Carlos Nougué
Dizia no artigo anterior desta série que, antes ainda de proceder a um conjunto de demonstrações e respostas acerca de economia liberal, teria de mostrar pelo menos de que maneira central se dá o vínculo entre essa economia e a democracia liberal, sem o que não se dariam premissas suficientemente claras para o desenvolvimento do tema. E terminava dizendo que “tal vínculo se dá centralmente no fato de a sociedade democrática liberal ser, em verdade, como um todo e em cada um dos seus aspectos, uma autêntica e imensa SOCIEDADE ANÔNIMA, cujo anonimato é assegurado tanto por um radical laissez-faire moral quanto por um maquiavelismo político cujo príncipe, para parafrasearmos Aristóteles, é a moeda enquanto substituta da ganância” (com efeito, dizia Aristóteles: “A moeda tornou-se uma espécie de substituto da necessidade” [Ética a Nicômaco, V, 8, 1133 a 28]).
Pois bem, pergunta-se Maxence Hecquart (em Les fondements philosophiques de la démocratie moderne, p. 245): como “um regime [o democrático liberal] que se quer da virtude, ou antes para a virtude”, pode consagrar “tanta energia ao progresso de sua economia?” (ibid., p. 245). Quem poderia negar que os discursos dos atuais candidatos à presidência, e dos próprios presidentes ou primeiros-ministros, giram em torno sobretudo de estatísticas, de números de PIB, de balança comercial, de deficit público e coisas que tais? Comparem-se tais discursos com os dos políticos gregos, ou romanos, ou cristãos, e ver-se-á a diferença radical: os discursos de um Péricles, de um Cícero, de um Júlio César, de um Carlos V giravam em torno ou do regime ideal, ou de vitórias militares, ou da relação entre constituição e virtude, ou dos laços entre governo e religião. Em lugar de tudo isso, quase nada, hoje em dia, além de índices, taxas, cifras, curvas... até a vertigem.
E veja-se que já se queixavam disso não só um iluminista como Montesquieu, ao dizer que “os políticos gregos [...] não reconheciam outra força que os pudesse sustentar além da virtude. Os de hoje [ou seja, os do século XVIII antes da própria revolução francesa...] só falam de manufaturas, de comércio, de finanças, de riquezas e mesmo de luxo” (Esprit des loix, L. III, c. 3), mas também ninguém menos que um dos idealizadores da mesma democracia moderna, Rousseau, ao dizer que, se “o serviço público cessar de ser o principal negócio dos cidadãos e eles preferirem fazer as vezes mais de sua bolsa que de sua pessoa, o Estado já estará à beira da ruína. [...] é a azáfama do comércio e das artes, é o ávido interesse de ganho, é a moleza e o amor das comodidades que mudam os serviços pessoais em dinheiro. [...] A palavra finanças”, concluía como que ecoando o Platão da República, “é uma palavra de escravo” (Contrat social, III, 15).
Obviamente, nenhum dos grandes filósofos jamais negou que o bem-estar material seja uma das razões de ser da pólis. “Mesmo Aristóteles”, lembra ainda Maxence Hecquard (ibid., 246-247), “que declara na Política que o fim da cidade é ‘viver segundo a felicidade e a virtude’, assinala na Ética a Nicômaco que, para alcançar essa felicidade, ‘se devem levar em conta também os bens exteriores (...), pois é impossível, ou pelo menos difícil, praticar as boas ações quando se está desprovido de recursos para tal’. O homem é precisamente um animal político porque a cidade lhe proporciona numerosos bens manufaturados indispensáveis ao seu bem-estar”. Tal é assim, como dirá Santo Tomás ao comentar o Filósofo, por uma questão de fim (como, aliás, como vimos dizendo deste o início deste blog, em todos os campos da realidade): “a felicidade consiste essencialmente [para Aristóteles, não para o próprio Aquinate, como veremos] no cumprimento da virtude. No entanto, os bens exteriores, nos quais repousam as fortunas, pertencem instrumentalmente [grifo meu] à felicidade” (In Ethicorum, I, lect. 16, n. 187).
Com efeito, para Santo Tomás de Aquino, a felicidade não consiste no cumprimento cabal da virtude, porque, como diz nestas que estão certamente entre as mais importantes linhas da ciência das coisas humanas, “dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina” (De Regno, 466; 74-80). Nem por isso, porém, deixa o Aquinate de reconhecer não só que uma das razões de ser da pólis seja proporcionar bem-estar material aos cidadãos, estando a prosperidade incluída no bem comum (a título, como vimos, de instrumento), mas, mais que isso, que sem um mínimo de bem-estar material a própria contemplação da Verdade se torna muito difícil, quando não impossível. Por esse motivo, aliás, é que dizia ainda o santo Doutor: a propriedade privada é boa, mas tem por limite o bem comum (oh, como hão de vociferar os liberais econômicos ante essa ousadia de pôr limites à sacrossanta propriedade privada!...)
Sucede todavia que, como diz Hecquard (ibid., p. 247), “as previsões de Descartes se realizam: nós nos tornamos cada dia um pouco mais ‘senhores e possuidores da natureza’ [Discurso do método, IV]. O instrumento é cada vez mais aperfeiçoado. Nós podemos, portanto, usufruir ‘sem nenhuma dificuldade dos frutos da terra e de todas as comodidades que nela se encontram’ [idem]. Dizer que as necessidades ‘aumentam’ com o progresso das técnicas [...] é um lugar-comum. Senhor da natureza, o homem se torna escravo de sua ciência. A multiplicação das necessidades acarreta a das trocas”.
(Prossegue.)
Em tempo 1: Por certo já se terá notado a onipresença Descartes na gênese do mundo moderno, quer como fundador de seus esquemas mentais mágicos, quer como vaticinador de um de seus mais importantes desdobramentos. Daí, insistimos, a importância das duas séries sobre ele que estamos escrevendo para este blog (“Descartes: o começo de uma inversão”, do Sidney, e “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser”, minha).
Em tempo 2: Esclareça-se desde já: se um liberal nos vier dizer que a visão econômica católico-medieval é inferior à liberal porque não propicia como esta uma acelerada produção de bens materiais, concederemos perfeitamente. Mas conceda-nos ele o seguinte: a diferença essencial entre as duas visões radica no fato de que, para liberais como Von Mises, a produção material é o que de mais importante pode fazer o homem, enquanto para o catolicismo o que de mais importante pode fazer o homem é o que Deus faz através dele para maior glória de Deus mesmo. E, como se sabe (ou se deveria saber), o mais importante condiciona sempre o menos importante.
Dizia no artigo anterior desta série que, antes ainda de proceder a um conjunto de demonstrações e respostas acerca de economia liberal, teria de mostrar pelo menos de que maneira central se dá o vínculo entre essa economia e a democracia liberal, sem o que não se dariam premissas suficientemente claras para o desenvolvimento do tema. E terminava dizendo que “tal vínculo se dá centralmente no fato de a sociedade democrática liberal ser, em verdade, como um todo e em cada um dos seus aspectos, uma autêntica e imensa SOCIEDADE ANÔNIMA, cujo anonimato é assegurado tanto por um radical laissez-faire moral quanto por um maquiavelismo político cujo príncipe, para parafrasearmos Aristóteles, é a moeda enquanto substituta da ganância” (com efeito, dizia Aristóteles: “A moeda tornou-se uma espécie de substituto da necessidade” [Ética a Nicômaco, V, 8, 1133 a 28]).
Pois bem, pergunta-se Maxence Hecquart (em Les fondements philosophiques de la démocratie moderne, p. 245): como “um regime [o democrático liberal] que se quer da virtude, ou antes para a virtude”, pode consagrar “tanta energia ao progresso de sua economia?” (ibid., p. 245). Quem poderia negar que os discursos dos atuais candidatos à presidência, e dos próprios presidentes ou primeiros-ministros, giram em torno sobretudo de estatísticas, de números de PIB, de balança comercial, de deficit público e coisas que tais? Comparem-se tais discursos com os dos políticos gregos, ou romanos, ou cristãos, e ver-se-á a diferença radical: os discursos de um Péricles, de um Cícero, de um Júlio César, de um Carlos V giravam em torno ou do regime ideal, ou de vitórias militares, ou da relação entre constituição e virtude, ou dos laços entre governo e religião. Em lugar de tudo isso, quase nada, hoje em dia, além de índices, taxas, cifras, curvas... até a vertigem.
E veja-se que já se queixavam disso não só um iluminista como Montesquieu, ao dizer que “os políticos gregos [...] não reconheciam outra força que os pudesse sustentar além da virtude. Os de hoje [ou seja, os do século XVIII antes da própria revolução francesa...] só falam de manufaturas, de comércio, de finanças, de riquezas e mesmo de luxo” (Esprit des loix, L. III, c. 3), mas também ninguém menos que um dos idealizadores da mesma democracia moderna, Rousseau, ao dizer que, se “o serviço público cessar de ser o principal negócio dos cidadãos e eles preferirem fazer as vezes mais de sua bolsa que de sua pessoa, o Estado já estará à beira da ruína. [...] é a azáfama do comércio e das artes, é o ávido interesse de ganho, é a moleza e o amor das comodidades que mudam os serviços pessoais em dinheiro. [...] A palavra finanças”, concluía como que ecoando o Platão da República, “é uma palavra de escravo” (Contrat social, III, 15).
Obviamente, nenhum dos grandes filósofos jamais negou que o bem-estar material seja uma das razões de ser da pólis. “Mesmo Aristóteles”, lembra ainda Maxence Hecquard (ibid., 246-247), “que declara na Política que o fim da cidade é ‘viver segundo a felicidade e a virtude’, assinala na Ética a Nicômaco que, para alcançar essa felicidade, ‘se devem levar em conta também os bens exteriores (...), pois é impossível, ou pelo menos difícil, praticar as boas ações quando se está desprovido de recursos para tal’. O homem é precisamente um animal político porque a cidade lhe proporciona numerosos bens manufaturados indispensáveis ao seu bem-estar”. Tal é assim, como dirá Santo Tomás ao comentar o Filósofo, por uma questão de fim (como, aliás, como vimos dizendo deste o início deste blog, em todos os campos da realidade): “a felicidade consiste essencialmente [para Aristóteles, não para o próprio Aquinate, como veremos] no cumprimento da virtude. No entanto, os bens exteriores, nos quais repousam as fortunas, pertencem instrumentalmente [grifo meu] à felicidade” (In Ethicorum, I, lect. 16, n. 187).
Com efeito, para Santo Tomás de Aquino, a felicidade não consiste no cumprimento cabal da virtude, porque, como diz nestas que estão certamente entre as mais importantes linhas da ciência das coisas humanas, “dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina” (De Regno, 466; 74-80). Nem por isso, porém, deixa o Aquinate de reconhecer não só que uma das razões de ser da pólis seja proporcionar bem-estar material aos cidadãos, estando a prosperidade incluída no bem comum (a título, como vimos, de instrumento), mas, mais que isso, que sem um mínimo de bem-estar material a própria contemplação da Verdade se torna muito difícil, quando não impossível. Por esse motivo, aliás, é que dizia ainda o santo Doutor: a propriedade privada é boa, mas tem por limite o bem comum (oh, como hão de vociferar os liberais econômicos ante essa ousadia de pôr limites à sacrossanta propriedade privada!...)
Sucede todavia que, como diz Hecquard (ibid., p. 247), “as previsões de Descartes se realizam: nós nos tornamos cada dia um pouco mais ‘senhores e possuidores da natureza’ [Discurso do método, IV]. O instrumento é cada vez mais aperfeiçoado. Nós podemos, portanto, usufruir ‘sem nenhuma dificuldade dos frutos da terra e de todas as comodidades que nela se encontram’ [idem]. Dizer que as necessidades ‘aumentam’ com o progresso das técnicas [...] é um lugar-comum. Senhor da natureza, o homem se torna escravo de sua ciência. A multiplicação das necessidades acarreta a das trocas”.
(Prossegue.)
Em tempo 1: Por certo já se terá notado a onipresença Descartes na gênese do mundo moderno, quer como fundador de seus esquemas mentais mágicos, quer como vaticinador de um de seus mais importantes desdobramentos. Daí, insistimos, a importância das duas séries sobre ele que estamos escrevendo para este blog (“Descartes: o começo de uma inversão”, do Sidney, e “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser”, minha).
Em tempo 2: Esclareça-se desde já: se um liberal nos vier dizer que a visão econômica católico-medieval é inferior à liberal porque não propicia como esta uma acelerada produção de bens materiais, concederemos perfeitamente. Mas conceda-nos ele o seguinte: a diferença essencial entre as duas visões radica no fato de que, para liberais como Von Mises, a produção material é o que de mais importante pode fazer o homem, enquanto para o catolicismo o que de mais importante pode fazer o homem é o que Deus faz através dele para maior glória de Deus mesmo. E, como se sabe (ou se deveria saber), o mais importante condiciona sempre o menos importante.