Carlos Nougué
Acrescente-se às já vistas características das ideologias o que delas diz ainda Julien Freund (ibid., 421 ss.): sendo a ideologia um “pensamento de ação, não de conhecimento nem de explicação”, nela a idéia é “posta a serviço de uma força que lhe é exterior, e, se por acaso alguém [um seu defensor] se ocupar de sua coerência interna, não o fará por razões de racionalidade crítica e analítica, mas [tão-somente por razões] de maior eficácia prática. Aí está por que as ideologias são tão críticas com relação às opiniões e concepções adversas e concorrentes e tão pouco com respeito a si mesmas”.
Ora, os grandes filósofos antigos sem dúvida não só refletiram sob o “melhor regime”, buscando defini-lo racionalmente, mas também visavam à sua real aplicação ou implantação: Platão e sua cidade justa, Aristóteles e a constituição ideal etc. Em outras palavras, assim como em qualquer ideologia, também em suas doutrinas havia uma “visão de mundo” e uma “vontade voltada para o futuro”. Mas com uma diferença radical: enquanto as ideologias, como pensamento mágico quimérico que são, extraem tanto a sua visão de mundo como os seus projetos de futuro da própria mente de seus propugnadores (a mente pós-cartesiana, que se julga livre de Deus e fundadora da realidade), os antigos filósofos tiravam a sua visão de mundo ou das Idéias eternas ou da ordem do cosmos, e seus projetos de uma análise científico-comparativa do já existente.
É bem verdade que tal não impedia de todo a queda no quimérico. Assim, a pólis ideal de Platão peca precisamente por ser em parte (e parte grave) elaborada sem o reconhecimento da célula de toda e qualquer pólis: a família. Igualmente Aristóteles, conquanto em muito menor grau (dado seu radical realismo, que influenciará grandemente Santo Tomás de Aquino e, quanto ao que aqui nos interessa, o leva a analisar muito equilibradamente os regimes políticos), incorre no quimérico, ao dar à educação das crianças caráter exclusivamente público, em detrimento da família. Tais quedas têm uma explicação simples: embora esses grandes filósofos não fossem idealistas (chamar Platão de idealista é grande equívoco) e buscassem fundamentar seus projetos em realidades objetivas, careciam do conhecimento da realidade objetiva efetivamente fundadora de toda e qualquer outra realidade: Deus criador e regente do mundo, Deus e sua lei eterna, sua lei natural, sua lei positiva, Deus e sua providência.
O perfeito realismo econômico-social só verá a luz do dia, portanto, com a Igreja: precisamente porque é Ela a detentora do conhecimento da realidade primeira e última. É verdade que seu principal teólogo, Santo Tomás de Aquino, na esteira de Aristóteles, ainda define o que para ele é o melhor regime, mas o faz ou em De Regno (pequena obra incompleta, onde considera a monarquia o melhor regime), ou em brevíssimos trechos da Suma Teológica (onde considera melhor o regime misto de monarquia, aristocracia e democracia). Não obstante, considerava bons vários outros regimes, muito ao contrário de qualquer ideólogo: já se ouviu um comunista dizer que a aristocracia é boa, ou um demoliberal dizer que a monarquia não-constitucional é boa? Mas a Igreja, seu Magistério infalível nunca disse que tal ou qual regime seria o melhor, embora tenha condenado, como já vimos em outro artigo, quer a democracia liberal, por se fundar numa negação e num afastamento de Deus, quer o comunismo, por “intrinsecamente mau”.
Mais que isso, porém: a Igreja nunca propôs nenhum regime político nem econômico em substituição a nenhum outro. Perseguida e martirizada no Império Romano, converteu-o. Derruído este pelas hostes bárbaras, chorou ela com Santo Agostinho a sua queda, mas ainda com o mesmo santo percebeu que podia e devia cristianizar os novos senhores. Em vez de lutar contra o ancestral pendor guerreiro dos bárbaros, transformou aqueles homens cruéis em soldados de Cristo, em defensores dos pobres, dos órfãos e das viúvas – surgia a cavalaria, instituição humana inigualável. Em vez de propor se eliminasse da noite para o dia o “direito de guerra”, antigo costume germânico que dava a qualquer senhor o direito de invadir terras alheias caso delas necessitasse (afinal, não defendia o próprio Aristóteles o direito de pilhagem?), em vez, pois, de propor tal quimera, instituiu progressivamente os dias dos santos, nos quais, por motivos agora mais que aceitáveis para aqueles cristãos rudes mas sinceros, não se podia guerrear...
(Continua.)
Em tempo 1: Em artigos próximos, falarei, por um lado, da escravidão antiga e da servidão feudal e, por outro, do que propôs o Magistério infalível ante as próprias democracia e economia liberais.
Em tempo 2: Escrevi no final do artigo anterior que “a noção de ‘povo’ é produto do pensamento mágico: é uma idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera”. Precise-se: a noção liberal de “povo”. Sim, porque, em primeiro lugar, o démos grego, mais que um “conceito territorial e político [que] designa ao mesmo tempo uma porção de território e o povo que nele vive” (Émile Benevides, Le vocabulaire des institutions indo-européenes, II, c. 9, pp. 89 ss., apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 33), era um conceito territorial-religioso: designava uma porção de território e o povo que vivia nele sob a égide de um deus. Em segundo lugar, o termo “povo” passou a ter, já na Grécia, mas sobretudo em Roma e na Idade Média, a acepção algo imprecisa de “plebe”. E, em terceiro lugar, só com o liberalismo adquire a acepção vigente até hoje: a de conjunto da população, “cuja voz é a voz de Deus”. Na verdade, a acepção mesma de “Deus”, precisamente enquanto idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera. Já o veremos aprofundadamente.
Em tempo 3: Chega a tal ponto a cegueira de certos liberais econômicos, que eles são incapazes de ver até as conseqüências mais imediatas das premissas que sustentam. Afirmam eles, em diversos artigos, que a causa da crise econômica atual foi certa intervenção do Estado norte-americano em que ele baixou a taxa de juros e deu algumas garantias a quem tomasse certos tipos de empréstimo. Após isso, ainda segundo os nossos liberais, uma multidão incalculável de agentes econômicos (de grandes bancos a homens comuns) passou a especular indevidamente, com papéis podres e coisas que tais, aproveitando-se das facilidades criadas. Se não tivesse havido tal intervenção, prosseguem eles, não teria havido aquele desregramento nem, portanto, a crise atual. Logo, a culpa tanto da atual como de todas as crises é sempre do “intervencionismo” estatal, porque, deixados livres os agentes econômicos e intocada a lei da oferta e da procura, tudo se ajustará perfeitamente, incluindo os juros, as movimentações financeiras, as operações nas bolsas etc. Mas... como assim? Quer dizer, então, que a ganância desmedida e as operações indevidas dela decorrentes que se deram após aquela intervenção estatal facilitadora não se dariam se não houvesse nenhuma intervenção estatal? Ou seja, a não-intervenção estatal e o livre jogo de mercado são capazes, ao contrário da intervenção estatal, de eliminar da face da terra e da alma dos homens o vício da cobiça, o vício da ganância? Na verdade, o livre mercado tem, para os monomaníacos liberais, função muito semelhante à do Graal, da pedra filosofal ou do elixir da eterna juventude: é a sua quimera, é o fruto espantoso do seu pensamento mágico. Já se viu, porém, por outro lado, algum liberal chegar ao poder sem recorrer, em algum grau, à intervenção estatal na economia? Roberto Campos? Bush? Quem?
Acrescente-se às já vistas características das ideologias o que delas diz ainda Julien Freund (ibid., 421 ss.): sendo a ideologia um “pensamento de ação, não de conhecimento nem de explicação”, nela a idéia é “posta a serviço de uma força que lhe é exterior, e, se por acaso alguém [um seu defensor] se ocupar de sua coerência interna, não o fará por razões de racionalidade crítica e analítica, mas [tão-somente por razões] de maior eficácia prática. Aí está por que as ideologias são tão críticas com relação às opiniões e concepções adversas e concorrentes e tão pouco com respeito a si mesmas”.
Ora, os grandes filósofos antigos sem dúvida não só refletiram sob o “melhor regime”, buscando defini-lo racionalmente, mas também visavam à sua real aplicação ou implantação: Platão e sua cidade justa, Aristóteles e a constituição ideal etc. Em outras palavras, assim como em qualquer ideologia, também em suas doutrinas havia uma “visão de mundo” e uma “vontade voltada para o futuro”. Mas com uma diferença radical: enquanto as ideologias, como pensamento mágico quimérico que são, extraem tanto a sua visão de mundo como os seus projetos de futuro da própria mente de seus propugnadores (a mente pós-cartesiana, que se julga livre de Deus e fundadora da realidade), os antigos filósofos tiravam a sua visão de mundo ou das Idéias eternas ou da ordem do cosmos, e seus projetos de uma análise científico-comparativa do já existente.
É bem verdade que tal não impedia de todo a queda no quimérico. Assim, a pólis ideal de Platão peca precisamente por ser em parte (e parte grave) elaborada sem o reconhecimento da célula de toda e qualquer pólis: a família. Igualmente Aristóteles, conquanto em muito menor grau (dado seu radical realismo, que influenciará grandemente Santo Tomás de Aquino e, quanto ao que aqui nos interessa, o leva a analisar muito equilibradamente os regimes políticos), incorre no quimérico, ao dar à educação das crianças caráter exclusivamente público, em detrimento da família. Tais quedas têm uma explicação simples: embora esses grandes filósofos não fossem idealistas (chamar Platão de idealista é grande equívoco) e buscassem fundamentar seus projetos em realidades objetivas, careciam do conhecimento da realidade objetiva efetivamente fundadora de toda e qualquer outra realidade: Deus criador e regente do mundo, Deus e sua lei eterna, sua lei natural, sua lei positiva, Deus e sua providência.
O perfeito realismo econômico-social só verá a luz do dia, portanto, com a Igreja: precisamente porque é Ela a detentora do conhecimento da realidade primeira e última. É verdade que seu principal teólogo, Santo Tomás de Aquino, na esteira de Aristóteles, ainda define o que para ele é o melhor regime, mas o faz ou em De Regno (pequena obra incompleta, onde considera a monarquia o melhor regime), ou em brevíssimos trechos da Suma Teológica (onde considera melhor o regime misto de monarquia, aristocracia e democracia). Não obstante, considerava bons vários outros regimes, muito ao contrário de qualquer ideólogo: já se ouviu um comunista dizer que a aristocracia é boa, ou um demoliberal dizer que a monarquia não-constitucional é boa? Mas a Igreja, seu Magistério infalível nunca disse que tal ou qual regime seria o melhor, embora tenha condenado, como já vimos em outro artigo, quer a democracia liberal, por se fundar numa negação e num afastamento de Deus, quer o comunismo, por “intrinsecamente mau”.
Mais que isso, porém: a Igreja nunca propôs nenhum regime político nem econômico em substituição a nenhum outro. Perseguida e martirizada no Império Romano, converteu-o. Derruído este pelas hostes bárbaras, chorou ela com Santo Agostinho a sua queda, mas ainda com o mesmo santo percebeu que podia e devia cristianizar os novos senhores. Em vez de lutar contra o ancestral pendor guerreiro dos bárbaros, transformou aqueles homens cruéis em soldados de Cristo, em defensores dos pobres, dos órfãos e das viúvas – surgia a cavalaria, instituição humana inigualável. Em vez de propor se eliminasse da noite para o dia o “direito de guerra”, antigo costume germânico que dava a qualquer senhor o direito de invadir terras alheias caso delas necessitasse (afinal, não defendia o próprio Aristóteles o direito de pilhagem?), em vez, pois, de propor tal quimera, instituiu progressivamente os dias dos santos, nos quais, por motivos agora mais que aceitáveis para aqueles cristãos rudes mas sinceros, não se podia guerrear...
(Continua.)
Em tempo 1: Em artigos próximos, falarei, por um lado, da escravidão antiga e da servidão feudal e, por outro, do que propôs o Magistério infalível ante as próprias democracia e economia liberais.
Em tempo 2: Escrevi no final do artigo anterior que “a noção de ‘povo’ é produto do pensamento mágico: é uma idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera”. Precise-se: a noção liberal de “povo”. Sim, porque, em primeiro lugar, o démos grego, mais que um “conceito territorial e político [que] designa ao mesmo tempo uma porção de território e o povo que nele vive” (Émile Benevides, Le vocabulaire des institutions indo-européenes, II, c. 9, pp. 89 ss., apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 33), era um conceito territorial-religioso: designava uma porção de território e o povo que vivia nele sob a égide de um deus. Em segundo lugar, o termo “povo” passou a ter, já na Grécia, mas sobretudo em Roma e na Idade Média, a acepção algo imprecisa de “plebe”. E, em terceiro lugar, só com o liberalismo adquire a acepção vigente até hoje: a de conjunto da população, “cuja voz é a voz de Deus”. Na verdade, a acepção mesma de “Deus”, precisamente enquanto idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera. Já o veremos aprofundadamente.
Em tempo 3: Chega a tal ponto a cegueira de certos liberais econômicos, que eles são incapazes de ver até as conseqüências mais imediatas das premissas que sustentam. Afirmam eles, em diversos artigos, que a causa da crise econômica atual foi certa intervenção do Estado norte-americano em que ele baixou a taxa de juros e deu algumas garantias a quem tomasse certos tipos de empréstimo. Após isso, ainda segundo os nossos liberais, uma multidão incalculável de agentes econômicos (de grandes bancos a homens comuns) passou a especular indevidamente, com papéis podres e coisas que tais, aproveitando-se das facilidades criadas. Se não tivesse havido tal intervenção, prosseguem eles, não teria havido aquele desregramento nem, portanto, a crise atual. Logo, a culpa tanto da atual como de todas as crises é sempre do “intervencionismo” estatal, porque, deixados livres os agentes econômicos e intocada a lei da oferta e da procura, tudo se ajustará perfeitamente, incluindo os juros, as movimentações financeiras, as operações nas bolsas etc. Mas... como assim? Quer dizer, então, que a ganância desmedida e as operações indevidas dela decorrentes que se deram após aquela intervenção estatal facilitadora não se dariam se não houvesse nenhuma intervenção estatal? Ou seja, a não-intervenção estatal e o livre jogo de mercado são capazes, ao contrário da intervenção estatal, de eliminar da face da terra e da alma dos homens o vício da cobiça, o vício da ganância? Na verdade, o livre mercado tem, para os monomaníacos liberais, função muito semelhante à do Graal, da pedra filosofal ou do elixir da eterna juventude: é a sua quimera, é o fruto espantoso do seu pensamento mágico. Já se viu, porém, por outro lado, algum liberal chegar ao poder sem recorrer, em algum grau, à intervenção estatal na economia? Roberto Campos? Bush? Quem?