Sidney Silveira
Milagre, na acepção da palavra, é um evento extraordinário que não obedece à ordem natural nas coisas em que se dá. A etimologia do termo (do latim miror, ari = admirar-se) aponta tratar-se de algo que não sucede natural e habitualmente. Veremos, a seguir, que desconsiderar o sobrenatural como causa do milagre é um erro primário, proveniente ou de um cabal desconhecimento dos princípios da metafísica tomista, ou da pura e simples má-fé de pessoas cujo objetivo é inocular doses cavalares de naturalismo na teologia católica, já tão corrompida pelo vendaval modernista pós-conciliar que causou a gravíssima crise em que jazemos há 45 anos. Creiam: hoje existem professores de filosofia — na Igreja ou próximo a ela — que trabalham com sistemática diligência para evitar que o catolicismo produza alguma mente verdadeiramente teológica. Têm medo disto como o diabo da Cruz.
Para estabelecermos a natureza, a possibilidade, o escopo e as causas do milagre, convém levar em conta o que diz Aristóteles na Física, a saber: a natureza é o princípio intrínseco de — perpétuo — movimento e repouso dos entes.* Acrescente-se a esta definição a premissa metafísica de que, na ordem do ser, os entes operam no limite de suas formas (é clássico o axioma “a forma é princípio de operação”). Assim, cada ente, em seu radical actus essendi, está circunscrito por um conjunto de tendências e possibilidades, intrínsecas e extrínsecas, atualizáveis em ou por sua forma, ao qual chamamos potência. Por esta razão se diz que a natureza não dá saltos, e mais: ela nunca, jamais, poderia dar o salto maior de todos, o de transitar do nada ao ser. É, pois, necessário que ela seja literalmente criada por algo que esteja além de todos os entes naturais, quanto ao ser; e este é aquele a quem normalmente chamamos Deus.
Assentemos, pois, o seguinte: em sentido absoluto, todo milagre é uma atualização — nos entes — da omnipotência divina. Explico-me: de potentia absoluta, Deus, que é o Próprio Ser, pode levar qualquer ente a atualizar possibilidades que não estão inscritas em sua forma. Pode fazer um corpo pesado flanar, contrariando todas as contingências físicas e atmosféricas que agem sobre ele; pode fazer o pão ázimo transformar-se no Corpo de Cristo; pode ressuscitar os mortos, etc. Em todos estes casos, os eventos não sucedem em razão da virtude operativa dos entes em questão, a menos que imaginemos que um corpo pesado naturalmente flane, ou que um pequeno pedaço de pão possa, por si mesmo, transformar-se no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo, ou ainda que um cadáver seja dotado de potência ativa para reassumir a vida, como se despertasse de um cochilo. Por todas estas razões, afirma Tomás de Aquino, na Suma Teológica (I, q. 110, a.4), que, em sentido próprio, ninguém senão Deus pode fazer um milagre (ex hoc ergo aliquid dicitur esse miraculum, quod fit praeter ordinem totius naturam creatar. Hoc autem non potest facere nisi Deus).
Para deixar as coisas ainda mais claras, registre-se que o milagre não é uma operação oculta da natureza, pois neste caso a sua fonte não seria divina. Em síntese, ter uma causa oculta é um aspecto acidental, e não essencial, em sentido metafísico, de qualquer evento miraculoso. Se assim não fosse, toda causa oculta para a nossa consciência seria miraculosa em sentido absoluto (simpliciter), o que não é verdade. De fato, a causa mais oculta para os homens é Deus mesmo, causa causarum, que de ninguém é conhecido em seu Ser, mas o que nos interessa estabelecer aqui é a essência do milagre, e não apenas apontar algumas de suas propriedades ou conseqüências — como o fato de a sua causa ser desconhecida por nós. Ouçamos novamente o Doutor Comum: “Na definição de ‘milagre’ se põe (...) uma coisa que ultrapassa a ordem natural, dizendo que ‘supera as potências da natureza’” (De Potentia, q. 6 art.2). Em outra passagem, Tomás nos leva a concluir que a circunstância de deixar-nos maravilhados, estupefatos ou atônitos é, tão-somente, um efeito conseguinte do milagre, pois este é em si um acontecimento "fora da ordem observada naturalmente nas criaturas" (Suma Contra os Gentios, III, c. 101).**
Pois bem, considerados estes princípios, é preciso fazer, com Santo Tomás, outras distinções no que diz respeito às possibilidades da natureza e a intervenção, nela, do sobrenatural, que caracteriza o evento miraculoso. Isto porque, não raro, embora a causa eficiente do milagre seja sempre sobrenatural, muitas vezes ela opera nos próprios limites da natureza, seja acelerando um processo (como a cura de uma enfermidade), seja recuperando uma determinada virtude (caso de uma mulher antes estéril que dá à luz, etc.).
A propósito, neste contexto são três os gêneros de milagre arrolados pelo Aquinate na Suma Contra os Gentios (III, c. 101):
Ø Quando Deus faz uma coisa que a natureza não pode realizar por absoluta impossibilidade metafísica (como nos casos acima citados da ressurreição dos corpos, da transubstanciação na Eucaristia, etc.);
Ø Quando Deus faz algo que, por princípio, a natureza poderia realizar, mas não na mesma ordem de coisas, naquele indivíduo e em dado momento, devido a impedimentos acidentais, na perspectiva metafísica (que um paralítico volte a caminhar e um cego a ver, considerando aqui o seguinte: caminhar e ver são potências naturais inscritas na forma entis humana, mas que estavam circunstancialmente impedidas em determinado homem, etc.);
Ø Quando Deus faz algo servindo-se instrumentalmente das potências inscritas na natureza, para apressar um processo que ela mesma realizaria por vitude própria (como por exemplo a cura de uma febre).
Em todos estes casos, a causa final e a eficiente são absolutamente sobrenaturais, pois se trata de um influxo direto do sobrenatural no natural. Mas há ainda coisas por indagar, e uma delas é a seguinte: porventura é o milagre ontologicamente possível? Ora, quando falamos de possibilidade nós o estamos fazendo de um ponto de vista metafísico, perguntando como algo — nesta ordem de coisas que são — pode ou não ser atualizado, pode ou não suceder. E a primeira resposta que se nos impõe é a seguinte: a possibilidade do milagre radica na omnipotência do ser infinito, que é Deus.
Citemos novamente o Aquinate:
“Deus — que é a causa do ser das coisas naturais; que conhece todas as criaturas e a todas provê; que não age premido pelas necessidades da natureza — pode alterar o curso da natureza com relação aos seus efeitos particulares (...). Não há dúvida de que Deus pode operar sem o concurso das causas [naturais] atuando independentemente delas e produzindo nelas os efeitos que produz em virtude do seu Próprio Ser (...) e também pode Deus produzir coisas que vão contra o curso comum usual da natureza”. (De Potentia, q. 6, art. 1).
Neste contexto, vale lembrar que, em diferentes obras, Santo Tomás insiste que nem os anjos nem demônios podem realizar milagres, assim como também os santos. Quando um milagre ocorre por ação de um santo ou de um anjo, o Aquinate lembra que estes atuam apenas como causa instrumental, sendo a causa principal, sempre, Deus mesmo. Com relação aos demônios, eles só podem realizar milagres aparentes porque estão fora da ordem da Graça gratis dada, por meio da qual o milagre acontece nestas ocasiões.
A possibilidade radical do milagre está, portanto, no Próprio Ser Subsistente que não possui mescla de potência passiva e é, na realidade, o criador e também o mantenedor de todas as coisas no ser. Em resumo, sem o Ipsum Esse não haveria entes de forma alguma; ademais, assim como um homem, ordenando a matéria, a faz “obedecer” a seus comandos e executar fins que, sem a ação de sua inteligência, ela jamais poderia atualizar sozinha, assim também Deus, dada a sua potência absoluta, pode fazer com que os entes obedeçam a Seus desígnios, daí dizer o Aquinate em diferentes obras que, em todas as criaturas, há uma potentia obedentialis.
Entre as finalidades do milagre, de acordo com o Aquinate, duas se destacam: sustentar a fé dos crentes, conduzindo a inteligência deles à excelsa profundidade dos mistérios revelados; e confirmar a verdade do magistério e a autoridade de ensiná-la (Suma Teológica, II-II, q. 178, a.1).
* A crítica que faz Santo Tomás a este conceito de natureza, num de seus comentários a Aristóteles, não o joga de todo por terra; o Aquinate apenas aponta que o conjunto de entes naturais não pode ser todo deste tipo, ou seja, ter apenas princípios intrínsecos de movimento e repouso, pois neste caso o universo seria autocriado, o que é absurdo, pois nada pode movimentar-se para ser o que é a partir de si mesmo. É preciso, pois, haver uma causa supra naturam extrínseca para todos os entes naturais, razão pela qual a natureza é, como o próprio Tomás o afirma, Ars divina.
** Nesta mesma passagem do livro De Potentia Dei, afirma o Aquinate que há uma diferença entre milagre (miraculum) e maravilhamento (mirabilia), pois o primeiro diz respeito à essência do evento miraculoso, e o segundo, a um aspecto extrínseco a ele, acidental. Nas palavras do Santo Doutor, o milagre é superior à nossa capacidade de com ele admirar-nos.