Carlos Nougué
Pois bem, o latim expandiu-se na medida mesma em que se expandia o Império Romano, e em que se pavimentavam os caminhos por onde se propagaria o Evangelho: andá-los-ia o Apóstolo das Gentes, e tomá-los-ia São Pedro, para ir fincar a Rocha no coração mesmo do reino de César. E de certa forma o próprio latim formaria, de per si, uma via: a longa via por que se iria fazer entender em todo o mundo o conjunto da Revelação, especialmente o Novo Testamento, e a obra de grande parte dos Padres e dos Doutores da Igreja.
Em sua marcha foi o latim absorvendo não só os idiomas a ele mais aparentados, como o osco e o úmbrio, mas os de boa parte dos povos dominados pelas hostes romanas, idiomas estes que, por seu turno e em contrapartida, deixariam marcas mais ou menos profundas na língua imperial.
Mas leiamos o que diz do latim o filólogo e gramático Gladstone Chaves de Melo: “Costuma-se, sem razão, aproximar o latim do grego, e até, o que é muito mais grave, apresentá-lo como derivado do grego. A confusão parte do fato de se pensar que o latim é o latim clássico, de Cícero, Virgílio, Horácio, etc., forma culta e artificial de linguagem, fundamente influenciada pelo grego clássico. A não ser isso, o latim como língua tem tanta relação com o grego como com o germânico ou com o sânscrito ou o eslavo, quer dizer, é uma língua indo-européia” (Iniciação à Filologia Portuguesa, Rio de Janeiro, Organização Simões, 1951, p. 91).
Ora, ressalta nesta passagem de Gladstone o mais grave equívoco das modernas ciências da linguagem: por influxo dos igualitarismos, o ver na língua culta e gramaticalizada um mal, uma forma de “opressão” sobre os dialetos e falares plebeus. Analisemos o texto citado. Obviamente, tem toda a razão o conhecido filólogo ao dizer que a relação do latim com o grego é unicamente de influência literário-gramatical. Mas daí a chamar o latim clássico de “forma culta e artificial de linguagem” vai uma grande distância. Afinal de contas, em que linguagem se forjaram os grandes códigos de leis, como, por exemplo, o das Doze Tábuas, a primeira legislação escrita dos romanos? (Gravado em doze tábuas de bronze e publicado em 450 a.C, foi obra dos Decênviros, os dez magistrados designados, pouco tempo após a instituição da República, precisamente para elaborá-lo.) Ora, a linguagem culta é tanto a fonte como a cristalização da gramática, e, como já vimos, sem elas a tendência à incompreensibilidade lingüística universal, começada na Torre de Babel, se intensificaria dramaticamente.
Deve-se, pois, cultivar a língua dos maiores e acolher a linguagem forjada nas melhores fráguas da civilização. Nada disso, contudo, como também já vimos, implica reverência ao rigorismo gramatical nem, muito menos, à pedantaria pseudo-artística, e tampouco implica desprezo às obras vazadas em linguagem, digamos, rústica ou pouco castiça. Já veremos, ao mostrar o latim de Santo Tomás de Aquino, um exemplo de perfeito justo meio também no uso da linguagem, e perfeito antes de tudo porque perfeitamente adequado ao fim buscado pelo teólogo. Mas diga-se desde já que tanto no latim eclesiástico como pela pena dos grandes teólogos católicos o latim atingiu grandíssimas alturas.
Antes, porém, de falarmos um pouco do latim de Santo Tomás (e também de darmos noções gramaticais básicas do latim em geral), vejamos como comumente se divide o latim em termos temporais:
● latim arcaico ― aquele que se documenta desde a já referida fíbula áurea de Mânio (encontrada em Preneste, cidade do Lácio, no século VI a.C.) até o início do século I; nele escreveram o trágico Lívio Andrônico (c. 280-204), o comediógrafo Plauto (235-184), o poeta épico Ênio (239-170) e o poeta cômico Terêncio (c. 195-159);
● latim clássico ― o de prosadores como o soberano César (102-44) e o filósofo Cícero (século I a.C.), e de poetas como Horácio (68-8) e Virgílio (70-19), e que perdura do fim do latim arcaico à morte do imperador Otávio Augusto (14 d.C.);
● latim imperial ― o latim literário escrito, grosso modo, nos dois primeiros séculos da era cristã (após a morte de Otávio Augusto); nele escreveram o poeta Marcial (c. 40-c. 104), o literato Plínio, o Moço (62-c. 114), o retórico Quintiliano (c. 35-c. 96), o filósofo estóico Sêneca (c. 4 a.C.-65 d.C.) e o historiador Tácito (c. 55-c. 120);
● latim tardio ― tanto o latim literário dos séculos de III a V, e que por vezes alcança os séculos VI e VII, como o também chamado baixo-latim, ou seja, o usado pelos monges medievais e pautado na tradição gramatical do latim literário;
● latim medieval ― o falado e escrito no período compreendido, pouco mais ou menos, entre a queda do Império Romano (século V) e o Humanismo/Renascimento.
Mas também se divide o latim por outros critérios, como este:
● latim eclesiástico ― o que constituiu a língua oficial da Igreja;
● latim cristão ― o empregado pelos autores cristãos até a queda do Império Romano, especialmente o dos teólogos influídos literariamente por Cícero (Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho);
● latim escolástico ― obviamente, o escrito pelos escolásticos.
Ou estes:
● latim vulgar (ou coloquial) ― a linguagem plebéia romana;
● latim bárbaro ― o conjunto de fórmulas latinas mais ou menos corretas — mescladas com vocabulário de outros idiomas — que nos foi legado pelos documentos notariais da Idade Média;
● latim científico ― o conjunto de terminologias adotadas pelos cientistas, particularmente a partir do século XVIII, com base na latinização de elementos lexicais gregos ou de outras línguas.
Pois bem, o latim expandiu-se na medida mesma em que se expandia o Império Romano, e em que se pavimentavam os caminhos por onde se propagaria o Evangelho: andá-los-ia o Apóstolo das Gentes, e tomá-los-ia São Pedro, para ir fincar a Rocha no coração mesmo do reino de César. E de certa forma o próprio latim formaria, de per si, uma via: a longa via por que se iria fazer entender em todo o mundo o conjunto da Revelação, especialmente o Novo Testamento, e a obra de grande parte dos Padres e dos Doutores da Igreja.
Em sua marcha foi o latim absorvendo não só os idiomas a ele mais aparentados, como o osco e o úmbrio, mas os de boa parte dos povos dominados pelas hostes romanas, idiomas estes que, por seu turno e em contrapartida, deixariam marcas mais ou menos profundas na língua imperial.
Mas leiamos o que diz do latim o filólogo e gramático Gladstone Chaves de Melo: “Costuma-se, sem razão, aproximar o latim do grego, e até, o que é muito mais grave, apresentá-lo como derivado do grego. A confusão parte do fato de se pensar que o latim é o latim clássico, de Cícero, Virgílio, Horácio, etc., forma culta e artificial de linguagem, fundamente influenciada pelo grego clássico. A não ser isso, o latim como língua tem tanta relação com o grego como com o germânico ou com o sânscrito ou o eslavo, quer dizer, é uma língua indo-européia” (Iniciação à Filologia Portuguesa, Rio de Janeiro, Organização Simões, 1951, p. 91).
Ora, ressalta nesta passagem de Gladstone o mais grave equívoco das modernas ciências da linguagem: por influxo dos igualitarismos, o ver na língua culta e gramaticalizada um mal, uma forma de “opressão” sobre os dialetos e falares plebeus. Analisemos o texto citado. Obviamente, tem toda a razão o conhecido filólogo ao dizer que a relação do latim com o grego é unicamente de influência literário-gramatical. Mas daí a chamar o latim clássico de “forma culta e artificial de linguagem” vai uma grande distância. Afinal de contas, em que linguagem se forjaram os grandes códigos de leis, como, por exemplo, o das Doze Tábuas, a primeira legislação escrita dos romanos? (Gravado em doze tábuas de bronze e publicado em 450 a.C, foi obra dos Decênviros, os dez magistrados designados, pouco tempo após a instituição da República, precisamente para elaborá-lo.) Ora, a linguagem culta é tanto a fonte como a cristalização da gramática, e, como já vimos, sem elas a tendência à incompreensibilidade lingüística universal, começada na Torre de Babel, se intensificaria dramaticamente.
Deve-se, pois, cultivar a língua dos maiores e acolher a linguagem forjada nas melhores fráguas da civilização. Nada disso, contudo, como também já vimos, implica reverência ao rigorismo gramatical nem, muito menos, à pedantaria pseudo-artística, e tampouco implica desprezo às obras vazadas em linguagem, digamos, rústica ou pouco castiça. Já veremos, ao mostrar o latim de Santo Tomás de Aquino, um exemplo de perfeito justo meio também no uso da linguagem, e perfeito antes de tudo porque perfeitamente adequado ao fim buscado pelo teólogo. Mas diga-se desde já que tanto no latim eclesiástico como pela pena dos grandes teólogos católicos o latim atingiu grandíssimas alturas.
Antes, porém, de falarmos um pouco do latim de Santo Tomás (e também de darmos noções gramaticais básicas do latim em geral), vejamos como comumente se divide o latim em termos temporais:
● latim arcaico ― aquele que se documenta desde a já referida fíbula áurea de Mânio (encontrada em Preneste, cidade do Lácio, no século VI a.C.) até o início do século I; nele escreveram o trágico Lívio Andrônico (c. 280-204), o comediógrafo Plauto (235-184), o poeta épico Ênio (239-170) e o poeta cômico Terêncio (c. 195-159);
● latim clássico ― o de prosadores como o soberano César (102-44) e o filósofo Cícero (século I a.C.), e de poetas como Horácio (68-8) e Virgílio (70-19), e que perdura do fim do latim arcaico à morte do imperador Otávio Augusto (14 d.C.);
● latim imperial ― o latim literário escrito, grosso modo, nos dois primeiros séculos da era cristã (após a morte de Otávio Augusto); nele escreveram o poeta Marcial (c. 40-c. 104), o literato Plínio, o Moço (62-c. 114), o retórico Quintiliano (c. 35-c. 96), o filósofo estóico Sêneca (c. 4 a.C.-65 d.C.) e o historiador Tácito (c. 55-c. 120);
● latim tardio ― tanto o latim literário dos séculos de III a V, e que por vezes alcança os séculos VI e VII, como o também chamado baixo-latim, ou seja, o usado pelos monges medievais e pautado na tradição gramatical do latim literário;
● latim medieval ― o falado e escrito no período compreendido, pouco mais ou menos, entre a queda do Império Romano (século V) e o Humanismo/Renascimento.
Mas também se divide o latim por outros critérios, como este:
● latim eclesiástico ― o que constituiu a língua oficial da Igreja;
● latim cristão ― o empregado pelos autores cristãos até a queda do Império Romano, especialmente o dos teólogos influídos literariamente por Cícero (Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho);
● latim escolástico ― obviamente, o escrito pelos escolásticos.
Ou estes:
● latim vulgar (ou coloquial) ― a linguagem plebéia romana;
● latim bárbaro ― o conjunto de fórmulas latinas mais ou menos corretas — mescladas com vocabulário de outros idiomas — que nos foi legado pelos documentos notariais da Idade Média;
● latim científico ― o conjunto de terminologias adotadas pelos cientistas, particularmente a partir do século XVIII, com base na latinização de elementos lexicais gregos ou de outras línguas.