Sidney Silveira
Vimos no texto anterior que a dúvida universal com que Descartes inicia o seu método é uma pura e simples impossibilidade, porque ou há a dúvida universal e o Cogito não é válido, ou há o Cogito e a dúvida não será universal. Ademais, como também ficou consignado, o francês emite o seu juízo Cogito, ergo sum (concedamos, por ora, que o seja) por um ato da inteligência após impugnar todos os juízos da inteligência com a dúvida “universal”. Fazendo, portanto, de tal dúvida um método, Descartes imagina encontrar a verdade de sua própria existência como ego cogitans. O frágil imanentismo desta posição é patente, e aqui cabe uma proveitosa comparação: se, em Santo Tomás, estamos em uma filosofia do ser, ao qual o pensamento se submete na exata medida em que o pensar tem a sua referência fundamental no ente (que é o que "tem ser" [habet esse]), com Descartes encontramo-nos em uma filosofia na qual a idéia passa a ter, por meio de um artifício, uma espécie de supremacia sobre a realidade. A diferença radical, como se costuma dizer, é entre uma ontologia em terceira pessoa — com sólida base metafísica, radicada no ser — e uma ontologia em primeira pessoa, radicada no “eu”. Na prática: coloca-se o “sou” no lugar do “é”. Ou pior: o “é” passa a depender, diretamente, do “sou”.
Como diz Derisi, se se duvida de toda a realidade exterior — e portanto do ser em geral —, dever-se-ia igualmente duvidar do próprio “eu” pensante, na medida em que este é, também, objeto de um ato da inteligência. Na prática, o francês prescinde do ser para encontrar, mediante a dúvida “universal”, a idéia (o “eu” pensante) que acolhe como fundamento de todo o seu sistema. Acerca disso anota Derisi, no já citado Filosofía Moderna y Filosofía Tomista:
“Enquanto, para Santo Tomás, a idéia não é mais do que um meio transparente (medium in quo) que nos põe em comunicação imediata e em identidade intencional com a realidade (fieri aliud in quantum aliud), de modo que o termo do conhecimento não é o verbo mental, mas o ser extramental por este captado — desvanecendo-se assim a célebre questão da “ponte” entre sujeito e objeto —, para Descartes o imediatamente alcançado por nosso conhecimento é a idéia mesma”, (...) que apenas por um recurso [uma muleta, digamos!] à veracidade de Deus sabemos estar conformada à realidade”.
Eis, a meu ver, a diferença radical: em Santo Tomás, partimos da realidade, a qual é percebida pelos sentidos externos, laborada pelos sentidos internos, abstraída de suas qüididades materiais pelo intelecto, para retornar a ela intencionalmente, na forma de conceito; em Descartes, não partimos da realidade (mas de uma idéia equivocada) e não retornamos a ela, mas sim à mesma idéia, e, portanto, ao sujeito que a engendrou. Em suma, estamos nesta filosofia emparedados na imanência do nosso pensar, e aqui não haverá saída, a menos que apelemos a Deus — recurso conveniente de Descartes para salvar do naufrágio o seu sistema*. Este é, na verdade, um dramático clamor ao Todo Poderoso para que o livre da esquizofrenia em que se meteu. Mas Descartes nem sequer percebe que este seu apelo à veracidade de Deus é uma efetiva contradição do fundamento de sua filosofia, pois se a dúvida era “universal”, e se, pelo Cogito, só se chega à certeza da existência do próprio “eu” pensante, como recorrer (por um outro ato da inteligência) a Deus?
Eis, portanto, a herança da obra de Descartes para os séculos seguintes, sintetizada num axioma: “Além do pensamento, qualquer coisa é impensável”. Kant, como veremos, criará um sofisticado (e igualmente quimérico) sistema para esse louco solipsismo.
Conclui ainda Derisi: Santo Tomás, realisticamente, chega a Deus apoiando-se no conhecimento das coisas; Descartes precisa apelar a Deus para concluir que existe alguma coisa além dele mesmo — do seu próprio “eu” pensante. [Indaguemos: pensante?]
Algum leitor poderia perguntar, a esta altura: por que a crítica a Descartes num espaço destinado a desmascarar a alienação do liberalismo, em todas as suas principais linhas? A resposta o Nougué já a apontou noutro texto, ao insinuar-nos que, sem a maldita herança cartesiana, o liberalismo sequer teria sido historicamente possível. E não o seria simplesmente porque os liberalismos, assim como o sistema de Descartes — só que de forma muito menos nobre e extremamente mais daninha — precisam isolar o “eu” (com a nomenclatura de “consciência individual autônoma”), para depois afirmá-lo negando toda a realidade exterior. E em Descartes já o encontram apartado das coisas reais...
Vimos no texto anterior que a dúvida universal com que Descartes inicia o seu método é uma pura e simples impossibilidade, porque ou há a dúvida universal e o Cogito não é válido, ou há o Cogito e a dúvida não será universal. Ademais, como também ficou consignado, o francês emite o seu juízo Cogito, ergo sum (concedamos, por ora, que o seja) por um ato da inteligência após impugnar todos os juízos da inteligência com a dúvida “universal”. Fazendo, portanto, de tal dúvida um método, Descartes imagina encontrar a verdade de sua própria existência como ego cogitans. O frágil imanentismo desta posição é patente, e aqui cabe uma proveitosa comparação: se, em Santo Tomás, estamos em uma filosofia do ser, ao qual o pensamento se submete na exata medida em que o pensar tem a sua referência fundamental no ente (que é o que "tem ser" [habet esse]), com Descartes encontramo-nos em uma filosofia na qual a idéia passa a ter, por meio de um artifício, uma espécie de supremacia sobre a realidade. A diferença radical, como se costuma dizer, é entre uma ontologia em terceira pessoa — com sólida base metafísica, radicada no ser — e uma ontologia em primeira pessoa, radicada no “eu”. Na prática: coloca-se o “sou” no lugar do “é”. Ou pior: o “é” passa a depender, diretamente, do “sou”.
Como diz Derisi, se se duvida de toda a realidade exterior — e portanto do ser em geral —, dever-se-ia igualmente duvidar do próprio “eu” pensante, na medida em que este é, também, objeto de um ato da inteligência. Na prática, o francês prescinde do ser para encontrar, mediante a dúvida “universal”, a idéia (o “eu” pensante) que acolhe como fundamento de todo o seu sistema. Acerca disso anota Derisi, no já citado Filosofía Moderna y Filosofía Tomista:
“Enquanto, para Santo Tomás, a idéia não é mais do que um meio transparente (medium in quo) que nos põe em comunicação imediata e em identidade intencional com a realidade (fieri aliud in quantum aliud), de modo que o termo do conhecimento não é o verbo mental, mas o ser extramental por este captado — desvanecendo-se assim a célebre questão da “ponte” entre sujeito e objeto —, para Descartes o imediatamente alcançado por nosso conhecimento é a idéia mesma”, (...) que apenas por um recurso [uma muleta, digamos!] à veracidade de Deus sabemos estar conformada à realidade”.
Eis, a meu ver, a diferença radical: em Santo Tomás, partimos da realidade, a qual é percebida pelos sentidos externos, laborada pelos sentidos internos, abstraída de suas qüididades materiais pelo intelecto, para retornar a ela intencionalmente, na forma de conceito; em Descartes, não partimos da realidade (mas de uma idéia equivocada) e não retornamos a ela, mas sim à mesma idéia, e, portanto, ao sujeito que a engendrou. Em suma, estamos nesta filosofia emparedados na imanência do nosso pensar, e aqui não haverá saída, a menos que apelemos a Deus — recurso conveniente de Descartes para salvar do naufrágio o seu sistema*. Este é, na verdade, um dramático clamor ao Todo Poderoso para que o livre da esquizofrenia em que se meteu. Mas Descartes nem sequer percebe que este seu apelo à veracidade de Deus é uma efetiva contradição do fundamento de sua filosofia, pois se a dúvida era “universal”, e se, pelo Cogito, só se chega à certeza da existência do próprio “eu” pensante, como recorrer (por um outro ato da inteligência) a Deus?
Eis, portanto, a herança da obra de Descartes para os séculos seguintes, sintetizada num axioma: “Além do pensamento, qualquer coisa é impensável”. Kant, como veremos, criará um sofisticado (e igualmente quimérico) sistema para esse louco solipsismo.
Conclui ainda Derisi: Santo Tomás, realisticamente, chega a Deus apoiando-se no conhecimento das coisas; Descartes precisa apelar a Deus para concluir que existe alguma coisa além dele mesmo — do seu próprio “eu” pensante. [Indaguemos: pensante?]
Algum leitor poderia perguntar, a esta altura: por que a crítica a Descartes num espaço destinado a desmascarar a alienação do liberalismo, em todas as suas principais linhas? A resposta o Nougué já a apontou noutro texto, ao insinuar-nos que, sem a maldita herança cartesiana, o liberalismo sequer teria sido historicamente possível. E não o seria simplesmente porque os liberalismos, assim como o sistema de Descartes — só que de forma muito menos nobre e extremamente mais daninha — precisam isolar o “eu” (com a nomenclatura de “consciência individual autônoma”), para depois afirmá-lo negando toda a realidade exterior. E em Descartes já o encontram apartado das coisas reais...
(voltaremos ao tema)
* É famosa a 3ª Meditação, na qual Descartes se apóia — fragilissimamente — na idéia de que o mundo existe, sim, mas simplesmente porque... Deus não o enganaria!.