quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A Criação (I)


Sidney Silveira
Num trecho do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, Santo Tomás afirma que criar é “produzir a coisa no ser segundo toda a sua substância” (producere rem in esse secundum totam suam substantiam). Trata-se, literalmente, de uma doação de ser, ou, em sentido mais técnico no vocabulário tomista*, de uma participação no ser. Noutras palavras, todos os entes têm o ser por participação — enquanto Deus é o próprio Ser que dá de si algo per creationem, num ato libérrimo de Sua vontade. Tudo isso é congruente com outra formulação do Aquinate: “Nada há que preexista à criação” (quia nihil est quod creationi praexistat).

Nenhum de nós é, portanto, capaz de criar, mas tão-somente de formar algo a partir de uma matéria preexistente, ou de gerar algo a partir da própria forma em consórcio com outra da mesma espécie (no caso da geração de uma nova vida, por exemplo). Nestas ocasiões, trata-se de um movimento, ou seja, do trânsito da potência ao ato que supõe uma matéria anterior. Já a criação não pode dar-se por movimento justamente porque é productio ex nihilo, ou seja, é a partir do nada — e nada havia fora da mente divina que pudesse mover-se da potência ao ato, nem a matéria prima. Em suma, o conceito de criação do nada se opõe ao conceito de movimento porque toda mutação pressupõe um sujeito que se movimenta, ou seja, supõe um ponto de partida que passa a um termo final, como muito bem afirma Juan Cruz Cruz na apresentação do Comentário às Sentenças editado pela EUMSA. Ora, no caso da Criação não havia nenhum outro sujeito que, por intermédio da ação divina, pudesse passar da potência ao ato, pelo simples fato de que não havia entes, mas apenas o Próprio Ser. Os entes são, literalmente, a “novidade no ser” (novitate essendi) que é produto da criação. Veja-se a proposição inteira: “A criação não é outra coisa senão uma relação [da criatura] a Deus com novidade no ser” (creatio nihil est aliud realiter quam relatio quaedam ad Deum cum novitate essendi)**.

Nós, em nossa absoluta indigência ontológica, não tocamos o ser, mas apenas a forma dos entes. Só Deus dá o ser e só Ele poderia retirá-lo, se assim o desejasse. Nós podemos destruir as formas dos entes, reduzi-las a outras, pulverizá-las transformando-as em partículas infinitesimais de matéria, mas não lhes destruímos o ser. Somente Deus cria e, portanto, somente ele pode aniquilar — levar o ente ao nada de onde proveio. Neste caso, também não se trataria de uma pura e simples mutação do ser ao não-ser, razão pela qual, de acordo com Santo Tomás, a aniquilação também não se enquadra na categoria do movimento. Em síntese, a potência ao não-ser (potentia ad non esse) não pertence propriamente a nenhuma das criaturas, pois tão-somente o omnipotente Criador pode atualizá-la nelas. Fazendo uso de uma imagem, podemos muito bem dizer que o ser é intocável por nossas mãos.

A criação não tem partes, pois é a criação da totalidade do ser dos entes a partir do nada. Num só ato, Deus cria a matéria prima com todas as suas formas específicas. Do ponto de vista das criaturas, a criação é, pois, uma relação, como afirma o Aquinate. Uma relação do ente finito com o Ente infinito que é o Próprio Ser. O mesmo Cruz Cruz, na referida apresentação ao Comentário de Tomás, diz com grande acerto que o ato de ser não pertence à essência mesma das coisas, pois é, para elas, um predicado acidental. O meu ato de ser não me pertence, nem o de ninguém. Por esta simples razão, não dispomos sequer da nossa própria vida, não somos os proprietários dela — e mesmo o mais convicto dos suicidas, se soubesse que, ao matar-se, apenas destrói o composto atual que o mantém vivo, mas não o ser (e muito menos a forma substancial do seu corpo, que é a alma), talvez mudasse de idéia antes de pôr fim à própria vida. Daria graças a Deus, autor da Vida, maravilhado com esse tão grandioso bem. Ademais, nenhum mal que se dê em nossa vida pode ser maior do que a mesma vida em que se dá.

Vejamos o que diz esse milagre da inteligência que foi Santo Tomás a respeito do ato grandioso, extraordinário, divino, da criação:

“Que haja criação não apenas o sustenta a fé, mas também o demonstra a razão. Porque consta que tudo o que é imperfeito em algum gênero nasce daquilo que primeira e perfeitamente se encontra na natureza do gênero, como consta do calor nas coisas que são esquentadas pelo fogo. Pois muito bem: como qualquer coisa e tudo o que há nela participa de alguma maneira do ser e está mesclado com imperfeição, é necessário que a coisa, de acordo com tudo o que há nela, provenha do Ente primeiro e perfeito. E a isto chamamos criar, ou seja, produzir a coisa no ser segundo toda a sua substância” (producere rem in esse secundum totam suam substantiam)”.
(II, Sent. d1. Art.2)

Em suma, embora não seja, em termos metafísicos, propriamente um movimento (pois sequer possui duração, que é a característica de todos os movimentos dos agentes naturais), a criação é o evento mais extraordinário que pode ter havido, uma ação maravilhosa do Todo Poderoso à qual devemos render graças sempre e sempre.

Meditar sobre a criação é, para o cristão, uma das formas de exercitar o olhar e ver no próximo (por pior que eventualmente possa ser) um semelhante em Deus — criado e amado por Ele.

* Digo vocabulário tomista porque me recuso terminantemente a usar a palavra tomasiano — por razões que noutro texto vale a pena explicar.
** De Potentia Dei, q. 3, a. 3, resp.
Em tempo: Se Heidegger tivesse lido o Comentário às Sentenças escrito pelo Aquinate, não diria que a pergunta “por que há o ente e não o nada?” é a pergunta das perguntas metafísicas. Veria que esta é, na verdade, uma pergunta que expressa um pseudoproblema.
(continua)