Carlos Nougué
Vimos nos artigos anteriores desta série que, no âmbito da “pura naturalidade humana”: a) a “suprema felicidade” consiste na “contemplação da sabedoria que versa sobre as coisas divinas”; b) o conhecimento de Deus é possível (ainda que seja muito inferior ao que nos é dado pela fé: com efeito, dizia Santo Tomás que “nenhum dos filósofos de antes da vinda de Cristo, apesar de todos os seus esforços, podia saber tanto acerca de Deus [...] quanto depois da vinda de Cristo sabe qualquer velhinha por meio da fé” [In symbolum Apostolorum sc. “Credo in Deum” expositio. Prologus, 4]); c) são impossíveis a total incolumidade do corpo, o apaziguamento total das perturbações das paixões internas por meio das virtudes e da prudência que adquirimos naturalmente, e o total apaziguamento das paixões externas mesmo pelo melhor dos regimes ou governos.
Ora, se, como o mostra Santo Tomás na Suma contra os Gentios (ver Livro III, caps. 25-63) ao traçar a regra geral de aperfeiçoamento do homem, a incolumidade do corpo e o apaziguamento das perturbações das paixões (internas e externas) são precondições daquela contemplação das coisas divinas, temos que o homem seria um ente, digamos, “problemático”: tem por felicidade suprema algo a que tende ou deveria tender e de que é intelectualmente capaz, mas, por mais que se esforce, é incapaz de cumprir totalmente os requisitos que a tornariam perfeitamente possível. Com efeito, não só mesmo os maiores filósofos pagãos não alcançaram o conhecimento correto de Deus, por exemplo, como criador (de fato, nem Platão, nem Aristóteles, nem Cícero, nem nenhum outro pensador de antes de Cristo conseguiu superar a aporia de considerar incriada a matéria prima), mas vivemos hoje num mundo crescentemente ateu e idólatra (e idólatra, antes de tudo, da liberdade de consciência individual). Tudo isso se deve, como diz o Aquinate, ao fato de que “a inclinação natural à virtude está estragada pelo vício” e de que “o próprio conhecimento natural do bem é obscurecido pelas paixões e pelos hábitos pecaminosos” (Suma Teológica, Ia-IIae, q. 93, a. 6, corpus).
Apesar disso, porém, o homem, qualquer homem, mesmo o ateu, quereria atingir um estado permanente de perfeita satisfação e plenitude ― quereria atingir propriamente a beatitude (lembremo-nos de que a reflexão sobre a beatitude remonta aos filósofos pagãos), ainda que a creia impossível, assim como mesmos os que não crêem na imortalidade da alma gostariam, porém, de ser imortais.
De tudo isso decorrem duas perguntas: 1) Terá Deus feito o homem assim mesmo, como um ente que apetece naturalmente algo (a beatitude) que, porém, não pode naturalmente atingir? 2) Merece naturalmente o homem, portanto (como o sugere, por exemplo, Jacques Maritain ― já o veremos detidamente), o estado de beatitude de que fala o Evangelho? Em outras palavras: dando ao homem tal estado, estaria Deus simplesmente corrigindo uma natureza que está atualmente imperfeita, já que Deus seria incapaz de deixar imperfeita uma natureza que Ele mesmo criou? Em outras palavras, ainda: ao contrário do que sempre disse o Magistério da Igreja e os doutores católicos, tal beatitude não seria algo dado gratuitamente e sem nenhum mérito por parte do homem?
Comecemos a responder, neste artigo, à primeira questão.
Antes de tudo, o homem é uma fronteira não só entre o invisível e o visível, entre o espiritual e o corpóreo, mas entre o incorrutível e o corruptível: tem ele (como o veremos aprofundadamente em outra série) uma alma imortal e (como é evidente) um corpo mortal. Em outros termos, “o homem é naturalmente corruptível segundo a natureza da matéria entregue a si mesma [grifo nosso], mas não segundo a natureza de sua forma [ou seja, segundo a natureza de sua alma espiritual e pois imortal]” (Santo Tomás, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 85, a. 6, corpus).
Ora, isso já implica uma “problematicidade”, porque, com efeito, embora o homem seja uma unidade de corpo e alma, o fato é que o corpo humano, que segundo a sua natureza material é corruptível, de certo modo está adaptado à sua forma ou alma espiritual, que é incorruptível, e de certo modo não o está. Sim, porque a matéria pode ter duas condições: uma escolhida pelo agente, e a outra segundo a sua própria natureza. Assim, por exemplo, como diz Santo Tomás (e deixemos falar longamente o mestre), “o artesão, para fazer uma faca, escolhe uma matéria dura e flexível, que possa ser afiada para ser apta para cortar. Segundo esta condição, o ferro é a matéria apta para a faca. Mas o fato de o ferro ser quebrável e adquirir ferrugem decorre da disposição natural do ferro e não é escolhido pelo ferreiro, que, antes, se pudesse, o evitaria. Portanto, esta disposição da matéria não é adequada à intenção do artífice nem à da arte. Analogamente, o corpo humano é a matéria escolhida pela natureza por ser de uma constituição apropriada para ser o órgão convenientíssimo do tato e das outras faculdades sensitivas e motoras. Mas o fato de ser corruptível é segundo a condição da matéria e não é escolhido pela natureza: antes, ao contrário, se pudesse, a natureza escolheria uma matéria incorruptível” (idem).
Mas, repito, terá Deus criado o homem assim, como um ente “defeituoso”, Deus, a quem estão absolutamente sujeitas todas as naturezas? Não, porque, ao criar o homem, Deus “supriu o defeito [ou falta, ou imperfeição] da natureza e, com o dom da justiça original, deu ao corpo certa incorruptibilidade, como dissemos na primeira parte [q. 97, a.1]. E neste sentido se diz que ‘Deus não fez a morte’ e que a morte é castigo por causa do pecado [original]” (idem).
P.S.: Em seu estilo não propriamente filosófico, mas eficientissimamente apologético, Chesterton disse muitas coisas a respeito do pecado original. Por exemplo: “a realidade do pecado original pode ser observada naquelas agradáveis tardes de verão em que as crianças, enfastiadas, começam a torturar o gato”.
Vimos nos artigos anteriores desta série que, no âmbito da “pura naturalidade humana”: a) a “suprema felicidade” consiste na “contemplação da sabedoria que versa sobre as coisas divinas”; b) o conhecimento de Deus é possível (ainda que seja muito inferior ao que nos é dado pela fé: com efeito, dizia Santo Tomás que “nenhum dos filósofos de antes da vinda de Cristo, apesar de todos os seus esforços, podia saber tanto acerca de Deus [...] quanto depois da vinda de Cristo sabe qualquer velhinha por meio da fé” [In symbolum Apostolorum sc. “Credo in Deum” expositio. Prologus, 4]); c) são impossíveis a total incolumidade do corpo, o apaziguamento total das perturbações das paixões internas por meio das virtudes e da prudência que adquirimos naturalmente, e o total apaziguamento das paixões externas mesmo pelo melhor dos regimes ou governos.
Ora, se, como o mostra Santo Tomás na Suma contra os Gentios (ver Livro III, caps. 25-63) ao traçar a regra geral de aperfeiçoamento do homem, a incolumidade do corpo e o apaziguamento das perturbações das paixões (internas e externas) são precondições daquela contemplação das coisas divinas, temos que o homem seria um ente, digamos, “problemático”: tem por felicidade suprema algo a que tende ou deveria tender e de que é intelectualmente capaz, mas, por mais que se esforce, é incapaz de cumprir totalmente os requisitos que a tornariam perfeitamente possível. Com efeito, não só mesmo os maiores filósofos pagãos não alcançaram o conhecimento correto de Deus, por exemplo, como criador (de fato, nem Platão, nem Aristóteles, nem Cícero, nem nenhum outro pensador de antes de Cristo conseguiu superar a aporia de considerar incriada a matéria prima), mas vivemos hoje num mundo crescentemente ateu e idólatra (e idólatra, antes de tudo, da liberdade de consciência individual). Tudo isso se deve, como diz o Aquinate, ao fato de que “a inclinação natural à virtude está estragada pelo vício” e de que “o próprio conhecimento natural do bem é obscurecido pelas paixões e pelos hábitos pecaminosos” (Suma Teológica, Ia-IIae, q. 93, a. 6, corpus).
Apesar disso, porém, o homem, qualquer homem, mesmo o ateu, quereria atingir um estado permanente de perfeita satisfação e plenitude ― quereria atingir propriamente a beatitude (lembremo-nos de que a reflexão sobre a beatitude remonta aos filósofos pagãos), ainda que a creia impossível, assim como mesmos os que não crêem na imortalidade da alma gostariam, porém, de ser imortais.
De tudo isso decorrem duas perguntas: 1) Terá Deus feito o homem assim mesmo, como um ente que apetece naturalmente algo (a beatitude) que, porém, não pode naturalmente atingir? 2) Merece naturalmente o homem, portanto (como o sugere, por exemplo, Jacques Maritain ― já o veremos detidamente), o estado de beatitude de que fala o Evangelho? Em outras palavras: dando ao homem tal estado, estaria Deus simplesmente corrigindo uma natureza que está atualmente imperfeita, já que Deus seria incapaz de deixar imperfeita uma natureza que Ele mesmo criou? Em outras palavras, ainda: ao contrário do que sempre disse o Magistério da Igreja e os doutores católicos, tal beatitude não seria algo dado gratuitamente e sem nenhum mérito por parte do homem?
Comecemos a responder, neste artigo, à primeira questão.
Antes de tudo, o homem é uma fronteira não só entre o invisível e o visível, entre o espiritual e o corpóreo, mas entre o incorrutível e o corruptível: tem ele (como o veremos aprofundadamente em outra série) uma alma imortal e (como é evidente) um corpo mortal. Em outros termos, “o homem é naturalmente corruptível segundo a natureza da matéria entregue a si mesma [grifo nosso], mas não segundo a natureza de sua forma [ou seja, segundo a natureza de sua alma espiritual e pois imortal]” (Santo Tomás, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 85, a. 6, corpus).
Ora, isso já implica uma “problematicidade”, porque, com efeito, embora o homem seja uma unidade de corpo e alma, o fato é que o corpo humano, que segundo a sua natureza material é corruptível, de certo modo está adaptado à sua forma ou alma espiritual, que é incorruptível, e de certo modo não o está. Sim, porque a matéria pode ter duas condições: uma escolhida pelo agente, e a outra segundo a sua própria natureza. Assim, por exemplo, como diz Santo Tomás (e deixemos falar longamente o mestre), “o artesão, para fazer uma faca, escolhe uma matéria dura e flexível, que possa ser afiada para ser apta para cortar. Segundo esta condição, o ferro é a matéria apta para a faca. Mas o fato de o ferro ser quebrável e adquirir ferrugem decorre da disposição natural do ferro e não é escolhido pelo ferreiro, que, antes, se pudesse, o evitaria. Portanto, esta disposição da matéria não é adequada à intenção do artífice nem à da arte. Analogamente, o corpo humano é a matéria escolhida pela natureza por ser de uma constituição apropriada para ser o órgão convenientíssimo do tato e das outras faculdades sensitivas e motoras. Mas o fato de ser corruptível é segundo a condição da matéria e não é escolhido pela natureza: antes, ao contrário, se pudesse, a natureza escolheria uma matéria incorruptível” (idem).
Mas, repito, terá Deus criado o homem assim, como um ente “defeituoso”, Deus, a quem estão absolutamente sujeitas todas as naturezas? Não, porque, ao criar o homem, Deus “supriu o defeito [ou falta, ou imperfeição] da natureza e, com o dom da justiça original, deu ao corpo certa incorruptibilidade, como dissemos na primeira parte [q. 97, a.1]. E neste sentido se diz que ‘Deus não fez a morte’ e que a morte é castigo por causa do pecado [original]” (idem).
P.S.: Em seu estilo não propriamente filosófico, mas eficientissimamente apologético, Chesterton disse muitas coisas a respeito do pecado original. Por exemplo: “a realidade do pecado original pode ser observada naquelas agradáveis tardes de verão em que as crianças, enfastiadas, começam a torturar o gato”.