Sidney Silveira
Como deveria ser óbvio, a responsabilidade de cada um é proporcional à função que lhe cabe. Se uma fortaleza é invadida, a responsabilidade recairá sobre aqueles que têm o dever de defendê-la, e não sobre as pessoas indefesas assassinadas pelos invasores; se uma empresa faz investimentos equivocados, a responsabilidade recairá sobre os seus dirigentes, e não sobre a moça que serve o café; se um governo aprova leis iníquas, a responsabilidade recairá sobre os legisladores, e não sobre aqueles que passam a viver sob o tacão da iniqüidade; se um edifício não fica de pé, a responsabilidade recairá sobre o engenheiro que fez os cálculos para a construção, e não sobre o mestre de obras; se um bebê morre de inanição, a responsabilidade recairá sobre a pessoa sob cuja guarda estava a criança, e não sobre os vizinhos. E se o mundo não se converte? De quem é a responsabilidade?
Há dois trechos de sermões do padre Antônio Vieira — o maior prosador da língua portuguesa — que ilustram bem o que se quer dizer. São de arrepiar (os itálicos são meus):
“Eis aqui o que devemos pretender em nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, o seu passatempo, as suas ambições, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós” (Sermão da Sexagésima, Pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de 1655).
“Vós — diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores — sois o sal da terra”; e chama-lhes ‘sal da terra’, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta, como está a nossa, havendo tantos que têm nela o ofício de sal, qual será, ou qual pode ser, a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber; ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem; ou é porque o sal não salga, e os pregadores pregam a si e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem aos seus apetites” (A pregação dos peixes, em São Luís do Maranhão, em 1654).
Pois bem. A quantidade de coisas esdrúxulas que se têm escrito para defender a fala do Papa Bento XVI sobre o uso da camisinha, assim como sobre vários outros temas que não convém citar neste texto, é de dar inveja a sofistas pagãos como Górgias, que dizia o seguinte: o ser (leia-se o mundo) não existe; e, se existisse, seria incognoscível; e ainda que, existindo, fosse cognoscível sob algum aspecto, seria inexpressável, inexprimível. Uma lindeza! Assim também são alguns argumentos dos defensores da fala do Papa que causou incrível confusão nos meios católicos. Provavelmente, se alguém megulha no mar, logo esses neo-sofistas concluem o seguinte: quem nada é o mar, não o nadador.
Ø De uns ouvi dizer que o Papa falou como verdadeiro ‘tomista’, e todos os que estudamos a obra do Aquinate há anos, decerto por cegueira mental, não percebemos;
Ø de outros li que usar camisinha é pecado venial, e não mortal;
Ø de outros, ainda, que o Papa defendera o uso da camisinha como ‘mal menor’, sem saber que, no tocante à salvação, entre dois pecados mortais distintos não há propriamente mal menor, pois um só pecado mortal, de qualquer natureza, retira as graças atuais eficazes sem as quais ninguém pode salvar-se. Mas, para um modernista, estas são sutilezas teológicas que não cabe escavar;
Ø houve quem, por sua vez, afirmasse que não sendo aquela uma opinião revestida de carisma magisterial — como aliás frisamos noutro texto —, não haveria problemas, dando a entender com isto que o Papa pode muito bem ter opiniões privadas, em matéria de costumes, contrárias ou alheias aos princípios reitores da doutrina de sempre, desde que não sejam magisteriais. Só mesmo um modernista para pensar que um Papa pode dizer uma coisa como Doutor privado, e afirmar outras distintas ex cathedra, sobre a mesma matéria;
Ø Para alguns a culpa é toda da imprensa mundial anticatólica, que subverteu as palavras do Papa. Aqui, vale dizer que, apesar das ilações maldosas da imprensa, que em sua quase totalidade simplesmente ignora o que seja a fé, o problema está na idéia expressada de forma explícita pelo Papa: a de que em alguns casos se pode dar um primeiro passo para a moralização usando a camisinha;
Ø Houve ainda quem, apoiando-se no fato de que o Papa não defendera o uso da camisinha em si mesmo como um ato moralmente bom, pusesse a culpa nos ditos e malditos tradicionalistas, que estariam cometendo um pecado gravíssimo contra a pessoa do Papa, ao imputar-lhe intenções que não teve. Aqui não conseguem entender que se trata de princípios inamovíveis, e não simplesmente de uma casuística aplicada a um dado específico;
Ø Outros argúem ainda que o Papa disse na sua entrevista ‘prostituta’, e não ‘prostituto’, como se isto mudasse um só jota do problema teológico de fundo.
Os malabarismos sofísticos são extensos, e enumerá-los a todos seria absolutamente ocioso, além de contraproducente. Mas vale dizer que, por trás de todas essas justificativas, muitas vezes, como diz o meu querido amigo Carlos Nougué, está um grau de ignorância culpável**, a vontade de não enxergar uma verdade evidente: não se pode dar um passo rumo à moralização pecando. A menos que se conceba uma moral totalmente independente da lei divina custodiada pela Igreja, o que é absurdo para um católico.
O Magistério e os grandes Doutores demonstraram, durante séculos, a existência de um liame inextricável entre a lei natural e a lei eterna. Se se rompe artificiosamente esse liame, a lei natural vai-se tornando aos olhos dos homens contraditória, absurda. Cai-se, então, no naturalismo condenado de forma solene pela Igreja, a quem sempre coube a responsabilidade — delegada por Cristo — de defender o precioso depósito da fé que salva (com esta última frase, parece respondida a pergunta do final do primeiro parágrafo).
Ora, defender a vida e a moral por razões meramente humanas (como está pressuposto na idéia de que o uso da camisinha traz, em alguns casos, a noção de que nem tudo é permitido, e que portanto se estaria dando um primeiro passo para a moralização) é ignorar o supremo drama espiritual em que consiste a mesma vida — eliminando do horizonte conceitual as realidades escatológicas: céu, inferno e purgatório. É esquecer-se de que, muito mais do que simplesmente perder a vida, nos importa sobretudo o risco de perder a alma. Não à-toa, Santa Rita de Cássia rogou a Deus pedindo ardorosamente o seguinte: se por desgraça os seus filhos gêmeos fossem tornar-se assassinos vingadores da morte do pai (era a época da vendetta), que morressem. E Deus a atendeu: os dois morreram logo depois, sem levar para o outro mundo a mancha de um pecado tão grave na alma. Uma mãe rezando para os filhos morrerem antes de cometer um pecado mortal! Para a mentalidade dos modernistas, seria tal ato da Santa dos Impossíveis bom, do ponto de vista moral, tendo ela rezado pela morte dos próprios filhos?
Ademais, se, para um cristão, salvar a vida — sua ou alheia — fosse o fim especificador do ato moral bom, como também está pressuposto na tão propalada fala da entrevista-livro do Papa Bento XVI, o sacrifício da Cruz seria intrinsecamente imoral, o que é um corolário necessário da premissa, e Cristo teria antes salvado-se a Si mesmo. Lembremos aqui da angustiosa oração de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras: “Pai, afasta de mim este cálice”, à qual logo aduziu um “Não se faça a minha vontade, mas a Tua” (Lc. XXII, 42). Certamente trazendo em seu coração este divino e voluntário sacrifício, Santa Joana D’Arc disse aos seus algozes: “A viver negando a verdade, prefiro morrer”. E foi queimada.
Amamos em Cristo o Papa e reconhecemos nele o Primado Apostólico. Mas o amor ao próprio Cristo, à Igreja por Ele instituída e à verdade nos obriga a algo tão incômodo quanto doloroso: defender a Autoridade contra as autoridades, como diz o Pe. Calderón no dramático e profundo livro A Candeia Debaixo do Alqueire. Esse amor, mesmo sendo nós pecadores tão contumazes, traz-nos a triste obrigação de afirmar, de público, que essa opinião papal sobre o uso da camisinha, levada às últimas conseqüências, representa exatamente o naturalismo que deságua numa coisa terrível e anticristã: uma moral sem a Cruz.
** Como se afirmou no texto Meandros da ignorância, a teologia moral tipificou os principais casos em que se dá ignorância nos atos propriamente humanos, e, no tocante à ignorância culpável, trata-se daquele tipo de ignorância vencível que sempre implica um grau de voluntariedade e de negligência em averiguar a verdade. Muitas vezes porque a razão está obliterada por paixões do apetite irascível.