terça-feira, 30 de novembro de 2010

Princípio da ação de duplo efeito – ainda a danada da camisinha

Sidney Silveira

Ao ler o texto do Contra Impugnantes sobre o arrazoado de um teólogo do Opus Dei que tentava justificar, do ponto de vista moral, o uso da camisinha em alguns casos, um amigo mandou-me uma objeção por email que culminava na seguinte e pertinente pergunta: não se aplicaria na hipótese mencionada pelo referido teólogo opusdéico (o Sr. Martin Rhonheimer), o chamado princípio da ação de duplo efeito? A resposta é “não”, mas merece algumas explicações para as coisas não jazerem nas brumas da obscuridade.

O mencionado princípio propugna o seguinte: muitas vezes, nas ações humanas, uma só causa acarreta dois efeitos: um bom, outro mau. Por exemplo: um sujeito, agindo em legítima defesa, acaba por matar o seu agressor. Na prática, ele não teve a intenção de assassiná-lo, mas no calor da luta não houve como evitar que tal sucedesse. Assim, à ação de legítima defesa seguiram-se a conservação da vida (efeito bom) e a morte do contendor (efeito mau não intencionado). Diz a respeito disto o Aquinate (os itálicos e negritos são meus):

“Nada impede que um só ato acarrete dois efeitos, dos quais apenas um é intencional, e o outro não. Mas os atos morais recebem a sua espécie do que está na intenção do agente, e não, pelo contrário, do que é alheio a ela, já que isto é acidental. (...) Pois bem, do ato de uma pessoa que se defende podem seguir-se dois efeitos: um, a conservação da própria vida; e outro, a morte do agressor. Tal ato, no que se refere à conservação da vida, nada tem de ilícito, dado que é natural a todo ser (esse) o conservar a sua vida tanto quanto possa. Com efeito, um ato que provém de boa intenção pode converter-se em ilícito se não é proporcionado ao fim. Por conseguinte, se alguém, para defender a própria vida, usa de maior violência do que precisa, este ato será ilícito. Mas se rechaça a agressão moderadamente, será lícita a defesa, pois, por direito, é lícito repelir a força com força, moderando porém a defesa de acordo com as necessidades da segurança ameaçada. Não é, pois, necessário à salvação que um homem renuncie ao ato de moderada defesa para evitar ser assassinado, dado que o homem está mais [naturalmente] obrigado a manter a sua própria vida do que a alheia”. (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 64, art. 7, resp).

Antes de prosseguir, lembro de ter ressaltado, no artigo anterior, que a licitude moral do ato de um hipotético homem casado soropositivo que usasse a camisinha com intenção de não infectar a esposa com o vírus HIV, mas não com a intenção de evitar a concepção (como supunha a hipótese do teólogo citado), só ocorreria se o homem ignorasse totalmente que o uso da camisinha evita a concepção. Antes de ir adiante, comece-se por observar que se trata de dois casos cuja diferença específica já se delineia a partir do seguinte dado: na hipótese do homem que, para defender-se, matou ao outro sem querer, o efeito mau era incerto e acidental, ao passo que na hipótese citada do sujeito que usa camisinha o efeito mau é totalmente certo e necessário, razão pela qual se frisou que ele só seria desculpável se ignorasse em absoluto o efeito mau; se o previsse com certeza, não apenas haveria mal moral, mas este seria proporcional ao efeito decorrente da ação. Em resumo, se alguém, ao agir, já conhece de antemão o efeito mau que se seguirá com relação ao que é mais importante no contexto da ação, do ponto de vista moral o princípio do duplo efeito não se aplica. Na prática o que acontece na hipótese do nosso teólogo, como também se salientou anteriormente, é o seguinte: o agente excluiu culpavelmente do seu horizonte o fim último da ação, para subordiná-lo ao fim intermediário.

Ora, de acordo não apenas com Santo Tomás, mas com uma série Santos e de Doutores da Igreja, é justamente nisto em que consiste o pecado: por razões que não cabe abordar neste breve texto, o homem escolhe um bem inferior em detrimento do superior ao qual está próxima ou distantemente ordenado. Desde o pecado de Lúcifer, que, amando a própria excelência (bem secundário em relação ao fim último a ser buscado), com um agônico non serviam se insubordinou a Deus (bem principal supremo), passando pelo pecado de Adão, que apeteceu o fruto da ciência do bem e do mal seduzido pela satânica idéia de que “seria como Deus”, até o pecado do homem caído, que já nasce com uma ferida na natureza e tantas vezes não consegue hierarquizar os bens que a vontade apetece, todo pecado implica essa desordem na escolha, ou seja, uma absoluta falta de subordinação entre os bens escolhidos pela vontade. Assim, se pegarmos o argumento do teólogo do Opus Dei e o revirarmos de todos os lados, o que restará não é outra coisa senão uma espécie de justificação teológica do pecado, em razão da má-aplicação de alguns princípios que na verdade não escapariam a um estudante do período escolástico...

Dada a forma como se dão os atos propriamente humanos, as coisas não poderiam ser diferentes. No caso da “intenção”, justamente pelo fato de a vontade não ser um apetite cego, mas agir orientada pela ratio boni subministrada pela inteligência, o ato interior de escolha já compõe um cenário que abarca tanto os fins como os meios da ação. Não há, portanto, como um dentista durante uma consulta ter a intenção de pôr fim à cárie do seu paciente se, neste mesmo ato, também não tem a intenção de dispor dos materiais adequados para curar o dente de acordo com a sua idéia inicial. Ora, numa quase miraculosa questão da Suma em que aborda a moralidade do ato interior humano, Santo Tomás demonstra, entre outras coisas, que: a) a vontade quando age em conformidade com a razão errônea é má; b) a bondade da vontade com relação aos meios depende da sua bondade em relação aos fins (ou seja: se o fim bom principal da ação é intencionalmente excluído, como no caso do nosso casado com HIV, os meios não podem ser bons); c) o grau de bondade ou malícia na vontade depende da bondade ou malícia da intenção com relação ao fim.

Aqui é importantíssimo fazer algumas considerações finais, pois a objeção propõe que o hipotético casado soropositivo tinha apenas a intenção de não contaminar a esposa, mas não a de evitar a concepção. Em primeiro lugar, como ficou claro, a intenção do fim já inclui a intenção dos meios (justamente porque a vontade é apetite intelectivo, e não uma potência cega da alma). Por esta razão é errôneo aplicar o princípio da ação de duplo efeito neste caso, porque, como vimos acima com Santo Tomás, este princípio só se aplica — com relação ao ato moral, que é o de que tratamos — se realmente o fim mau não é previsível com certeza. A propósito, este é o problema: falamos não do ato involuntário, mas do ato moral que pressupõe a intenção dos fins e dos meios, e, por conseguinte, um conhecimento mínimo deles, por parte do agente. Mas só mesmo um completo lunático acometido de ignorantia invencibilis, ao pôr uma camisinha, não saberia que ela impede a concepção, e, neste caso (excepcionalíssimo, diga-se), o ato não poderia moralmente ser qualificado como "ação contraceptiva voluntária". Mas não tomemos os loucos e tapados pelos sãos...

Ademais, ainda na Suma (I-II, q. 19), Santo Tomás demonstra cabalmente que a licitude do ato humano depende de que a intenção do fim (intentio finis) seja totalmente proporcional à intenção dos meios, quer dizer: que o ato interior da vontade faça instrumentalmente uso de atos exteriores que não se contraponham ao fim principal da ação (e nem à lei eterna, obviamente). Assim, se a intenção do fim na hipótese aventada fosse realmente evitar o contágio da esposa, o único ato proporcionado a ela, para que a intenção do marido fosse lograda com absoluta certeza, seria a abstinência sexual, até porque sabemos que acidentalmente o preservativo pode arrebentar... O problema é que isto é um enorme escândalo para o nosso mundo lúbrico: o sujeito ficar sem fazer sexo, seja por quanto tempo for.

Eu poderia estender-me e esmiuçar o problema de outros ângulos, mas as razões apresentadas parecem-me suficientes para pôr fim à questão. Encerro porém com um resuminho esquemático: na hipótese aventada pelo nosso teólogo as coisas não se passam como ele supõe, mas da seguinte forma, como é evidente: 1- o marido católico soropositivo conhece a lei eterna (e, portanto, sabe que o onanismo — seja natural ou artificial — é pecado que clama aos Ceus, e para comprová-lo basta ver o que fez Deus a Onã, conforme Gen. XXXVIII, 8-10); 2- o marido também conhece o fim natural do ato conjugal, pois tem plena ciência de que esse fim é a concepção, e que esta não pode ser impedida voluntariamente sem que se incorra no ato em pecado; 3- usando do pretexto de não contagiar a esposa, ele usa a camisinha e contraria a lei eterna e a lei natural num só ato. Aqui, não contagiar a esposa (fim natural intermediário acidental) se transforma no bem escolhido em detrimento do cumprimento da lei eterna (fim último sobrenatural necessário). Ocorre que no mundo tão mundano do catolicismo atual, falar de Deus, fim natural, fim sobrenatural, abstinência, pecado, etc., parece não apenas coisa vetusta, mas de doido varrido. Justificar o uso da camisinha em alguns casos, portanto, não me parece senão a conseqüência lógica de uma contínua perversão da doutrina, ao longo de mais de cinco décadas. O que virá nos próximos anos é algo que me assusta pensar. Mas diga-se ainda o seguinte: quanto à outra premissa do nosso teólogo (a de que a proibição do uso de preservativos não se refere propriamente às pessoas promíscuas, sejam prostitutas ou não, mas apenas às casadas que conhecem o ensinamento da Igreja), registre-se que se o uso da camisinha tem como finalidade evitar o contágio, do ponto de vista meramente humano isto pode ser um mal menor, mas não do ponto de vista da fé, que ensina divinamente que devemos nos afastar do pecado para salvar-nos, em Cristo. E é extamente isto o que acima de tudo se criticou desde o começo: o discurso de uma moral naturalista, sem a Cruz, totalmente contrária à fé — dentro da Igreja.