quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O filósofo com os inimigos da verdade a seus pés

Santo Tomás, entre Platão e Aristóteles, subjuga Averróis


Santo Tomás, ao lado das virtudes cardeais, pisa em Averróis

Sidney Silveira
Do ponto de vista espiritual, pisar, esmagar, pôr sob o escabelo dos pés, é uma imagem que em geral representa a vitória do bem sobre o mal, da verdade sobre o erro. Assim, diz-se que Maria esmagou a cabeça da serpente, por exemplo. Levando isto em conta, as iconografias acima mostram Santo Tomás literalmente pisando em Averróis, que, deitado, segura numa delas a inscrição sapientiam autem non vincit malitia (Sab. VII, 30). Nessa imagem, ao lado do Aquinate estão as quatro virtudes cardeais, chamadas pelo Angélico de principalíssimas: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança — sendo a Prudência uma virtude supracapital, na medida em que as demais não podem existir sem ela. Entre os vários significados implicados na pintura está o de que a sabedoria, se não estiver acompanhada das virtudes cardeais, não pode vencer a malícia nem os erros, razão pela qual, como se demonstrou dialeticamente noutro texto, não é lícito ao filósofo ser um boca-suja de linguagem torpe, quando se trata de refutar teses errôneas de qualquer espécie, em qualquer ocasião, fazendo uso de qualquer veículo de comunicação, em qualquer lugar — seja num programa de auditório entre rufiões ou na defesa magistral de uma tese, ao lado de grandes catedráticos. Isto porque a filosofia é uma qualidade adquirida pela alma, e não um ofício acadêmico a ser exercido em situações excepcionais...

A significação de tal símbolo ganha maior inteligibilidade se o remetemos a uma premissa da filosofia tomista acerca do papel do sábio, que é duplo: 1- ordenar as coisas a seus fins devidos; e 2- combater os erros. Em resumo, é próprio da filosofia (e sobretudo da filosofia cristã, que labora sob a luz da fé e, portanto, da sabedoria divina) atacar os erros, porque, ao fim e ao cabo, eles acabam sendo contrários não apenas às verdades na matéria em que se dão, mas também contrariam a Verdade que é a fonte de todas as demais verdades: Deus.

Entre os erros, os que contrariam direta ou indiretamente as verdades da fé são os mais daninhos, pois afastam formalmente o homem de Deus. Não por outro motivo, os grandes teólogos e o Magistério da Igreja (quando não se vexavam de defender a verdade, mesmo à custa do martírio) sempre foram zelosíssimos no combate a erros não apenas teológicos, mas também filosóficos, porque sabiam que eles não podem ter cidadania, sob pena de transformar a comunidade humana num tragicômico arremedo de Pólis, num conglomerado de almas desgovernadas e sem Deus, ou, em suma, naquilo que Santo Agostinho chamava de “Cidade do Amor Próprio”, onde o demônio faz e desfaz.

No caso de Averróis e de seus sequazes, o erro que fez Santo Tomás perder a sua santíssima paciência foi o do único intelecto possível para todos os homens, dadas as implicações de tal inverdade — que afetavam a fé num ponto nevrálgico, o qual não vou abordar neste breve texto porque o propósito aqui foi o de tão-somente nos remeter a esta imagem: o sábio vence o falso sábio (poder-se-ia dizer: o filósofo vence o sofista) com as armas não apenas da inteligência, mas também das virtudes a cujo influxo se abriu, pela graça de Deus.