Sidney Silveira
Em várias passagens do Evangelho, Jesus critica a excessiva solicitude para com as coisas temporais, em particular com o trabalho, dando-nos, com a sua divina autoridade, a segura orientação de que tudo, no homem, deve estar subordinado ao que nele é espiritual — e o seu espírito, orientado ao fim último para o qual foi criado. Como, por exemplo, em:
Em várias passagens do Evangelho, Jesus critica a excessiva solicitude para com as coisas temporais, em particular com o trabalho, dando-nos, com a sua divina autoridade, a segura orientação de que tudo, no homem, deve estar subordinado ao que nele é espiritual — e o seu espírito, orientado ao fim último para o qual foi criado. Como, por exemplo, em:
“Eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais do que as vestes?” (Mt, VI, 25)
“Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua Justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt, VI, 33)
Ou ainda, de forma veemente, nesta passagem:
“Estando Jesus em viagem, entrou numa aldeia, onde uma mulher, chamada Marta, o recebeu em sua casa. Tinha ela uma irmã de nome Maria, que se assentou aos pés de Jesus para ouvi-lo falar. Marta, toda preocupada com a lida da casa, veio a Jesus e disse: Senhor, não te importas que minha irmã me deixe só a servir? Dize-lhe que me ajude. Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada”. (Lc, X, 38-40).
Juntemos a essas passagens — de mensagem tão simples, direta e objetiva — o fato de que, de acordo com alguns dos maiores doutores da Igreja, assim como do próprio Magistério infalível (e não de acordo com a nossa interpretação pessoal, que nisto absolutamente não a temos), há uma dupla maneira de considerar o trabalho:
1ª. No estado de inocência original, quando Deus confiou a Adão* o governo das coisas criadas. Leia-se, por exemplo, Gn, II, 15: “O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo”. Ou então essa outra passagem da Sagrada Escritura: “Vós o fizestes [a Adão] quase igual aos Anjos/De glória e honra o coroastes/Destes-lhe poder sobre as obras de vossas mãos/Vós lhe submetestes todo o universo” (Salmo VIII, 5-7).
O trabalho para com as coisas do universo submetidas ao primeiro homem não o afadigava, dado o seu estado de inocência original e, entre outras coisas, pelos dons preternaturais de que estava revestido. Para não estender por demais este post, poupo-me e poupo-lhes de citar amiúde o que sobre isso disseram lindamente tantos Doutores e Papas (Santo Agostinho, São Gregório Magno, São João Crisóstomo, etc.). Deixo consignada apenas uma coisa que afirma Santo Tomás, em diferentes passagens do segundo tratado de seu Compêndio de Teologia: no estado de inocência original, todo o trabalho do homem estava orientado para servir e honrar a Deus. Perdida, pelo pecado, essa orientação de todas as coisas pelo homem a Deus — para a qual o homem contava com auxílios sobrenaturais —, advirá também a diminuição dos bens da própria natureza, como diz São Beda: o homem foi despojado das coisas gratuitas e também diminuído na própria natureza. A propósito, o mesmo São Beda, ratificado por Santo Tomás (in Suma Teológica, IªIIª, Q. 85, a.3) enfatiza que a nossa natureza traz quatro feridas: debilidade, ignorância, malícia e concupiscência.
2ª. No estado de natureza caída, que é o atual, o trabalho passa a ser penoso em si mesmo e também sujeito a erros tanto quanto aos meios, como em relação aos fins intermediários, e destes com o fim último. O homem caído, fascinado e vencido por paixões que subjugam as suas potências intelectivas, terá mérito ou demérito no trabalho na exata medida em que este o ajude a desenvolver virtudes naturais e a combater os vícios. Ademais, o seu trabalho tornou-se servil, no sentido de que, como biblicamente se diz, o homem dele precisa para ganhar o pão com o suor do seu rosto (cf. Gn, III, 19). Isto sem contar as terríveis palavras da Vulgata Latina: Maledicta terra in opere tuo (“Maldita será a terra em teu trabalho”, Gn, III, 17).
Idolatrar o trabalho (coisa muitíssimo comum em nosso feérico tempo) é, portanto, além de uma agressão ao bom senso, o descumprimento de um conselho evangélico — e também um dar de ombros ao fato de que se trata de um castigo para a humanidade filha de Adão, diferentemente do que era o trabalho no estado de inocência original.
Se se elimina do horizonte a consideração desse estado original, e de sua corrupção após o pecado, nada impede que o trabalho se torne um ídolo, a razão de ser da vida das pessoas, um fim a ser buscado em si e por si.
* A propósito, a Santa Sé acaba de proibir o padre argentino Ariel Álvarez Valdés de exercer qualquer atividade acadêmica, assim como também proibir que publique artigos em revistas, jornais ou mesmo na intranet, além de também proibir que ele dê entrevistas a rádios e a emissoras de TV. O motivo da resolução vaticana (assinada nesta semana pelo Cardeal Bertone): o padre Ariel nega a existência de Adão e Eva, assim como nega a aparição do Anjo da Anunciação à Virgem, que ele considera como "passagens literárias". Colocamos esta informação porque, quanto ao primeiro tópico (Adão e Eva), no próximo artigo do meu amigo Carlos Nougué voltaremos ao tema do poligenismo — colocando-o ao lado do Magistério infalível da Igreja.