quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O que é a história (III e final)

Carlos Nougué
Chamamos sociais aos eventos para sublinhar que, aqui, só se trata dos eventos que importam para as sociedades, para as nações, para as civilizações. Por outro lado, dizemos que os eventos sociais se cumprem pela Providência através do livre-arbítrio do homem, o que é noção teológica básica: Deus não governa as sociedades e o homem sem o concurso pessoal deste. Ele não lhe tira a capacidade de mover e de automover-se como causa segunda. Fazendo-o, o soberano Criador nada aliena da sua soberania absoluta; apenas o governa e move sem lhe violentar a natureza de pessoa (ausência de violência que, aliás, é verdadeira até com respeito aos corpos inferiores: cf. o Capítulo LXXXV do Livro I da Suma contra os Gentios, de Santo Tomás de Aquino: “A vontade divina não tira a contingência das coisas nem lhes impõe necessidade absoluta”). Segundo uma ousada expressão, “somos livremente escravos sob a Sua mão todo-poderosa”. Deve-se, porém, dizer mais: não só Deus é, mediante a Sua providência, o criador que conduz a seu fim todos os aspectos da atividade humana, mas também, como autor da graça, é o agente causador de todos os bens que se ordenam à salvação do homem, uma vez que o homem não opera estes bens senão enquanto movido pela graça divina.

Por fim, falamos em consecução dos destinos sobrenaturais da humanidade, e é preciso explicá-lo algo detidamente. Antes de tudo, obviamente não se trata aqui da humanidade endeusada que governa os sistemas históricos do panteísmo ou do neopaganismo moderno, mas sim do conjunto de indivíduos, famílias e nações que se mantiveram ou mantêm sob o governo direto do Senhor, quer, antes de Cristo e ao modo de preparação, no seio do povo judeu, quer, depois de Cristo, no seio da Igreja. Ora, o homem possui (ou pode possuir) dois elementos muitíssimo diversos: a natureza e a graça, entendendo-se a natureza como o seu corpo e alma unidos complementarmente, e entendendo-se a graça como o dom gratuito de Deus à natureza criada por Ele próprio — como a comunicação de uma operação infinita ao ente finito para elevá-lo sobrenaturalmente, sem que se diminua a divindade ao comunicar-se, nem se destrua a natureza do ente finito. Mas “como posso, Senhor, conter o Infinito no pequeno vaso do meu coração?”, perguntava-se o Padre Pio. Tal é possível porque “[...] na alma humana, como em qualquer criatura, [há] dois tipos de potência passiva, uma com relação ao agente natural, e a outra com relação ao agente primeiro, [potência esta] que pode levar uma criatura qualquer a algum ato mais elevado que o ato a que é levada pelo agente natural; e a [este segundo tipo de potência passiva] se costumou chamar potência obediencial da criatura” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, III, q. 11, a. 1, corpus; destaques nossos).

E, com efeito, na atual e derradeira etapa da economia da salvação, necessita o homem de três tipos de sociedade: dois naturais, a família e o Estado, e um formalmente sobrenatural, a Igreja, devendo-se ordenar aqueles a esta. Necessita da família para o aprendizado ético; do Estado pelo que suas instituições e leis lhe proporcionam, para ajudá-lo a adquirir e conservar os bens que lhe competem segundo a sua própria natureza; e da Igreja pelo seu magistério, pelas suas próprias leis, e sobretudo pelos seus sacramentos, que são causa da graça. Ora, a graça permite ao homem um saber infinitamente mais alto e virtudes imensamente mais elevadas, ou seja, o mais excelente viver, em que não só se é maximamente homem, mas, muito mais que isso, pode o homem, pela fé e com sua natureza conformada ao sobrenatural, ter incoada já aqui na Terra a vida eterna. E é justamente por isso que o estudioso da história pode, ao traçar os eventos sucedidos sob o governo de Deus e sob a ação da graça, relacionar a vida dos indivíduos, das famílias e dos Estados aos destinos sobrenaturais da humanidade.

O mais, ou seja, todos os sistemas históricos quiméricos preparados no caldeirão do anticristianismo, não visa senão a um triplo esquecimento: do Altíssimo, da Igreja e da lei natural. É a enfermidade que, cada vez mais aguda ao longo de séculos de voluntarismo, nominalismo e humanismo, se torna crônica com as escuras luzes dos anos de sangue e guilhotina. Daí é só um passo para que sobrevenham, qual monstros nascidos daquele monturo de sombras e terror, o super-homem, e o homem econômico, e o Estado e as corporações totais — o “admirável mundo novo” da multidão dos sem-fé e dos indiferentistas religiosos.

P.S. 1: O mérito humano em ordem à salvação não reside em nada que façamos por nós mesmos, mas no que faz Deus através de nós.

P.S. 2
: Muitos hão de se perguntar: onde estará a liberdade do homem, se Deus não só o criou para fazer o bem, mas também é quem o leva a fazer cada bem em ordem à sua salvação? Se o perguntam, é porque estão impregnados da noção de liberdade que, a começar com Pelágio e passando, séculos depois, pelo voluntarismo de Duns Scott, acabou por tornar-se amplamente dominante. Quem mais livre que Deus? E por que o é tão superior e unicamente? Porque tudo quanto há lhe é incomensuravelmente inferior, e é incapaz, portanto, de afetá-Lo. E quem são os mais livres dos homens? Os santos, porque nada do que está abaixo de Deus e dos anjos pode afetar-lhes o espírito, que, movido e moldado pela graça divina, é perfeitamente ordenado a Ele mesmo. É por isso que podia dizer o Padre Pio: “Os santos amam mais do que as pessoas apegadas ao mundo”. Em verdade, são o ápice do mundo visível.

P.S. 3: Falamos acima de sistemas históricos quiméricos, e de fato mostraremos, na série “Liberalismo e comunismo ― rebentos da mesma raiz”, que tanto o comunismo como a democracia liberal são, em sentido estrito, impossíveis. Além de monstruosos, que é o outro sentido da palavra “quimérico”.