sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A imortalidade da alma humana (I)

Carlos Nougué
Os argumentos mecanicistas, que são incapazes de dar conta até do mesmo mundo inorgânico, falham de todo ao tratar o mundo dos viventes. Eles consistem em afirmar que não há nos viventes forças irredutíveis aos fatores físico-químicos, e que tudo no organismo de tais entes se dá em razão de reações mais ou complexas desses fatores; além disso, como função alguma é absolutamente própria ao domínio da vida, os limites entre o inorgânico e o orgânico, se existem, são de todo imprecisos e indiscerníveis.

Mas não será absolutamente evidente que os organismos não são meros agregados de elementos justapostos nem máquinas altamente complexas? Quanto a serem agregados, nem é preciso redargüi-lo aqui. Quanto a serem máquinas, diga-se simplesmente que, ao contrário das máquinas, que deixam de funcionar pela falta de uma pequena peça, os organismos dispõem de capacidade de adaptação, quando não de regeneração. Claro está, tudo quanto se passa num ente vivo é materialmente físico-químico; a digestão, por exemplo, rege-se por reações químicas ligadas à estrutura molecular e ao processo de seu equilíbrio. Esta constatação, todavia, não nos deve perturbar de modo algum, pois que se trata aqui do modo mesmo como as leis da matéria se aplicam aos organismos. Tome-se a assimilação. Um ente vivo transforma nele mesmo elementos que lhe são exteriores — transforma, e não meramente os justapõe. É portanto “ridículo dizer, com certos mecanicistas retardatários, que o equivalente da nutrição se encontra nos cristais: nestes encontra-se uma adição de elementos que obedece a leis de estrutura harmoniosa, que põem em cena o mecanismo a partir do nível da matéria inanimada [...], mas esta adição permanece de tipo muito diferente de um fenômeno verdadeiramente vital” (Louis Jugnet, La pensée de Saint Thomas d’Aquin, Paris, Nouvelles Éditions Latines, 1999, p. 89). Ademais, o desenvolvimento de cada organismo se dá de maneira completamente diversa do que querem fazer crer os postulados mecanicistas. Veja-se o caso da embriogênese: nada mais finalista do que ela, quer a consideremos em conjunto, como a passagem de duas células iniciais a um organismo muitíssimo complexo, quer a consideremos em pormenor, como o órgão da visão, que se desenvolve anteriormente a qualquer necessidade atual de funcionamento. (Calcula-se que, dadas as treze condições requeridas para que o olho funcione, há 999.985 possibilidades contra 15 de que falte ou falhe uma daquelas condições. E, contudo, não é a cegueira nem as más-formações oculares o que se impõe como regra — muito pelo contrário. O matemático é aqui amplamente suplantado pelo biológico, pelo vital, pelo que caracteriza essencialmente a vida.) Mais que isso, o organismo defende-se desde o desenvolvimento inicial até a morte; tenha-se disto o exemplo da luta contra as infecções, o da regeneração de certos membros ou órgãos, e o da própria reprodução, que não é senão o outro nome da luta contra a aniquilação das espécies.*

Se porém já vimos a irredutibilidade do orgânico ao inorgânico, resta ainda por ver a diferença, no reino do vivente, entre o vegetal e o animal. O primeiro, conquanto se inclua incontestavelmente no reino da vida, dado que nasce, luta, assimila, se desenvolve e se reproduz, com o que manifesta aspectos essenciais daquela finalidade que caracteriza o ente vivo, não possui todavia “consciência” sensível sequer. Ele não é dotado de sistema nervoso central, nem de nervos, nem de órgãos propriamente ditos, os quais são a condição de qualquer consciência sensível, ainda que mínima. (Ser difícil classificar tal ou qual ente vivo como vegetal ou animal não nos pode conduzir a negar, de modo algum, a distinção de princípio entre ambos.) Só no animal se encontra a sensação, a memória sensível, o instinto (a estimativa, que estudaremos alhures), o prazer, a dor e muitas outras coisas mais, conquanto não a vontade nem a razão, próprias unicamente do homem.

Antes pois de passarmos à alma humana, é preciso ainda tratar um pouco do psiquismo animal. Como dizia Santo Tomás (ver Suma Teológica, Ia, q. 75, a. 3, e Suma contra os Gentios, II, c. 82), não se pode negar aos animais certa atividade sensível, certa ação sensorial, absolutamente comprovável tanto pela sua constituição como pelo seu comportamento (“seria absurdo dizer que diante de um chicote brandido um rapazinho foge por ter medo, enquanto um animal faria o mesmo por mera reação mecânica, como o supõe o insustentável paradoxo cartesiano dos animais-máquinas” – Louis Jugnet, ibid., p. 91); mas tampouco se deve explicar por uma suposta razão o que se explica tão-somente pelo instinto, pela memória sensível, pelas sensações. Falta aos animais o que caracteriza precipuamente a atividade intelectual, a saber: as noções abstratas, a linguagem articulada, os progressos técnicos, as preocupações estéticas, éticas e religiosas.

Em suma, o animal possui efetivamente uma alma, uma forma dotada de consciência sensível, ou melhor, uma forma que é fonte de tal consciência; mas esta alma não sobrevive à destruição do corpo. Ela é sempre co-extensiva, de alguma maneira, às condições materiais ou orgânicas de base, e desaparece com elas.

Com o homem tudo se passa muito diferentemente. E, se por um lado o conhecimento de que somos capazes refuta o materialismo, é impossível por outro lado que o nosso princípio pensante apenas se acrescente ao corpo, considerado este como substância distinta.

O homem não é, como os Anjos, puramente espiritual; é dotado de corpo, ou melhor, de corpo material, extenso, constituído de partes diferenciadas. O conjunto destas partes, todavia, não constitui mero agregado acidental; tem, ao contrário, unidade substancial. Cada um de nós constata, desde tenra infância, que sou eu que me locomovo, sou eu que me alimento, e sou eu que sofro esta ou aquela dor, não a minha cabeça, nem a minha perna contundida no pique. Tudo quanto tenho por dentro, vísceras, veias, sangue, assim como tudo quanto tenho por fora, pele, pêlos, unhas, pertence inteiramente a mim; não tem nenhuma autonomia vital. Os atos executados tanto pela minha mão direita como pela esquerda não são executados senão por mim mesmo; toda e qualquer ação ou movimento que me parta dos membros é não só de minha inteira propriedade, mas de minha inteira responsabilidade. Ora, se sou eu que sou, e completamente, em mim mesmo, e se é para a minha vida que estão dispostos todos os meus órgãos ou partes do corpo, então sou o que sou no sentido metafísico preciso de substância.

Prossigamos neste último ponto. Há em todas as substâncias materiais, donde também no homem, um princípio que lhes determina a matéria segundo o modo de ser próprio a cada uma delas — têm pois uma forma substancial. E é justamente esta forma o que rege não somente a disposição das diversas partes no todo, mas o próprio ser deste todo e toda a sua atividade. Pois é precisamente à forma substancial do homem e de todos os outros entes vivos, vegetais como animais, que chamamos alma.

Assim, a alma e o corpo não são dois entes distintos, mas dois distintos princípios de um mesmo ente. Sem uma alma, não há um corpo. O cadáver de um homem não é, de modo algum, um corpo humano; aqui, sim, é que temos um agregado acidental de células, despojado de toda e qualquer unidade substancial. E tanto é assim, que cada uma das suas partes seguirá doravante evolução própria, sem nenhuma dependência para com as demais, sem nenhuma subordinação a nenhuma lei reguladora do conjunto. Se há unidade do corpo, é porque há uma alma; mais: se há corpo, é porque ele está conformado por uma alma, ou melhor, pela sua indissociável ou inextricável alma.

(Continua.)

* Quanto a serem os vírus-proteínas intermediários entre o inorgânico e o orgânico – verdadeiro cavalo-de-batalha dos antifinalistas –, veja-se o estudo de Hansjurgen Standinger (in Universitas, Stuttgart, setembro de 1947, cit. por Louis Jugnet, ibid., p. 90, n. 25), que o nega peremptória e fundadamente. E, se em 1928 o professor Needham, biólogo de Cambridge, afirmava (ver Louis Jugnet, idem): “Atualmente, a zoologia deriva da bioquímica comparada, e a fisiologia da biofísica”, já em 1941 se retificava: “A organização biológica não pode reduzir-se a uma organização bioquímica, pois nada pode reduzir-se a outra coisa” (grifo nosso).