Sidney Silveira
Como afirma em seu livro o Professor Barrera (que hoje é um dos mais respeitados especialistas no tema da "Política" em Santo Tomás, no cenário internacional), não se espere de Santo Tomás uma análise política das instâncias do poder, nem da forma das constituições — como o fizera Aristóteles —, mas sim a busca pelo fundamento metafísico da Política, e os corolários necessários que daí se seguem. E isto, como veremos, é o principal.
Para encontrar esse fundamento da Política na obra do Aquinate, é preciso sair um pouco dos manuais de filosofia para iniciantes — que, não raro, são o que eu chamo de Coleção primeiros e últimos passos [definitivos tropeços, na verdade] — e ir também além dos escritos “óbvios” acerca do tema na obra de Santo Tomás (De Regno e Suma Teológica [I-II, questões 90 a 97 – De lege e De iure et iustitia]). É preciso beber na fonte dos seus Comentários à Política e à Física de Aristóteles. Em cada um destes, Tomás de Aquino encontra algo que será importante em sua busca pelo fundamento metafísico da Política. Tanto assim o é, que o seu extenso Comentário à Política começa da seguinte forma: “Como ensina Aristóteles no livro II da Física, a arte imita a natureza. A razão é que, como se encontram entre si os princípios [na natureza], assim também, proporcionalmente, se acham as operações e seus efeitos [na arte]”.
Veremos depois o porquê de o nosso genial autor buscar no conceito de natureza o ponto analogante com que começa o seu comentário à... política! Mas isto depois. Por ora, vale deixar consignadas algumas das mudanças que o redirecionamento axiológico do Cristianismo (que, na obra do Aquinate, encontra uma síntese magistral abarcadora das teorias anteriores no seio da própria Cristandade, com a superação do agostinismo político) não poderá aceitar na doutrina aristotélica. Barrera aponta aspectos relevantes:
1- O aprofundamento da análise aristotélica da política por Santo Tomás, na medida que neste há mais uma filosofia política do que uma ciência política. Ou melhor, o que se chama habitualmente de scientia civilis é, em Santo Tomás, uma philosophia civitatis;
2- Diferenças quanto à discutibilidade de algumas teses aristotélicas, como por exemplo o conceito de natureza do autor grego — literalmente corrigido por Santo Tomás — contraposto ao conceito de natureza do próprio Aquinate, o qual terá alcance político em sua teoria;
3- A inaceitabilidade de algumas teses de Aristóteles, como a idéia de que a comunidade política é o âmbito supremo das realizações humanas (tese cujo milenarismo ou promessa de felicidade terrena Santo Tomás não pode, em hipótese alguma, aceitar); a exclusividade étnica na pólis; e a defesa da eugenia ou aborto eugênico. Diz Barrera, com muita propriedade: “(...) quando Aristóteles descarrega sua munição grossa contra bárbaros, escravos, crianças defeituosas, ou quando expõe seu malthusianismo avant la lettre, o Aquinate encontra uma contradição demasiado ofensiva contra a tradição católica (...)”.
4- O papel da religião na pólis. Aqui há outra diferença capital, e Barrera observa, muito a propósito, que a religião tem papel fundamental para todos os pensadores políticos importantes (duas das quatro partes do Leviatã de Hobbes, só para dar um exemplo, são sobre religião). De fato, lembra-nos Barrera que Aristóteles afirma o seguinte na Política: de todas as funções de que a cidade deve ocupar-se, a principal é o culto aos deuses (mas o nosso autor aponta brilhantemente a tensão não-resolvida, em toda a obra de Aristóteles, entre essa idéia e o seu conceito de religião, e mais ainda: o desprezo que o Estagirita expressa por religiosos e teólogos, que ele chama de mitólogos). Isto para não falar que o seu Deus-Primeiro-Motor-Imóvel sequer pensa nos homens, pois se pensasse perderia dignidade. Já em Santo Tomás, sendo a religião uma virtude moral — e não intelectual nem infusa, no que ele é contundente — e a principal de todas as virtudes políticas, o princípio será levado harmoniosamente às últimas conseqüências: TODA a sociedade deve estar sob a lei divina. Só para dar um exemplo, tirado da Questão 97 da I-II da Suma. “A lei humana, para ser correta, deve estar em consonância com as leis natural e divina, pois do contrário não estaria em harmonia com a religião, nem seria conveniente para a disciplina (...). Mas nenhum homem pode dispensar-se das leis natural e divina (...)”. Voltaremos a isto noutro post.
O livro de Barrera traz uma rica e atualizada bibliografia sobre o tema, com autores que dedicaram toda uma vida intelectual especificamente ao estudo da filosofia política, nas principais universidades da Europa e dos EUA. O ótimo retorno que tivemos até o momento, pelo email da editora Sétimo Selo, de professores de filosofia política (de orientações as mais díspares) que leram o livro, nos dá a certeza do bom serviço prestado, com esta edição.
É como me disse um amigo, grande professor: "Vocês na editora estão indo muito além dos manuais bolorentos que, nas mãos de gente apressada e pseudo-intelectualizada, apenas cauterizam os erros". Agradeço, nobre amigo! E acato humildemente o seu elogio.