Carlos Nougué
O Padre Labouche diz quase ao final de sua análise da música de Beethoven: “É inegável, entretanto, que há uma lição por tirar dessa sonata propriamente chamada Appassionata: um ritmo desenfreado, sincopado, uma forte tensão harmônica, devida ao emprego de acordes dissonantes repetidos e não resolvidos, e crescendos desmedidos não são sem efeito sobre a sensibilidade e as paixões humanas, porque a sua origem é, precisamente, passional. Instabilidade, frustração, exacerbação são seu término.
“Certamente, um vulcão em erupção oferece um espetáculo cuja grandeza não é sinônimo de fealdade, mas é melhor não nos aproximarmos muito dele!...” (idem).
Concordo integralmente, mas com a seguinte ressalva: se um vulcão em erupção não é sinônimo de fealdade, uma música como a Apassionata é sinônimo de desarmonia, por todas as razões já expostas (com relação a seu fim, a seu efeito sobre o ouvinte e a suas características internas), e o que de qualquer maneira é desarmônico não pode ser integralmente belo; donde, ao fim e ao cabo, o vulcão em erupção que é a Appassionata ter, sim, algo de fealdade.
Há ainda, porém, algumas coisas por dizer aqui acerca do excelente texto do Padre Labouche (e pois com respeito a Beethoven e sua obra), porque não quero dar a menor impressão de que o mesmo Padre Labouche concordaria com o que concluo aqui: porque, com efeito, parece que com respeito a pelo menos mais uma coisa, além das já ditas, ele de fato não o faria totalmente. É ela:
Enquanto digo que boa parte da obra de Beethoven padece dos mesmos males de sua Appassionata, diz o Padre, com muito mais condescendência (e admiração): nem “toda a música de Beethoven é desenfreada a esse ponto [o da Appassionata]: seu Concerto para violino e orquestra, seu Quinto Concerto para piano (cujo Adágio é de nobilíssima doçura), seus Quartetos para cordas, bem como muitas outras obras, unem maravilhosamente imaginação criadora e mestria da arte musical, os dois componentes do gênio”. Concordo com grande parte dos exemplos (ou seja, excetuada parte dos Quartetos para cordas, que antecipa parte da música erudita cacofônica moderna), e de fato outros poderiam acrescentar-se; mas sigo dizendo duas coisas centrais.
a) Primeira, que boa parte da obra (de 135 peças) do compositor alemão incorre em pelo menos um dos problemas arrolados no post anterior. Veja-se, uma vez mais: não estou falando da capacidade técnica nem da genialidade de Beethoven. Mas o fato é que os vários problemas de que falo os vemos não só na Appassionata, ou na Quinta Sinfonia, ou na Nona Sinfonia, ou na “Sonata ao Luar”, mas também, por exemplo: no oratório Christus am Oelberg; na Sinfonia da Batalha; em muitas óperas, algumas das quais realmente medíocres (como Rei Estêvão e As Ruínas de Atenas); em Gli uomini di Prometeo; no Tripel – Concerto em Dó maior para piano, violino, violoncelo e orquestra opus 56; nos Concertos para piano e orquestra no 1, opus 15, e no 2, opus 19; no Quarteto nº 6 em Si bemol maior, opus 18 (melancólico e sombrio); no muitíssimo melancólico lied Adelaide; no furioso Trio para piano e cordas em Dó menor no 3, opus 1; nas patéticas, revoltadas, enervantes Sonatas para piano opus 2 e 10; no trágico Coriolano (aliás, em outros posts veremos o verdadeiro caráter da tragédia); na fúnebre Sonata para piano em Lá bemol maior, opus 26; na III Sinfonia em Mi bemol maior, intitulada Eroica; no Concerto para piano e orquestra no 4 em sol maior, opus 58, cujo segundo movimento inspirou Schopenhauer a dizer que “a arte justifica o sofrimento da vida” (como já vimos, para esse triste filósofo a arte é o sucedâneo da religião, e, como vemos aqui, da própria Cruz); no tonitruante Quarteto para cordas no 3 da série em Fá maior, Mi menor e Dó maior, opus 59, e no explosivo Quarteto da mesma série chamado Rasumovsky; no Trio para piano e cordas em Ré maior no 1, opus 70, chamado Fantasma e mortalmente triste; na dionisíaca VII Sinfonia em Lá maior; na áspera Sonata para piano em Lá maior, opus 101; etc., etc., etc.
b) Mesmo em seus melhores momentos, a música de Beethoven é, com relação aos fins da arte, de gênero inferior não só ao da música de Bach, mas mesmo ao da música barroca como um todo. E insisto: uma coisa é o gênio, e outra, muito diferente, o que se faz com ele.
Em tempo 1: Muito se fala na religiosidade e na fé de Beethoven, sobretudo por sua Missa Solene, por suas Seis Canções Sacras e, sobretudo, pelo movimento lento (“Cântico Sacro de Agradecimento de um Convalescente à Divindade”) do seu Quarteto em Lá menor, opus 132. Mas esclareça-se definitivamente: a sua “fé” era a da filosofia idealista alemã, ou seja, a de Kant e Schiller, e/ou a de Schelling – fé num “inefável”, como diz Otto Maria Carpeaux com a mesma admiração com que o darwinista e anticatólico Aldous Huxley falava da “mística” e do “Deus” de Beethoven.
Em tempo 2: Já o disse, e repito aqui um pouco mais longamente: as frases ascendentes ou de exaltação em Beethoven são amiúde bruscas, às vezes brutais, e rompem-se de modo bastante atormentado em frases descendentes muito mais longas: estas propriamente se abismam. E isso não pode levar senão o nome de desequilíbrio. Em Bach, ao contrário, a relação entre elas é perfeita, com a curva subindo e descendo em admirável equilíbrio, em proporções quase iguais e em meio a grande serenidade. É que a música de Bach expressa não só a harmonia dos coros angélicos e a harmonia das esferas: expressa também a harmonia de uma alma em seu ofício de louvar a Deus com sua música.
Em tempo 3: Para pensar: em certa catedral gótica, um escultor pôs uma escultura sua em lugar tão alto e escondido, que nenhuma pessoa a pode ver. Só Deus a pode ver.
O Padre Labouche diz quase ao final de sua análise da música de Beethoven: “É inegável, entretanto, que há uma lição por tirar dessa sonata propriamente chamada Appassionata: um ritmo desenfreado, sincopado, uma forte tensão harmônica, devida ao emprego de acordes dissonantes repetidos e não resolvidos, e crescendos desmedidos não são sem efeito sobre a sensibilidade e as paixões humanas, porque a sua origem é, precisamente, passional. Instabilidade, frustração, exacerbação são seu término.
“Certamente, um vulcão em erupção oferece um espetáculo cuja grandeza não é sinônimo de fealdade, mas é melhor não nos aproximarmos muito dele!...” (idem).
Concordo integralmente, mas com a seguinte ressalva: se um vulcão em erupção não é sinônimo de fealdade, uma música como a Apassionata é sinônimo de desarmonia, por todas as razões já expostas (com relação a seu fim, a seu efeito sobre o ouvinte e a suas características internas), e o que de qualquer maneira é desarmônico não pode ser integralmente belo; donde, ao fim e ao cabo, o vulcão em erupção que é a Appassionata ter, sim, algo de fealdade.
Há ainda, porém, algumas coisas por dizer aqui acerca do excelente texto do Padre Labouche (e pois com respeito a Beethoven e sua obra), porque não quero dar a menor impressão de que o mesmo Padre Labouche concordaria com o que concluo aqui: porque, com efeito, parece que com respeito a pelo menos mais uma coisa, além das já ditas, ele de fato não o faria totalmente. É ela:
Enquanto digo que boa parte da obra de Beethoven padece dos mesmos males de sua Appassionata, diz o Padre, com muito mais condescendência (e admiração): nem “toda a música de Beethoven é desenfreada a esse ponto [o da Appassionata]: seu Concerto para violino e orquestra, seu Quinto Concerto para piano (cujo Adágio é de nobilíssima doçura), seus Quartetos para cordas, bem como muitas outras obras, unem maravilhosamente imaginação criadora e mestria da arte musical, os dois componentes do gênio”. Concordo com grande parte dos exemplos (ou seja, excetuada parte dos Quartetos para cordas, que antecipa parte da música erudita cacofônica moderna), e de fato outros poderiam acrescentar-se; mas sigo dizendo duas coisas centrais.
a) Primeira, que boa parte da obra (de 135 peças) do compositor alemão incorre em pelo menos um dos problemas arrolados no post anterior. Veja-se, uma vez mais: não estou falando da capacidade técnica nem da genialidade de Beethoven. Mas o fato é que os vários problemas de que falo os vemos não só na Appassionata, ou na Quinta Sinfonia, ou na Nona Sinfonia, ou na “Sonata ao Luar”, mas também, por exemplo: no oratório Christus am Oelberg; na Sinfonia da Batalha; em muitas óperas, algumas das quais realmente medíocres (como Rei Estêvão e As Ruínas de Atenas); em Gli uomini di Prometeo; no Tripel – Concerto em Dó maior para piano, violino, violoncelo e orquestra opus 56; nos Concertos para piano e orquestra no 1, opus 15, e no 2, opus 19; no Quarteto nº 6 em Si bemol maior, opus 18 (melancólico e sombrio); no muitíssimo melancólico lied Adelaide; no furioso Trio para piano e cordas em Dó menor no 3, opus 1; nas patéticas, revoltadas, enervantes Sonatas para piano opus 2 e 10; no trágico Coriolano (aliás, em outros posts veremos o verdadeiro caráter da tragédia); na fúnebre Sonata para piano em Lá bemol maior, opus 26; na III Sinfonia em Mi bemol maior, intitulada Eroica; no Concerto para piano e orquestra no 4 em sol maior, opus 58, cujo segundo movimento inspirou Schopenhauer a dizer que “a arte justifica o sofrimento da vida” (como já vimos, para esse triste filósofo a arte é o sucedâneo da religião, e, como vemos aqui, da própria Cruz); no tonitruante Quarteto para cordas no 3 da série em Fá maior, Mi menor e Dó maior, opus 59, e no explosivo Quarteto da mesma série chamado Rasumovsky; no Trio para piano e cordas em Ré maior no 1, opus 70, chamado Fantasma e mortalmente triste; na dionisíaca VII Sinfonia em Lá maior; na áspera Sonata para piano em Lá maior, opus 101; etc., etc., etc.
b) Mesmo em seus melhores momentos, a música de Beethoven é, com relação aos fins da arte, de gênero inferior não só ao da música de Bach, mas mesmo ao da música barroca como um todo. E insisto: uma coisa é o gênio, e outra, muito diferente, o que se faz com ele.
Em tempo 1: Muito se fala na religiosidade e na fé de Beethoven, sobretudo por sua Missa Solene, por suas Seis Canções Sacras e, sobretudo, pelo movimento lento (“Cântico Sacro de Agradecimento de um Convalescente à Divindade”) do seu Quarteto em Lá menor, opus 132. Mas esclareça-se definitivamente: a sua “fé” era a da filosofia idealista alemã, ou seja, a de Kant e Schiller, e/ou a de Schelling – fé num “inefável”, como diz Otto Maria Carpeaux com a mesma admiração com que o darwinista e anticatólico Aldous Huxley falava da “mística” e do “Deus” de Beethoven.
Em tempo 2: Já o disse, e repito aqui um pouco mais longamente: as frases ascendentes ou de exaltação em Beethoven são amiúde bruscas, às vezes brutais, e rompem-se de modo bastante atormentado em frases descendentes muito mais longas: estas propriamente se abismam. E isso não pode levar senão o nome de desequilíbrio. Em Bach, ao contrário, a relação entre elas é perfeita, com a curva subindo e descendo em admirável equilíbrio, em proporções quase iguais e em meio a grande serenidade. É que a música de Bach expressa não só a harmonia dos coros angélicos e a harmonia das esferas: expressa também a harmonia de uma alma em seu ofício de louvar a Deus com sua música.
Em tempo 3: Para pensar: em certa catedral gótica, um escultor pôs uma escultura sua em lugar tão alto e escondido, que nenhuma pessoa a pode ver. Só Deus a pode ver.