Carlos Nougué
A Igreja sempre assumiu as artes em função da liturgia, ou seja, do “conjunto de cerimônias e ritos por meio dos quais [ela] expressa e manifesta sua religião para com Deus” (R. P. Jesús Mestre Roc, Curso de introdución a la liturgia, p. 3, texto encontrável no site Stat Veritas). E, assumindo-as assim, não podia senão elevá-las ao ápice de sua potência: com efeito, tudo na criação atinge seu ápice no serviço de Deus. Com respeito à música litúrgica, dizia o compositor Gounod: “Não conheço nem uma só obra saída do cérebro de algum grande mestre que possa pôr-se em paralelo com a majestade aterradora desses cantos sublimes que diariamente ouvimos [que se ouviam então, acrescente-se hoje] em nossos templos e em nossas cerimônias fúnebres: o Dies irae e o De profundis. Nada chega a tal altura nem a tal potência de expressão e de impressão”. Ou Mozart: “Quanto a mim, daria gozosamente todas as minhas obras por ter sido o autor do Prefácio”. Com respeito à poesia, que obra do mundo pode equiparar-se em sublimidade, para dar apenas um exemplo entre tantos e tantos, ao ofício de Corpus Christi escrito por Santo Tomás de Aquino? Com respeito à arquitetura, ou seja, a arte que hospeda a liturgia, que edifício pode senão ajoelhar-se diante de uma catedral gótica (escreverei proximamente um artigo sobre o gótico) ou mesmo de uma igreja românica ou barroca? E, quanto à pintura e à escultura, que obra grego-romana, para falar do melhor, não se apequena diante dos retábulos e estátuas e vitrais que adornam (ou adornavam) nossos templos fazendo deles como que imagens da cidade celeste?
E, mutatis mutandis, vale para todas as artes o que Monsenhor Gay diz especialmente sobre a música: “Há 19 séculos que a Igreja não cessa de cantar, e assim continuará até o fim do mundo, pois o canto não é para ela um passatempo, nem um prazer para ela ou para os demais; é um dever, um dever constantemente prescrito e constantemente cumprido; é o acento regular de sua linguagem e uma das fórmulas de seu culto. Cantava-se nas catacumbas, cantou-se nos cadafalsos, cantou-se em torno dos féretros, e nunca se cantará com um coração tão alegre como quando sobre as ruínas amontoadas pelo Anticristo se levantarem os olhos para o oriente para saudar a vinda da última e total redenção” (Virtudes cristianas, II, apud R. P. Jesús Mestre Roc, ibid.).
Como todavia costumo dizer, as artes, ainda que em plano indubitavelmente inferior ao litúrgico, também servem ou deveriam servir para a vida do católico fora dos templos. Não obstante, no alegrar uma casa ou no entreter a cidade ou no contribuir para forjar a unidade de uma nação, não podem elas porém afastar-se do serviço de Deus a ponto de lhe ser em algum grau contrárias; têm, em verdade, de em algum grau prestar também serviço a Deus; têm de estar ordenadas, de maneira mais ou menos direta, a Ele. Têm ao menos de “estar à sombra do Evangelho”, como ouvi certa feita numa bela homilia, e como de fato estão os quadros de um Le Nain, o pintor francês (do século XVII) dos humildes, das famílias do campo, cujas figuras, como diz o Padre Calmel em Théologie de l’histoire (Dominique Martin Morin, 2ª. ed, 1984, p. 70), ”refletem um equilíbrio e uma dignidade que já não se vêem nos agricultores contemporâneos. Por que aquela calma, aquela gravidade, aquela paz impressa em seus rostos? Sem dúvida porque os camponeses que ele evoca guardam ainda mais ou menos intacto o patrimônio de virtudes cristãs trazidas aos gauleses mais de quinze séculos antes pelos primeiros bispos e pelos primeiros mártires. Fora das virtudes cristãs, jamais teríamos conhecido esta paz da alma, esta segurança diante da adversidade, esta força da alma que transfiguram e sobrelevam as frágeis virtudes humanas, que fazem com que a vida aqui em baixo, neste vale de lágrimas, ainda que repleta de provações, não seja porém envenenada nem desesperadora. São virtudes humanas sobrelevadas pela graça o que está impresso nos nobres rostos de Le Nain”. E, ao retratá-lo, prestava Le Nain ao seu modo, no seu grau abaixo do litúrgico, um serviço de louvor a Deus, ao mesmo tempo que, em ordem a esse serviço, prestava beleza ao mundo dos homens.
Mais ainda: podemos os católicos assimilar a obra de grandes artistas não católicos como o compositor luterano Johann Sebastian Bach ou o escritor ortodoxo russo Fiodor Dostoievski, contanto que saibamos expurgar dela o nefasto ou acusá-lo (o herético da letra de certas cantatas de Bach, o antipapismo, o pan-eslavismo, etc., em certas passagens de Dostoievski), e nos lembremos, sempre, de que somos não só de Cristo, mas de sua esposa, a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana.
Para a relação do católico com as artes, contudo, o veneno mais insidioso não está propriamente nas obras de arte francamente não católicas ou blasfemas; está sobretudo no pensar e dizer que as artes têm mais ou menos autonomia com respeito ao fim último, com respeito a Deus. No considerar que tanto a jurisdição do político como o âmbito das artes podem instalar-se num terreno neutro com respeito ao Senhor; no considerar que, além daquele fim último, tem o homem um fim natural, a pólis, com suas necessidades naturais, entre as quais a do belo propiciado pelas artes; no considerar que há uma cidade intermédia entre a cidade de Deus e a do amor-próprio e do demônio, com artes intermédias entre a arte para Deus e a arte para o amor-próprio e o demônio. E este veneno, o veneno do humanismo, se inoculou em certo grau até nos melhores de nossos combatentes antiliberais. Com efeito, como diz o Padre Álvaro Calderón em El neonestorianismo actual – A propósito de la película “La última tentación de Cristo” (texto encontrável no já referido site Stat Veritas), “O verdadeiramente grave é o câncer que carcome hoje o catolicismo por dentro. Até os principais órgãos estão infectados com os princípios do inimigo, e, como acontece com o câncer, quanto mais se quer viver, mais rapidamente se morre, porque as próprias funções vitais da vítima servem para agravar o mal”. E uma das muitas provas que se poderiam aduzir ao dito, temo-la na contribuição dada pelo grande Louis Veillot para impedir se pusesse no Index Librorum Prohibitorum a obra de Léon Bloy (1846-1917). Dizia o eminente antiliberal com respeito a essa obra: “Trata-se de arte apenas”. Ou seja, de meras metáforas; estão em seu terreno neutro; o belo tem autonomia; etc.; etc.; etc. Mas, hélas!, aquele mesmo Léon Bloy, esse mesmo “Leão” que gerações e gerações de católicos consideraram e ainda consideram como defensor santamente irado da tradição e da ortodoxia, esse mesmo escritor que dizia não conhecer senão um só Satã poético verdadeiramente terrível, “o de Baudelaire, porque é sacrílego” (Le Révélateur du Globe, 1884), esse mesmo “profeta” triste, algo desesperado e eo ipso parente espiritual de Sören Kierkegaard, esse mesmo “vaticinador” a que se atribuía uma piedade máxima, de comunhão quotidiana, mas perpassada de um gosto excessivo pelo sofrimento, esse mesmo homem que consideravam um místico e que se considerava possuidor de um segredo revelado a ele e apenas a ele, esse mesmo era um arraigado e cabal luciferista!
Aqui não me estenderei demasiadamente sobre o assunto, até porque há textos que o tratam de modo decisivo. São eles: L’œuvre étrange de Léon Bloy, de Louis Jougnet, e L’enfant prodigue selon Léon Bloy – Une interprétation blasphématoire, de Antoine de Motreff (ambos em Le Sel de la Terre, n. 52, Printemps 2005, Avrillé, Couvent de la Haye-aux-Boshommes, pp. 189-202 e pp 116-140 respectivamente); e as obras Un Prophète luciférien, Léon Bloy, de R. Raymond Barbeau (Paris, éditions Montaigne, Aubier, 1957) e Présence de Satan dans le monde moderne, de Mrg Augustin Louis Léon Cristiani (Paris, France-Empire, 1959). Mas não poderia deixar de mostrar aqui, ainda que muito brevemente, os perigos imensos que se escondem atrás não só da pretensa autonomia e neutralidade das artes, mas particularmente das idéias estranhas, demasiado estranhas, de Léon Bloy.
E, com efeito, como não ver a origem gnóstico-luciferista da identificação pretendida por Bloy entre Satã e o Espírito Santo? Escreve ele em Le Mendiant Ingrat (em 14 de agosto de 1892): “Hoje, décimo primeiro domingo depois de Pentecostes [...] o fariseu representa Jesus e o publicano o Espírito Santo [...] o primeiro diz o que ele não é, NOM SUM, enquanto o segundo afirma, pedindo graça, que é um pecador. Uma estranha luz sobre este evangelho é dada pela aproximação destes dois textos: Omnis qui se EXALTAT humiliabitur (Lucas, XVIII, 14). Oportet EXALTARI Filium hominis (João, XII, 34)”. Ora, pergunta Antoine de Motreff: “como o Espírito Santo pode ser o pecador que tem de pedir perdão, senão porque ele já pecou contra Deus, qual Lúcifer? Uma vez que Satã se humilhará, Deus o exaltará até ele se tornar uma das Pessoas da Trindade” (op. cit., p. 123).
Não, não se trata de exagero, e para mostrá-lo bastarão umas poucas citações do mesmo Léon Bloy. Naturalmente, como bom “profeta” gnóstico, o francês não revelará o seu paracletismo luciferista senão pouco a pouco, progressivamente. Mas já as últimas páginas de Salut par les Juifs contêm a confissão total e peremptória de seu segredo. Com efeito, escreve Bloy em Le Mendiant Ingrat (em 31 de agosto de 1892) a respeito daquelas reflexões: “Encontrei a minha conclusão. Vou enfim poder evadir-me desta brochura que me tem cativo há dois longos meses. Suponho que, doravante, já não terei amigos esperáveis no que se chama o mundo católico”. E de fato não deveria tê-los, porque efetivamente diz ele em Salut par les Juifs: “Esse Visitante inaudito, esperado por mim durante quatro mil anos [sic], não terá amigos e sua miséria fará com que se assemelhem mendigos e imperadores. [...] Após ter exterminado a piedade [...], esse proscrito de todos os proscritos será condenado silenciosamente por magistrados de irreprochável doçura. // Jesus não tinha obtido dos judeus senão o ódio, e que ódio! Os cristãos terão liberalidade para com o Paráclito com o que está para além do ódio. // E é de tal modo o Inimigo, é de tal modo idêntico a esse Lúcifer que foi chamado o Príncipe das Trevas, que é praticamente impossível – mesmo no êxtase beatífico – separá-los. // Aquele que puder compreender que compreenda. // A Mãe de Cristo foi dita a Esposa deste Desconhecido de que a Igreja tem medo, e é certamente por essa razão que a Virgem prudentíssima é invocada sob os nomes de ESTRELA DA MANHÃ e VASO ESPIRITUAL”. Ou seja, o Paráclito esperado por Bloy e pelos judeus será Satã, Lúcifer, que é idêntico ao Espírito Santo prometido por Jesus para Pentecostes. E completa o francês: “Os raríssimos cristãos que ainda fazem uso da razão podem perceber que não se trata [...] de metáfora [...], mas simplesmente de constatar o Mistério, a PRESENÇA do Mistério, para escândalo dos imbecis ou dos teólogos pedantes que afirmam que está tudo esclarecido”. Como o sabe com tanta certeza Bloy? Porque “eu sei coisas que ninguém sabe. Elas não me foram mostradas unicamente para me fazer sofrer”.
Como se vê, diz com razão Léon Bloy que essa mescla de satanismo e loucura não é metafórica. Estava pois equivocado Louis Veillot, assim como estão equivocados, perigosamente equivocados, todos os que invocam a autonomia da arte e do belo: “belas” são as palavras com que Bloy ou Baudelaire louvam a Lúcifer, conquanto apenas belas entre aspas, porque indubitavelmente o belo disjungido do bem não pode ser senão um falso belo. O brilho do belo antagônico ao bem é brilho de ouropel; mas ouropel que, peçonhento, pode cegar, e cega, e vem cegando gerações e gerações de católicos, incluídos muitos dos nossos melhores.
Em contrapartida, como diz em entrevista (Zenit, 22 de maio de 2009) o escritor católico Michael O'Brien, “A vocação para a arte cristã é algo sagrado. É uma vocação, não uma profissão. É uma misteriosa relação de co-criação, e por isso a pintura e a escrita católicas, todas as artes, deveriam começar assim: com os artistas de joelhos, implorando a graça”. Sim, porque ao contrário de tantos servidores diretos ou indiretos de Satã no campo das artes, os artistas servidores de Deus não fazem obras que pudessem ser reunidas numa seção de museu intitulada “Arte cristã”, ao lado e em pé de igualdade com outras correntes artísticas. Não: como diz Henri Charlier, a arte cristã não é uma forma de arte mais; é a arte, aquela a que todas as demais, ainda que obscuramente ou a contragosto, aspiram.
A Igreja sempre assumiu as artes em função da liturgia, ou seja, do “conjunto de cerimônias e ritos por meio dos quais [ela] expressa e manifesta sua religião para com Deus” (R. P. Jesús Mestre Roc, Curso de introdución a la liturgia, p. 3, texto encontrável no site Stat Veritas). E, assumindo-as assim, não podia senão elevá-las ao ápice de sua potência: com efeito, tudo na criação atinge seu ápice no serviço de Deus. Com respeito à música litúrgica, dizia o compositor Gounod: “Não conheço nem uma só obra saída do cérebro de algum grande mestre que possa pôr-se em paralelo com a majestade aterradora desses cantos sublimes que diariamente ouvimos [que se ouviam então, acrescente-se hoje] em nossos templos e em nossas cerimônias fúnebres: o Dies irae e o De profundis. Nada chega a tal altura nem a tal potência de expressão e de impressão”. Ou Mozart: “Quanto a mim, daria gozosamente todas as minhas obras por ter sido o autor do Prefácio”. Com respeito à poesia, que obra do mundo pode equiparar-se em sublimidade, para dar apenas um exemplo entre tantos e tantos, ao ofício de Corpus Christi escrito por Santo Tomás de Aquino? Com respeito à arquitetura, ou seja, a arte que hospeda a liturgia, que edifício pode senão ajoelhar-se diante de uma catedral gótica (escreverei proximamente um artigo sobre o gótico) ou mesmo de uma igreja românica ou barroca? E, quanto à pintura e à escultura, que obra grego-romana, para falar do melhor, não se apequena diante dos retábulos e estátuas e vitrais que adornam (ou adornavam) nossos templos fazendo deles como que imagens da cidade celeste?
E, mutatis mutandis, vale para todas as artes o que Monsenhor Gay diz especialmente sobre a música: “Há 19 séculos que a Igreja não cessa de cantar, e assim continuará até o fim do mundo, pois o canto não é para ela um passatempo, nem um prazer para ela ou para os demais; é um dever, um dever constantemente prescrito e constantemente cumprido; é o acento regular de sua linguagem e uma das fórmulas de seu culto. Cantava-se nas catacumbas, cantou-se nos cadafalsos, cantou-se em torno dos féretros, e nunca se cantará com um coração tão alegre como quando sobre as ruínas amontoadas pelo Anticristo se levantarem os olhos para o oriente para saudar a vinda da última e total redenção” (Virtudes cristianas, II, apud R. P. Jesús Mestre Roc, ibid.).
Como todavia costumo dizer, as artes, ainda que em plano indubitavelmente inferior ao litúrgico, também servem ou deveriam servir para a vida do católico fora dos templos. Não obstante, no alegrar uma casa ou no entreter a cidade ou no contribuir para forjar a unidade de uma nação, não podem elas porém afastar-se do serviço de Deus a ponto de lhe ser em algum grau contrárias; têm, em verdade, de em algum grau prestar também serviço a Deus; têm de estar ordenadas, de maneira mais ou menos direta, a Ele. Têm ao menos de “estar à sombra do Evangelho”, como ouvi certa feita numa bela homilia, e como de fato estão os quadros de um Le Nain, o pintor francês (do século XVII) dos humildes, das famílias do campo, cujas figuras, como diz o Padre Calmel em Théologie de l’histoire (Dominique Martin Morin, 2ª. ed, 1984, p. 70), ”refletem um equilíbrio e uma dignidade que já não se vêem nos agricultores contemporâneos. Por que aquela calma, aquela gravidade, aquela paz impressa em seus rostos? Sem dúvida porque os camponeses que ele evoca guardam ainda mais ou menos intacto o patrimônio de virtudes cristãs trazidas aos gauleses mais de quinze séculos antes pelos primeiros bispos e pelos primeiros mártires. Fora das virtudes cristãs, jamais teríamos conhecido esta paz da alma, esta segurança diante da adversidade, esta força da alma que transfiguram e sobrelevam as frágeis virtudes humanas, que fazem com que a vida aqui em baixo, neste vale de lágrimas, ainda que repleta de provações, não seja porém envenenada nem desesperadora. São virtudes humanas sobrelevadas pela graça o que está impresso nos nobres rostos de Le Nain”. E, ao retratá-lo, prestava Le Nain ao seu modo, no seu grau abaixo do litúrgico, um serviço de louvor a Deus, ao mesmo tempo que, em ordem a esse serviço, prestava beleza ao mundo dos homens.
Mais ainda: podemos os católicos assimilar a obra de grandes artistas não católicos como o compositor luterano Johann Sebastian Bach ou o escritor ortodoxo russo Fiodor Dostoievski, contanto que saibamos expurgar dela o nefasto ou acusá-lo (o herético da letra de certas cantatas de Bach, o antipapismo, o pan-eslavismo, etc., em certas passagens de Dostoievski), e nos lembremos, sempre, de que somos não só de Cristo, mas de sua esposa, a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana.
Para a relação do católico com as artes, contudo, o veneno mais insidioso não está propriamente nas obras de arte francamente não católicas ou blasfemas; está sobretudo no pensar e dizer que as artes têm mais ou menos autonomia com respeito ao fim último, com respeito a Deus. No considerar que tanto a jurisdição do político como o âmbito das artes podem instalar-se num terreno neutro com respeito ao Senhor; no considerar que, além daquele fim último, tem o homem um fim natural, a pólis, com suas necessidades naturais, entre as quais a do belo propiciado pelas artes; no considerar que há uma cidade intermédia entre a cidade de Deus e a do amor-próprio e do demônio, com artes intermédias entre a arte para Deus e a arte para o amor-próprio e o demônio. E este veneno, o veneno do humanismo, se inoculou em certo grau até nos melhores de nossos combatentes antiliberais. Com efeito, como diz o Padre Álvaro Calderón em El neonestorianismo actual – A propósito de la película “La última tentación de Cristo” (texto encontrável no já referido site Stat Veritas), “O verdadeiramente grave é o câncer que carcome hoje o catolicismo por dentro. Até os principais órgãos estão infectados com os princípios do inimigo, e, como acontece com o câncer, quanto mais se quer viver, mais rapidamente se morre, porque as próprias funções vitais da vítima servem para agravar o mal”. E uma das muitas provas que se poderiam aduzir ao dito, temo-la na contribuição dada pelo grande Louis Veillot para impedir se pusesse no Index Librorum Prohibitorum a obra de Léon Bloy (1846-1917). Dizia o eminente antiliberal com respeito a essa obra: “Trata-se de arte apenas”. Ou seja, de meras metáforas; estão em seu terreno neutro; o belo tem autonomia; etc.; etc.; etc. Mas, hélas!, aquele mesmo Léon Bloy, esse mesmo “Leão” que gerações e gerações de católicos consideraram e ainda consideram como defensor santamente irado da tradição e da ortodoxia, esse mesmo escritor que dizia não conhecer senão um só Satã poético verdadeiramente terrível, “o de Baudelaire, porque é sacrílego” (Le Révélateur du Globe, 1884), esse mesmo “profeta” triste, algo desesperado e eo ipso parente espiritual de Sören Kierkegaard, esse mesmo “vaticinador” a que se atribuía uma piedade máxima, de comunhão quotidiana, mas perpassada de um gosto excessivo pelo sofrimento, esse mesmo homem que consideravam um místico e que se considerava possuidor de um segredo revelado a ele e apenas a ele, esse mesmo era um arraigado e cabal luciferista!
Aqui não me estenderei demasiadamente sobre o assunto, até porque há textos que o tratam de modo decisivo. São eles: L’œuvre étrange de Léon Bloy, de Louis Jougnet, e L’enfant prodigue selon Léon Bloy – Une interprétation blasphématoire, de Antoine de Motreff (ambos em Le Sel de la Terre, n. 52, Printemps 2005, Avrillé, Couvent de la Haye-aux-Boshommes, pp. 189-202 e pp 116-140 respectivamente); e as obras Un Prophète luciférien, Léon Bloy, de R. Raymond Barbeau (Paris, éditions Montaigne, Aubier, 1957) e Présence de Satan dans le monde moderne, de Mrg Augustin Louis Léon Cristiani (Paris, France-Empire, 1959). Mas não poderia deixar de mostrar aqui, ainda que muito brevemente, os perigos imensos que se escondem atrás não só da pretensa autonomia e neutralidade das artes, mas particularmente das idéias estranhas, demasiado estranhas, de Léon Bloy.
E, com efeito, como não ver a origem gnóstico-luciferista da identificação pretendida por Bloy entre Satã e o Espírito Santo? Escreve ele em Le Mendiant Ingrat (em 14 de agosto de 1892): “Hoje, décimo primeiro domingo depois de Pentecostes [...] o fariseu representa Jesus e o publicano o Espírito Santo [...] o primeiro diz o que ele não é, NOM SUM, enquanto o segundo afirma, pedindo graça, que é um pecador. Uma estranha luz sobre este evangelho é dada pela aproximação destes dois textos: Omnis qui se EXALTAT humiliabitur (Lucas, XVIII, 14). Oportet EXALTARI Filium hominis (João, XII, 34)”. Ora, pergunta Antoine de Motreff: “como o Espírito Santo pode ser o pecador que tem de pedir perdão, senão porque ele já pecou contra Deus, qual Lúcifer? Uma vez que Satã se humilhará, Deus o exaltará até ele se tornar uma das Pessoas da Trindade” (op. cit., p. 123).
Não, não se trata de exagero, e para mostrá-lo bastarão umas poucas citações do mesmo Léon Bloy. Naturalmente, como bom “profeta” gnóstico, o francês não revelará o seu paracletismo luciferista senão pouco a pouco, progressivamente. Mas já as últimas páginas de Salut par les Juifs contêm a confissão total e peremptória de seu segredo. Com efeito, escreve Bloy em Le Mendiant Ingrat (em 31 de agosto de 1892) a respeito daquelas reflexões: “Encontrei a minha conclusão. Vou enfim poder evadir-me desta brochura que me tem cativo há dois longos meses. Suponho que, doravante, já não terei amigos esperáveis no que se chama o mundo católico”. E de fato não deveria tê-los, porque efetivamente diz ele em Salut par les Juifs: “Esse Visitante inaudito, esperado por mim durante quatro mil anos [sic], não terá amigos e sua miséria fará com que se assemelhem mendigos e imperadores. [...] Após ter exterminado a piedade [...], esse proscrito de todos os proscritos será condenado silenciosamente por magistrados de irreprochável doçura. // Jesus não tinha obtido dos judeus senão o ódio, e que ódio! Os cristãos terão liberalidade para com o Paráclito com o que está para além do ódio. // E é de tal modo o Inimigo, é de tal modo idêntico a esse Lúcifer que foi chamado o Príncipe das Trevas, que é praticamente impossível – mesmo no êxtase beatífico – separá-los. // Aquele que puder compreender que compreenda. // A Mãe de Cristo foi dita a Esposa deste Desconhecido de que a Igreja tem medo, e é certamente por essa razão que a Virgem prudentíssima é invocada sob os nomes de ESTRELA DA MANHÃ e VASO ESPIRITUAL”. Ou seja, o Paráclito esperado por Bloy e pelos judeus será Satã, Lúcifer, que é idêntico ao Espírito Santo prometido por Jesus para Pentecostes. E completa o francês: “Os raríssimos cristãos que ainda fazem uso da razão podem perceber que não se trata [...] de metáfora [...], mas simplesmente de constatar o Mistério, a PRESENÇA do Mistério, para escândalo dos imbecis ou dos teólogos pedantes que afirmam que está tudo esclarecido”. Como o sabe com tanta certeza Bloy? Porque “eu sei coisas que ninguém sabe. Elas não me foram mostradas unicamente para me fazer sofrer”.
Como se vê, diz com razão Léon Bloy que essa mescla de satanismo e loucura não é metafórica. Estava pois equivocado Louis Veillot, assim como estão equivocados, perigosamente equivocados, todos os que invocam a autonomia da arte e do belo: “belas” são as palavras com que Bloy ou Baudelaire louvam a Lúcifer, conquanto apenas belas entre aspas, porque indubitavelmente o belo disjungido do bem não pode ser senão um falso belo. O brilho do belo antagônico ao bem é brilho de ouropel; mas ouropel que, peçonhento, pode cegar, e cega, e vem cegando gerações e gerações de católicos, incluídos muitos dos nossos melhores.
Em contrapartida, como diz em entrevista (Zenit, 22 de maio de 2009) o escritor católico Michael O'Brien, “A vocação para a arte cristã é algo sagrado. É uma vocação, não uma profissão. É uma misteriosa relação de co-criação, e por isso a pintura e a escrita católicas, todas as artes, deveriam começar assim: com os artistas de joelhos, implorando a graça”. Sim, porque ao contrário de tantos servidores diretos ou indiretos de Satã no campo das artes, os artistas servidores de Deus não fazem obras que pudessem ser reunidas numa seção de museu intitulada “Arte cristã”, ao lado e em pé de igualdade com outras correntes artísticas. Não: como diz Henri Charlier, a arte cristã não é uma forma de arte mais; é a arte, aquela a que todas as demais, ainda que obscuramente ou a contragosto, aspiram.
E nunca se deverá afirmá-lo, e praticá-lo, “com um coração tão alegre como quando sobre as ruínas amontoadas pelo Anticristo se levantarem os olhos para o oriente para saudar a vinda da última e total redenção”.