terça-feira, 26 de maio de 2009

Padres “do mundo” e padres “no mundo”

Sidney Silveira
Concebamos um padre-galã, cantor barítono de voz aveludada, vestido de forma absolutamente mundana (não raro, com retoques de sensualidade e muita maquiagem), a entoar em shows com luzes pirotécnicas um tipo de música que Platão — o pagão Platão! — chamava de “langorosa”, nefasta para a sua República ideal*. Em suma: um tipo de música que, dada a sua melodia pobre e melosa, induz os incautos que a escutam a um estado psicológico narcotizante, no qual a sensibilidade é aguçada semi-hipnoticamente. Um tipo de música que acarreta o que místicos e filósofos medievais chamavam de divagatio mentis, quer dizer: a dissipação da inteligência em imagens em si desimportantes, um estado de espírito em que as rédeas da fantasia simplesmente se desorientam, perdem a sua ordenação à potência cogitativa da alma**. Eis, aqui, num breve quadro aproximativo, a figura e o trabalho do padre Fábio de Melo, um dos recordistas na venda de CDs e DVDs no último ano no Brasil — o que é um sintoma gravíssimo não apenas da doença de que padece a catolicidade em nosso país, mas da doença de que padece a sensibilidade, o gosto médio das pessoas.

Mas o pior não é isto. O pior é que, sendo padre, esse jovem desconhece absolutamente a história do Magistério bimilenar da Igreja, a julgar pelas afirmações que faz em programas de auditório e em talk-shows sobre “doutrina” católica. A entrevista concedida no programa do Jô é apenas um exemplo: Fábio de Melo não apenas não soube responder à primeira pergunta, sobre se a teologia é uma ciência (ah, se tivesse ao menos lido a primeira questão da primeira parte da Suma Teológica!), mas engendrou um conjunto de barbaridades que, consideradas à luz da doutrina de sempre da Igreja, são o que tecnicamente se convencionou chamar de heresias ou blasfêmias. Exemplos do engenho teológico do padre Fábio de Melo: a) só houve, na verdade, uma única Missa (a da Santa Ceia), pois, em sua opinião, as demais não podem sequer receber tal nome; b) passamos, nesta vida, do estado “adâmico” ao estado “crístico”, idéia inspirada no malfadado evolucionista Teilhard de Chardin, incluído acertadamente no Index Librorum Prohibitorum, além de farsescamente envolvido na fraude do Homem de Piltdown. Essa opinião é herética em toda a linha, pois dá por pressuposto que essa passagem de um “estado” a outro é natural e se dá nesta vida, ou seja: é meramente humana. c) após dizer que foi muito namorador na adolescência (o que, em si, não seria um problema maior), Fábio de Melo deu claramente a entender que é impossível um sacerdote aderir ao celibato sem passar pela experiência do amor carnal***. Tal afirmação só poderia advir de alguém que, tendo maior ou menor experiência do amor carnal, mostra não ter nenhuma do amor sobrenatural que provém da Graça, e, portanto, de alguém que descrê da possibilidade de castidade nesta vida — uma castidade oriunda não de experiências humanas, mas da gratia gratis dada. De alguém que não conhece o Magistério da Igreja nesta matéria. A propósito, o padre Fábio disse nessa mesma entrevista que a sua vocação aconteceu depois que viu a piscina do seminário (santa inspiração!); d) inquirido pelo Jô sobre o “absurdo” do conceito católico de matrimônio (“só para procriar”, nas palavras do apresentador), o padre Fábio engrolou a língua e mostrou não conhecer não digo a doutrina tradicional (aquela que lindamente Pio XI nos lembrava em Casti Connubii), mas sequer a doutrina hoje vigente (em si mesma problematicíssima, pelos motivos que apontaremos noutro texto); e) professor de teologia (ai meu Deus!), padre Fábio disse que cabe à teologia ligar e não dividir (embora não dissesse ligar o quê a quê). Esqueceu-se da parábola do joio e do trigo o nosso “neoteólogo”? Sim, esqueceu-se que o mesmo Cristo disse: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa”. (Mt. X, 34-36). Poupo-me, aqui, de trazer à luz o que disseram grandes Doutores e o próprio Magistério sobre esta passagem do Evangelho, para não estender por demais o texto.

Não conheço o padre Fábio de Melo e não lhe quero mal. Mas já que a hierarquia é absolutamente frouxa e permite que esses sacerdotes reneguem o seu verdadeiro múnus, cabe aos leigos conhecedores do essencial da doutrina defendê-la de ações maléficas, no seio da própria Igreja. Na verdade, a situação é dramática, na medida em que a própria hierarquia se omite, em parte por estar ela mesma contaminada pelo vírus modernista-liberal que há 40 anos tomou conta de quase tudo. O que advirá da situação atual da Igreja é um mistério inscrito nos desígnios da Providência. Por um lado, não é demais lembrar a terrível frase do Senhor: “Quando vier o Filho do Homem, acaso encontrará a fé sobre a terra?” (Lc. XVIII, 8). Por outro lado, cabe-nos defender a doutrina com unhas e dentes, esperançosos da promessa do mesmo Cristo, de que as portas do inferno não prevalecerão sobre a Igreja (Mt. XVI, 18).

A diferença entre padres do mundo e padres no mundo é esta: entre os primeiros há os que perderam quaisquer resquícios de sacralidade, e há também os que, embora mantenham a fé, se omitem de defendê-la publicamente contra os absurdos inter pares. Quanto aos segundos, estes são cada vez mais raros e continuam sendo um sinal da absoluta sobrenaturalidade da fé. E é na Fraternidade Sacerdotal São Pio X — FSSPX que se encontram, em sua maioria.

São verdadeiros heróis da resistência.

* Neste ponto, Platão era absolutamente realista. Ele sabia muito bem que a exacerbação da sensibilidade representa, em todo homem, uma atrofia das capacidades superiores da alma racional. Se se disseminasse na Pólis, tal excitação da sensualitas acarretaria um tipo de sociedade dramaticamente má, incapaz de ter acesso aos valores superiores que configuram a condição humana. Uma sociedade incapaz de sair da caverna descrita no Livro VII da República. Hitler, o diabólico Hitler, também sabia disso: como se lê na monumental biografia escrita por Joachim Fest, depois de constatar que, em seus discursos noturnos, o efeito hipnótico sobre a multidão era maior, nunca mais Hitler discursou pela manhã. Mas, ao contrário: procurou a noite, e sempre com algo espetaculoso para distrair a massa, como na vez em que ordenou que todas as baterias antiaéreas da Alemanha, no entorno do Estádio Olímpico (onde faria a sua satânica arenga), apontassem a luz para um ponto convergente no céu. Quando isto foi feito, a multidão ficou apalermada com a pirotecnia e totalmente “aberta” para engolir o que dissesse o seu líder. O mesmo se pode dizer do truque de alguns pseudofilósofos liberais que, em meio a algumas verdades lapidares, escrevem algo baixíssimo, não raro uma mentira, e assim inoculam o seu veneno. Voltaremos a isto noutro texto.
** Uma sensibilidade desordenada acarreta um grande déficit na potência cogitativa — na prática, uma das mais afetadas em nossa dinâmica psíquica. Como vimos, a cogitativa capta as intenções não percebidas pelos demais sentidos, e é por este motivo chamada por Santo Tomás de razão particular — a partir da qual a ratio universalis exerce o seu império sobre as paixões. Uma sensibilidade molenga, acostumada a músicas melosas e de timbre adocicado, assim como a imagens cândidas, produzirá o que eu chamo de “psique Poliana”. Uma psique não aparelhada para a captação das verdades mais elevadas, ou seja: para a visão da real condição humana.
*** O mesmo se pode entrever na entrevista concedida por outro padre, o falecido Leo (mestre de Fábio de Melo), ao mesmo Jô Soares, na qual ele deixa escapar com certa ironia o seguinte: “Um dia, um padre idoso me disse: sou virgem. Achei bonito, isso”. A propósito, nessa mesma entrevista o padre Leo disse uma coisa que seria muito cômica se não fosse desgraçadamente trágica: descobriu a sua vocação numa certa noite psicodélica, após fumar vários cigarros de maconha e depois de cheirar várias carreiras de cocaína. Em síntese: ao contrário das grandes e verdadeiras vocações, que implicam o abrir de olhos (da inteligência) para uma realidade sobrenatural beatificante, e para a própria miséria do pecado em que se jaz, a vocação do padre Leo se deu num estado de semiconsciência, de grande consumição pela droga. Um estado em que a inteligência estava obliterada por uma sensibilidade distendida artificialmente por meios alucenógenos. Nessa entrevista, o falecido padre Leo dizia que o problema da maconha comercializada atualmente é que não é pura, mas misturada com outras substâncias. A que ele fumava em sua juventude, sim, era “da boa”.
Em tempo: Durante o Concílio de Nicéia (325), São Nicolau — aquele que o mundo sem fé transformou no "bom" velhinho Papai Noel — esmurrou o herege Ário, autor da tese que negava a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na ocasião, ninguém acusou a São Nicolau de falta de caridade. É claro que não estamos nós aqui a dizer que vamos esmurrar "A", "B" ou "C", mas aduzimos este exemplo apenas para mostrar que o zelo pela verdade da fé deve estar muitíssimo acima de respeitos humanos e de conveniências políticas, ou até mesmo de sanções eclesiásticas (nos casos em que a autoridade hierárquica depõe voluntariamente a sua autoridade magisterial e contraria a Tradição, e usa de alguns meios disciplinares para calar os que se recusam a seguir os erros. Aqui, vale o princípio da obediência ao princípio superior).
Em tempo2: A propósito do matrimônio, deixo aqui um depoimento pessoal, que pode servir de testemunho para alguém. Depois de me converter mui tardiamente e após grandes sofrimentos e provações (fiz a minha primeira comunhão dos 39 para os 40 anos), passei a estudar com muito maior afinco o Magistério. Dentre os meus grandíssimos pecados passados, estava o ter-me casado na Igreja sem nem sequer ser católico, enquanto a jovem nubente a que me uni sequer era batizada. Após consultar dois padres ligados a FSSPX, por intermédio do meu amigo Nougué, estes disseram-me que o meu caso era de nulidade. Entrei então com um processo num tribunal eclesiástico e, depois de quatro anos e muitas idas e vindas, no dia 24/12/2008 (exatamente na véspera do último Natal) recebi pelo correio a Declaração de Nulidade Matrimonial, que atestava que o meu casamento jamais fora um sacramento. Não que a minha felicidade dependesse disto — pois, após muito penar com relacionamentos desagradáveis a Deus, vi que nenhuma felicidade é possível, se se está longe da lei da Igreja —, mas o fato é que restituí uma verdade capital em minha vida. Graças a Deus.