como diz Melendo, à conclusão de que “o pensamento não exige previamente, com prioridade de natureza, a existência ou o ser. Ao contrário, seria o próprio pensar, ou a consciência em qualquer de suas manifestações, o que confere realidade ao pensado. Só de tal modo o pensamento (e, em geral, a subjetividade) se alça como princípio primeiro não fundamentado, como princípio sem princípio, de qualquer realidade posterior: do eu, de Deus, do mundo material, dos três enquanto pensado-existentes”. E, por mais que nos custe crer que alguém possa chegar a tal conclusão, é efetivamente o que faz Descartes, inaugurando com isso, como afirmava o insuspeito Heidegger, “toda a metafísica moderna, Nietzsche inclusive”, a qual “se mantém na interpretação do existente e da verdade que parte de Descartes” (Die Zeit des Weltbildes, em Holzwege, Frankfurt am Main, 5a. ed., 1972, p. 80, apud Tomás Melendo, ibid.). E, efetivamente, “com maior ou menor consciência, e de maneira mais ou menos involuntária, Descartes lança as sementes destrutivas que, após torná-la irreconhecível, haverão de acabar com a [própria] metafísica, arrastando em sua queda a imagem teórica e a realidade do homem, e os princípios e a práxis genuinamente morais”, afirma Melendo (idem) de forma justa e precisa, ainda que em contradição com uma das premissas de seu próprio trabalho (ver o artigo IV desta série).

Por outro lado, é patente que ninguém poderia levar às últimas conseqüências práticas um pensamento desse tipo; nem sequer quem padeça esquizofrenia o pode fazer. Com efeito, se se levassem às últimas conseqüências práticas a afirmação de que o pensar é a causa do ser, tal impediria, simplesmente, o próprio viver: como passar por uma parede? como saber que não devemos comer pedra? como não correr de um vaca furiosa com os chifres apontados para você? Efetivamente, nem um esquizofrênico, cuja doença é propriamente a cisão de uma alma que foge de um real insuportável, pode abandonar, sem acabar com a própria vida, a certeza dada pelo próprio e antecedente real de que qualquer ente humano não pode voar ainda que o pense e queira. Pois é precisamente por tal impossibilidade que o “sistema” de Descartes não comporta coerência absoluta nem, por vezes, relativa: nenhuma forma de psicopatologia pode comportá-la.

E por isso também importa dizer aqui, ainda com Melendo, que “a pretensão do filósofo francês se aproximaria da insânia” se pressupusesse “um pensamento não existente capaz de agir e dar origem à sua própria existência e a todo um universo… entendidos todos eles ao modo pré- ou extracartesiano” (idem). Não, o que se sustenta aqui, outra vez com Melendo, é que Descartes é mais sutil (demasiadamente mais sutil, agrego): “o chamado pai do racionalismo obriga a consciência, em suas múltiplas manifestações, a ocupar o lugar que corresponde ao ser. Ou seja, faz do cogito a consistência primeira de tudo o que é [de tudo o que é ente e do próprio Ser, precise-se]. [...] daí, do pensamento como pensamento (ou das idéias nele incluídas), extrairá Descartes Deus e o mundo enquanto existente-pensados ou pensado-existentes”. Até aqui seguimos com Melendo; mas já não podemos seguir com ele quando diz que “a inversão das relações entre ser e consciência [em Descartes] não deve ser interpretada como se o [sum, eu sou] fosse um ‘efeito’ do pensamento”. Ora, se em Descartes o pensar ocupa o lugar do ser, é porque causa inversamente o que na realidade o ser causa, e, se é evidente que na realidade o pensar é efeito do ser (ou ato de ser, ato dos atos), é igualmente evidente que em Descartes o ser será forçosamente efeito do pensar. Por que, porém, incorre o penetrante Melendo em tal patente equívoco?

Porque de algum modo aceita que, conquanto equivocadíssimo, o Cogito cartesiano é uma intuição, tal como dizia o próprio Descartes. Mas o que é intuição? O modo de pensar próprio dos Anjos! Com efeito, as criaturas puramente espirituais que são os Anjos, graças às espécies inteligíveis que infundiu Deus mesmo em seu intelecto, compreendem tudo, cada realidade, num só, digamos, “lance de vista” – numa intuição. É uma forma de conhecimento imediata, muito diferente da forma de conhecimento humana, que é diacrônica (vai do conceito ao silogismo, passando pelo juízo), além de supor a intervenção prévia dos órgãos corporais que são os sentidos externos e internos. A forma humana de conhecimento é propriamente discursiva, nunca intuitiva. Ora, a concessão tácita de Melendo à “intuição” cartesiana pode até não passar disso, de uma concessão tácita, a qual, porém, por nunca se esclarecer, gera mais confusão que luz; mas para o próprio Descartes a intuição era algo efetivo, até porque o Francês via o homem justamente como uma espécie de anjo “preso” ao corpo pela glândula pineal, assim como em Platão a alma humana estava no corpo como numa prisão. Platão, contudo, nunca dotou a alma humana de propriedades intuitivas angélicas, ao passo que Descartes, sim. E com isso podemos agora, finalmente, concluir esta série.

Com efeito, ainda que o quisesse Descartes, é óbvio que o homem é incapaz de intuição, e por não sê-lo, e pelas numerosíssimas razões que expusemos ao longo desta série, é que o Cogito cartesiano é um entimema, e um entimema que se revolve efetivamente no seguinte silogismo:

● O pensar é a consistência, o fundamento, a causa, o ato do mundo (ou seja, de tudo o que é);
● Ora, eu penso;
● Logo, eu sou (ou seja, o próprio eu se funda no pensar).

Naturalmente, repito, não se busque nisso nada coerente simpliciter (nem secundum quid se se considera o conjunto da obra de Descartes). Mas busque-se nisso uma origem de todas as vertentes do pensamento mágico moderno,* que, sim, se encontrará. Afinal, para nos limitarmos a apenas um exemplo, não é o liberalismo uma forma de pensamento que funda a realidade no pensar e querer de seus próprios propugnadores?

Para terminar, fiquemos com a expressiva analogia a respeito do Cogito cartesiano proposta por David Kelly (cf. The Evidence of the Senses: A Realist Theory of Perception, Louisiana State University Press, Baton Rouge, 1986, p.12). Imagine-se o pensar como um filme de cinema com seu projetor. O projetor não é uma lanterna, que ilumina objetos independentes da lanterna; ao contrário desta, ele emite um feixe de luz que mostra na tela objetos constituídos ou criados pelo filme. Se o filme se deteriora, tais objetos também deixam de ser.

* Digo que o cartesianismo é apenas “uma origem de todas as vertentes do pensamento mágico moderno” porque, em verdade, podemos encontrar para esse pensamento origens, fontes mais remotas: o voluntarismo de Duns Scott, o “nominalismo” de Guilherme de Ockham, etc.