segunda-feira, 10 de outubro de 2011

As seitas e a Igreja no Ocidente pós-católico


Sidney Silveira


Juntem-se, numa fórmula doutrinal, idéias fantasiosas as mais contrárias ao senso comum (se possível, numa mescla de sutis contradições entre os princípios que as regem, para desorientar as mentes), inserindo-as num simbolismo que lhes dê a verossímil aparência de sistema coerente. Crie-se então uma rigorosa hierarquia que contemple práticas iniciáticas e ritos de passagem, a começar por algum “batismo” ou prova de fogo à guisa de promessa solene, de pacto de lealdade entre pessoas a ser cooptadas, a princípio, para um grupo restrito — o núcleo duro. Remeta-se tudo isso à autoridade de um guru, de um “santo”, de um presumível mestre espiritual iluminado, de um filosófo profeticamente “inspirado” em torno do qual orbitará a camarilha dos iniciados, a tropa de elite que não apenas buscará novos adeptos, como também defenderá o grupo de quaisquer perigos externos, não raro recorrendo a expedientes como calúnia e detração sistemáticas, ou, nos casos mais graves, ameaças e assassinatos. Teremos, então, uma seita.


Seja uma seita política, seja uma seita religiosa, o que dá forma a todo grupo sectário teleguiado por intelectuais testa-de-ferro é a mentira quanto aos princípios e aos fins que servem de causa final, ou seja, que são a alegada razão de sua existência e atuação. A propósito, para a seita realmente prosperar a mentira não pode ser isolada; tratar-se-á, na prática, de um sofisticado sistema de mentiras misturadas a nobres verdades, pois sem essa capa, sem essa aparência de virtude ou bondade não se conseguem arregimentar prosélitos. E mais: nem todos no grupo podem ter plena ciência do logro, com exceção dos chefes e de poucos seguidores cuja lealdade cega tenha sido devidamente testada e aprovada. Além disso, o sistema “filosófico” deve ser apoiado por uma sensibilidade artística adequada aos fins da seita, dado que esta também se servirá da instância estética como instrumento de doutrinação das almas.


Pois muito bem. Se se usa a palavra “heresia” com analogia de proporcionalidade torna-se possível aplicá-la a toda e qualquer impugnação obstinada da verdade, que caracteriza as seitas. Assim, podemos, por exemplo, perfeitamente chamar ao nazismo de herético, dado o sistema de mentiras em que se baseava. Como a bibliografia hoje demonstra com abundantes documentos, a seita nazista foi forjada nos albores da segunda década do século XX na loja maçônica Thule, de Munique, cujo símbolo era a espada negra encimada por uma suástica. Ela foi alimentada, no plano teórico, por um ocultismo que fazia uso — numa mescla verdadeiramente infernal — de mitos sumérios, gnose, astrologia, cientificismo, milenarismo, arianismo, teozoologia (nas teses do ex-monge cisterciense Jörg Lanz, grão-mestre da Nova Ordem do Templo), eugenismo, pan-germanismo, militarismo, misticismo do sangue, paganismo, anticatolicismo, anti-semitismo, etc. Ora, como sempre ocorre quando a mentira ganha decisivo espaço na Pólis, seja em que contexto histórico for, instaura-se a desordem e se abre espaço para a maldade em gigantescas doses. Foi assim com o nazismo, com a Revolução Francesa (outra obra maçônica, nos princípios e nos fins), etc.


Retenhamos, pois, bem isto:


Ø toda seita é fundamentalmente contrária à verdade e difusora, em alguma escala, do caos social — do qual se alimenta, sobrevive.


Ø toda seita inverte a ordem dos fins naturais, pondo a verdade a serviço do erro, o espírito a serviço da matéria. Em palavras simples, subordina alguns meios bons a fins maus, com o objetivo de crescer no mundo, ter poder, manietar pessoas, circunstâncias, fatos políticos, etc.


A história da humanidade é repleta de acontecimentos planificados, difundidos e/ou executados por grupos sectários — que, à luz da fé, podem muito bem considerar-se diabólicos. Se olharmos a história das heresias na Cristandade, por exemplo, veremos as características acima arroladas em absolutamente todos os grupos que, para crescer no mundo à margem da verdade, usaram dos expedientes de doutrinação e manipulação os mais atordoantes, levando consigo incontáveis almas à perdição. Contrariando a fé sobrenatural, envenenavam a fortiori a ordem temporal com todo o tipo de mentiras políticas. A propósito, do tirano absolutista Felipe, o Belo, rei de França no início do século XIV, até as revoluções dos séculos XIX e XX assistimos a uma longa caminhada do manejo eficaz da mentira política, não raro concebida por sociedades secretas ou “discretas”.


Um exemplo de seita? Os cátaros ou algibenses, cujo dualismo gnóstico foi levado ao mais desvairado paroxismo. Sem entrar em pormenores históricos — pois não é o objetivo deste breve texto —, apenas registremos algumas de suas teses e características do seu modus operandi.


Ø Como para “salvar-se” era preciso libertar a alma do corpo, o espírito da matéria, tornava-se necessário diminuir ao máximo o influxo do corpo sobre a alma. Assim, entre os atos “abomináveis” para os cátaros estariam os de comer carne, ovos, laticínios, etc., pois nessa louca visão tais alimentos contribuíam para o domínio do corpo sobre a alma.


Ø O mais terrível ato de todos seria o da procriação, mesmo no matrimônio. Ato “antinatural” que em sua opinião contribuía satanicamente para propagar os corpos. O uso do sexo no matrimônio, para esses infelizes, seria muitíssimo mais “pecaminoso” do que o ato homossexual, por ser ordenado à “diabólica” geração de filhos.


Ø O matrimônio era, como se pode deduzir, expressamente proibido entre os cátaros.


Ø O suicídio era estimulado na seita e praticado por alguns dos “perfeitos”, que serviam de mártires à facção. Há relatos de homens que se cortavam em partes estratégicas do corpo para morrer sangrando lentamente, à vista de outros membros do grupo. Outros simplesmente jejuavam até morrer.


Ø Pois bem, para adentrar o patamar dos “perfeitos” havia o consolamentum, batismo espiritual ou profissão religiosa que, por meio de uma espécie de rito mágico, prometia liberar a alma do maléfico cárcere da matéria. Nessas ocasiões, os ministros impunham as mãos sobre a cabeça do neófito, que prometia solenemente cumprir os preceitos “morais” da seita até o fim. O mesmo sucedia com as mulheres, que no catarismo eram obviamente separadas dos homens.


Ø A propósito, muitos neófitos eram aconselhados a suicidar-se imediatamente após o consolamentum, para não correr o risco de cair em “pecado”. Suicidar-se era, pois, uma forma simples, e para eles louvável, de libertar a alma do jugo da matéria.


Ø As cerimônias religiosas consistiam na leitura do Evangelho pelos “perfeitos”, que em geral realizavam uma confissão coletiva dos pecados, dando absolvição indiscrimiada a todos. Um detalhe nada desprezível: os pecados eram perdoados sem que o pecador precisasse arrepender-se.


Ø Toda vez que um crente comparecia diante de um “perfeito” (que, segundo as variadas doutrinas dessa gnose, era o verdadeiro cátaro) era compelido a um ato de adoração — no qual, de joelhos, suplicava para morrer na seita e obedecer cegamente os superiores, até o fim. Tal adoração era às vezes composta do rito de melioramentum, sobre o qual não discorreremos aqui.


Ø Os cátaros desprezavam todos os sacramentos da Igreja e negavam, particularmente, a presença real de Cristo na Eucaristia.


Independentemente de qualquer dado relacionado à fé, imagine-se uma sociedade fundada em tais “princípios”: proibição de nascimentos e estímulo ao suicídio! Não duraria uma geração sequer. Ora, como ocorre com toda seita quando age, sementes do mal, do erro, da mentira, do dolo, da fraude política são lançadas no tecido social e cumprem papel grandemente desagregador, destruidor. Combatê-los com todas as armas é a única forma de evitar a supremacia da maldade.


A diferença, pois, entre qualquer seita religiosa ou política a partir do último quartel do século XX e as da época da Cristandade — seja a dos cátaros, a dos maniqueus, a dos donatistas, a dos marcionistas, a dos pelagianos, a dos jansenistas, etc. — é que, então, elas eram consideradas heréticas e admoestadas, perseguidas, combatidas pela Igreja com todo vigor, nos planos magisterial, político, jurídico e também militar. A criação de sociedades secretas não poderia mesmo ser tolerada pela Mestra das Nações, que, por ordem expressa de Cristo, ensinava a proclamar a verdade nos telhados (...et quod in aure auditis praedicate super tecta. Mt. X, 27). O dilema, aqui, é o seguinte: ou a Pólis será conformada por um conjunto de valores que expresse a natureza das coisas — entre os quais o de verdade é basilar —, ou será governada a partir de erros que, quanto mais se afastem dos bens reais que são espelhos das perfeições divinas, mais levarão ao caos, ao abismo, à Geena de fogo.


Eis, portanto, um dos motivos por que, numa sociedade mais ou menos saudável, se deva proibir, combater, atacar frontalmente as seitas: a defesa do bem comum político, o que do ponto de vista teológico depende fundamentalmente da supremacia do bens espirituais sobre os materiais na forma da lei (assim como, analogamente, o fim natural depende do fim último sobrenatural para vingar). O único remédio diante de tais ameaças é haver uma autoridade espiritual que, pairando sobre a instância política, intervenha toda vez que o bem comum seja ameaçado, e com ele a consecução do fim último dos indivíduos e das sociedades: Deus, a ser contemplado na visão beatífica. Essa autoridade era a da Igreja durante dois milênios, antes de o modernismo mudar o vetor das relações entre os poderes espiritual e material, ou seja, as relações entre o Estado e a Igreja. Não à-toa dizia Leão XIII numa bela Encíclica que, entre os bens a ser protegidos pelo Estado, em primeiro lugar estão os da alma. Ah, quão catolicamente distantes estávamos do liberalismo político, de cariz maçônico, sob a santa custódia do Magistério da Igreja!


O pior de tudo é que a Igreja não apenas não mais combate as seitas, mas aprova-as dentro do Corpo Místico — dando validade canônica a grupos de leigos ou clérigos claramente sectários, que usam algo da Tradição eclesiástica, algo da doutrina para crescer, como um câncer, em suas próprias fileiras. Obviamente refiro-me aqui a grupos neoconservadores, os quais apreciam a Tradição até o ponto em que se lhes critique a chamada "liberdade de consciência" (combatida por Gregório XVI, e que culminou no conceito de liberdade religiosa); que se lhes aponte o crime contra a fé representado pelo ecumenismo; etc. Na sua vertigem libertária, sendo católicos, querem libertar-se da doutrina, ou melhor: reinventá-la forçosamente.


Quanto às seitas liberais tidas por filocatólicas, elas cumprem hoje — mais de 100 anos depois da Pascendi — o papel de confundir a intelectualidade leiga, lançando sobre ela uma cortina de fumaça. O seu intuito maior é tentar evitar, tanto quanto possível, que a doutrina tradicional seja preservada por grupos que poderiam fazer pressão sobre a comunidade eclesial, no sentido do retorno à Tradição.


Ou alguém ainda duvida de que, no atual estágio da luta de Satanás contra a Igreja, os leigos têm papel-chave na defesa da fé, em razão da defecção da Hierarquia no que tange ao Magistério?