quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A imortalidade da alma humana (III)

Carlos Nougué
Ao conhecer determinado objeto, o homem como que se identifica com ele; toma como lei do pensamento a lei do ser deste objeto, lei que lhe produz no espírito, como conclusões, as mesmas conseqüências a que, como propriedades concretas, dá ensejo na realidade. Mas o modo de ser desse objeto agora conhecido passa a ser no intelecto totalmente diverso do que este objeto tem na realidade — passa a ser abstrato, ou seja, imaterial. Quando determinada forma se realiza na matéria, esta a concretiza, ou seja, a materializa, enquanto a mesma forma faz a matéria ser de certo modo, excluindo-lhe a sujeição a quaisquer outras formas; no intelecto, todavia, a forma do objeto só se encontra em sua universalidade, sem característica alguma da individuação que lhe confere a matéria (sendo este conferir sua função precípua). Compreender as propriedades de um hexágono não é conhecer nenhum hexágono particular; é compreender o hexágono, ou seja, o hexágono em geral, razão por que a forma de todo e qualquer hexágono concreto, como forma geral, só existe no espírito de modo imaterial; além disso, sem deixar de ser exatamente o que é, o homem recebe a forma do objeto conhecido. Ora, a faculdade que por ambos esses motivos se identifica com tal forma não pode senão ser igualmente imaterial.

E, assim como sou eu que sinto e sofro, não pode haver dúvida quanto a também ser eu que penso. O pensamento é inquestionavelmente um ato do homem individual, e, como o princípio da unidade da atividade humana é a alma, pensar é conseqüentemente uma de suas operações. Se, porém, como acabamos de ver, o pensamento é imaterial, a alma executa esta operação não como executa as demais, isto é, através do corpo, mas independentemente deste — por si mesma. Em seu ato propriamente intelectual, pensar (ou inteligir ou conhecer) é uma faculdade exclusiva da alma. (Para as potências corporais pelas quais se dá o processo que vai desde a apreensão sensível dos objetos até o ato propriamente intelectual [exclusive], ou seja, os sentidos externos e os internos, ver, neste blog, a série de Sidney Silveira “A estrutura da ação humana em sua completude”.)

Desse modo, sendo embora a forma substancial do corpo, a alma é todavia mais que isso; a sua atividade não se cinge a animar o corpo, tendo uma operação absolutamente própria: o conhecimento stricto sensu, isto é, o conhecimento universal ou abstrato. Por isso dizia Santo Tomás que a alma humana se distingue de todas as formas substanciais dos demais entes materiais; ela é propriamente espiritual, e por isso não está de todo imersa na matéria (cf. Suma Teológica, Ia, q. 76, a. 1, corpus).

A alma humana é, pois, a única dentre as formas dos entes materiais que excede a potência da matéria; tem a seu exclusivo cargo uma operação que a matéria não pode executar. Mas, se assim é, qual será a origem de nossa alma?

Como já vimos, a atividade da alma excede em um ponto o que há em potência na matéria: com efeito, na intelecção a matéria não intervém em nada. Nunca a matéria, independentemente da forma que a ordene e governe, pode elevar-se ao plano do pensamento, dado ser este uma atividade absolutamente incompatível com o caráter concreto daquela. Assim, a alma humana não está totalmente em potência na matéria, mas, se tal é fato, é porque em verdade ela, a alma humana, absolutamente não está em potência na matéria, uma vez que toda e qualquer forma, incluída a alma humana, é indivisível. A alma humana não poderia estar apenas parcialmente em potência na matéria; julgá-lo possível seria, conseqüentemente, considerá-la divisível. Há, sim, em potência na matéria um sem-número de formas aptas a colaborar com a alma nas operações que por seu intermédio esta realiza. Não estando, contudo, compreendida a alma humana na potencialidade da matéria, há que buscar-lhe a origem em outra fonte.

Ora, se antes de ser em ato a alma humana absolutamente não estava em potência na matéria, é porque simpliciter ela... não era! A alma humana, portanto, não pode ser senão uma criação direta de Deus. Já se tentou explicar-lhe o surgimento por divisão de outra alma; mas tal é impossível, pelo motivo já visto de que as formas absolutamente não se dividem, nem quantitativamente (como tal se daria, se as formas não têm extensão por si mesmas?), nem qualitativamente, dado que determinada forma perder algumas das qualidades que a constituem implicaria, pura e simplesmente, ela deixar de ser.

Cada alma humana é, assim, criada diretamente por Deus: é produzida do nada, e portanto o seu início é absoluto. Mas de modo algum se veja nisto um milagre; ao contrário, faz parte do plano geral da natureza, tal qual o estabeleceu e ordenou o próprio Senhor. Assim como criou os anjos como entes puramente espirituais, e assim como criou entes materiais capazes de se transformar uns nos outros por geração e corrupção, assim cria Deus as almas humanas uma a uma sempre que haja as devidas precondições materiais, a saber, a união produtiva de um espermatozóide e de um óvulo humanos. Mas como devemos entender, filosoficamente, essas precondições materiais da criação da alma humana? Devemos entendê-las como causa ocasional desta criação, e não como causa eficiente sua.

Ora, é precisamente o já referido fato de exceder a potencialidade da matéria o que nos força a procurar, para a alma humana, não só uma origem diversa da das almas vegetativas e sensíveis, mas também um destino após a morte diverso do destas. Procurá-los, todavia, exige previamente de nós responder a uma censura muito comum no mundo moderno: a de que incorremos em contradição por sustentar a teoria da alma como forma do corpo e, ao mesmo tempo, afirmar a imortalidade do princípio pensante ou intelectivo. Respondamos pois a ela.

Se dizemos que a alma é a forma do corpo, é em razão da unidade de cada ente, e portanto do ente humano, e da indubitável interdependência radical dos nossos diversos aspectos. Mas as formas dos entes materiais não podem ser senão pela própria matéria. Uma vez que a matéria que informavam passa a reger-se por outras formas substanciais, deixam de ser em ato, tornando a estar em potência. Sim, porque, se tais formas são indissolúveis em si mesmas, podem porém ser destruídas per accidens — por terem desaparecido as condições indispensáveis a seu ser. Por isso, se dizemos que a alma dos animais não sobrevive à destruição corporal, é porque o psiquismo deles não ultrapassa suficientemente as condições orgânicas para sobreviver a elas; ao passo que, se dizemos que a alma humana é indestrutível e imortal por natureza, é justamente por nossa óbvia atividade eminente, a saber, a atividade propriamente intelectual — formação do conceito, juízo e raciocínio — e volitiva, a qual de maneira alguma se pode reduzir a algo como um feixe de tendências orgânicas.

(Continua.)

Em tempo 1: Enquanto dizia Santo Tomás que a alma humana, por ser uma substância imaterial, não pode ser causada por geração, mas somente por uma criação de Deus, Aristóteles, consciente por seu lado da aporia a que chegaria se admitisse a produção da alma por geração, teve de admitir, sim, a possibilidade de uma origem divina para ela, mas, por causa dos próprios pressupostos de sua filosofia, foi incapaz de concluir pela criação dela.

Em tempo 2: A minha série de artigos sobre o sedevacantismo começará na próxima semana, assim que terminar a série “O Cogito cartesiano...”, e será escrita segundo o seguinte plano:

1) A possibilidade ou impossibilidade de sedevacância segundo:
a) a fé;
b) o Magistério da Igreja;
c) o direito canônico;
d) a doutrina tomista;
e) a doutrina de outros doutores e teólogos.

2) Exame detido da Bula de Paulo IV, Cum ex Apostolatus Officio, o grande cavalo de batalha dos sedevacantistas, e de sua tradução por estes, sempre segundo o Padre Ceriani.

3) A obediência devida a papas que deponham a sua infalibilidade (e possam, portanto, incorrer em heresia material), segundo o Padre Álvaro Calderón.

4) A Igreja e a história.