terça-feira, 16 de março de 2010

A Criação (II)



Sidney Silveira
De acordo com o estabelecido anteriormente, baseado na doutrina de Santo Tomás sobre a Criação, vale destacar os seguintes tópicos:

> Criar é produzir a coisa no ser segundo toda a sua substância (producere rem in esse secundum totam suam substantiam);
> Nada há que preexista à criação (quia nihil est quod creationi praexistat);
> A criação não é outra coisa senão uma relação da criatura a Deus com novidade no ser (creatio nihil est aliud realiter quam relatio quaedam ad Deum cum novitate essendi);
> A Criação é uma ação que não comporta movimento simplesmente porque, sendo ex nihilo, nela nada existe fora da mente divina — nem mesmo a matéria prima — que possa mover-se da potência ao ato.

Vejamos mais de perto as premissas implicadas nestas máximas, começando pela última delas.

A Criação não comporta movimento

Em todo movimento há um trânsito da potência ao ato e, portanto, algo suposto (chamemo-lo, por ora, de causa material) que passa de um estado a outro pela intervenção de um agente (causa eficiente). Como nenhuma operação preexiste ao agente que opera, e nenhum ente pode ser causado pelo seu operar próprio (ex.: o estômago não é causado pela digestão; as pernas não são causadas pelo caminhar, etc.), é evidente que em todo movimento há uma passagem de uma matéria anterior (que possuía uma forma x) a uma matéria posteriormente atualizada por uma forma y.[1]
Ocorre que, na Criação — sendo ela do nada —, não há nenhuma forma ou matéria anterior extra mentis divina que possa movimentar-se da potência ao ato; logo, a Criação não é propriamente um movimento, em sentido metafísico, pois criar não é um devir que produza novas formas, mas sim a produção de toda a substância das coisas na ordem do ser, por um só ato da omnipotência divina. Podemos dizer que as criaturas são causa particular de novas formas e/ou operações, enquanto Deus é causa universal do ser sem o qual sequer haveria formas nem, por conseguinte, operações formais.

As causas criaturais (ou, em linguagem moderna, as causas naturais) produzem sempre este ou aquele efeito, pois na atividade natural há sempre uma outorga de algo particular (alicuius entis particularis ab aliquo particulari agente”, diz Santo Tomás na Suma Teológica, ao lembrar que “o homem engendra o homem”). Tais causas particulares não podem senão gerar efeitos particulares — produzir algo de algo, como um homem se faz de algo que não era homem conquanto já fosse alguma coisa (no caso, óvulo fecundado pelo espermatozóide), pois o nada nada pode causar. No fazer das causas naturais, o imperfeito e inacabado precede o perfeito e acabado; no fazer que caracteriza a Criação (cujo efeito é o ser), o absolutamente perfeito precede a tudo.

Neste contexto, é importante registrar que o nada implicado na expressão creatio ex nihilo não é uma espécie de ponto de partida da Criação (como se fora um algo que Deus laborasse), mas a absoluta e inefável ausência de ser. Não se trata, pois, de um oceano de caos a ser ordenado por uma inteligência suprema, de uma realidade com estatuto ontológico próprio, embora fugidio, como entendeu equivocamente Sartre ao contrapor o nada ao ser, sem advertir que a contrariedade entre ambos não é uma coincidentia oppositorum — nem, muito menos, uma contradição (ou relação) entre duas realidades, duas coisas. O nada não é oposto ao ser como o quente o é em relação ao frio, daí o sem-sentido de Sartre ao falar em O Ser e o Nada sobre a “origem do nada” (l’origine du néant), pois não se trata de oposição entre duas categorias, propriamente, pois a ausência de ser a que chamamos “nada” é, em si mesma, incategorizável, e a ela só podemos referir-nos por analogia. Sartre, na verdade, substancializa o nada sem se dar conta da absurdidade do que faz. Com a surreal imaginação que lhe era peculiar, não sem alguma poesia, ele sub-repticiamente entifica o nada dando-lhe uma função própria.

Pois muito bem: considerando o nada como absoluta ausência de ser, e, portanto, absoluta impotência operativa, dado que o operar provém do ser (operatio sequitur esse, ensinava Santo Tomás), torna-se também por esta via evidente que na Criação não pode haver movimento. Pois, como se disse acima, o movimento (trânsito da potência ao ato, que parte sempre de um suposto) é “de algo a algo”, ao contrário da passagem do nada ao ser.

Mas se a Criação não é movimento, o que podemos dizer dela? É o que veremos no próximo texto sobre o tema, assim como a demonstrabilidade racional da Criação segundo Tomás de Aquino, que nisto se contrapõe a Alberto Magno.
[1]- Não entro no tema do trânsito da potência ao ato nas substâncias separadas da matéria (anjos, para a teologia; inteligências puras, para a metafísica) porque transcende ao objeto do presente texto.