Carlos Nougué
Nota prévia 1: Ante a continuidade desta série, mais “árida” que as outras, peço ao leitor, novamente, a paciência da busca da verdade. Esta série (em contraponto com “Descartes: o começo de uma inversão”, do Sidney) é essencial para pôr a descoberto a “mascarada” da filosofia cartesiana e, portanto, de todo o pensamento que a segue, pensamento que vai desembocar no liberalismo.
Nota prévia 2: Ainda esta semana, retomarei a série “Pensamento mágico e bom senso”. E, se me ausentei do blog por certo tempo, não foi senão para assegurar o pão de cada dia.
Nota prévia 1: Ante a continuidade desta série, mais “árida” que as outras, peço ao leitor, novamente, a paciência da busca da verdade. Esta série (em contraponto com “Descartes: o começo de uma inversão”, do Sidney) é essencial para pôr a descoberto a “mascarada” da filosofia cartesiana e, portanto, de todo o pensamento que a segue, pensamento que vai desembocar no liberalismo.
Nota prévia 2: Ainda esta semana, retomarei a série “Pensamento mágico e bom senso”. E, se me ausentei do blog por certo tempo, não foi senão para assegurar o pão de cada dia.
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Dando continuidade à demonstração de que, ao contrário do que diz certa objeção, o “Penso, logo existo” de Descartes não é um juízo, mas um entimema ou silogismo truncado, insistamos, por um lado, na descrição do juízo e distingamos, por outro lado, proposição e juízo, que no artigo anterior deixei provisoriamente identificados.
Antes de tudo, o juízo pode ser afirmativo (por exemplo, o “Todo aquele que se equivoca é um ente” de Santo Agostinho) ou negativo (por exemplo, “Todo pensamento mágico não é veraz”), ou seja: no primeiro caso, o juízo une “um ente” a “Todo aquele que se equivoca”, enquanto, no segundo caso, o juízo separa “é veraz” de “Todo pensamento mágico”. Essas duas operações, a de unir ou afirmar e a de separar ou negar (que em conjunto constituem o ato dito, em latim, do firmando vel negando), pertencem ao juízo propriamente dito, o juízo categórico, que se expressa por uma proposição igualmente categórica. Mas para prosseguirmos é preciso explicar justamente essa distinção entre juízo e proposição.
Ora, com efeito, nem toda proposição ou enunciação (o conjunto de sujeito + predicado) é um juízo. Assim, toda e qualquer oratio imperativa (por exemplo, “Toma a tua cruz” e “siga empós de mim”) será uma proposição sem ser, porém, um juízo: nela nada é julgado. Igualmente, toda e qualquer oratio deprecativa (ou seja, que suplica), assim como toda e qualquer oratio optativa (ou seja, que deseja), será um proposição sem ser, todavia, um juízo: tampouco nelas se julga nada. Da mesma forma ainda, todo e qualquer juízo formado na mente pressupõe uma enunciação ou proposição interrogativa (como, por exemplo, “René é filósofo?”) que, obviamente, ainda não é um juízo. Sê-lo-á, porém, a resposta a ela, expressa ou por uma proposição afirmativa (“René é filósofo”) ou por uma proposição negativa (“René não é filósofo”). Se, no entanto, nem toda proposição é um juízo, todo e qualquer juízo, por sua vez, se expressa obrigatoriamente por uma proposição. Em que, pois, reside a diferença entre juízo e proposição? Reside em que o juízo é uma sentença, é um assentimento (do lat. assensus), é um assentir que afirma ou nega no interior do espírito*, e que tem anterioridade com respeito à proposição que o expressa, assim como a apreensão de uma coisa real por um conceito tem anterioridade com relação ao termo que o expressa. (Ainda não se fala aqui da expressão material da proposição, mas da mesma proposição enquanto expressão mental do juízo, distinção esta que, porém, ficará para outra oportunidade.) O juízo é, pois, um ato irredutível e imanente, que cada um de nós conhece por experiência própria. (Essa distinção entre o ato do espírito e a expressão lógica por ele produzida [a proposição] se tornou incompreensível para os pensadores modernos em grande parte pela influência nefasta do idealismo kantiano, que os confunde.)
Mas há outro tipo de juízo, um juízo, digamos, “impropriamente” dito: o chamado juízo hipotético. Enquanto o juízo categórico se expressa por uma só proposição (também dita categórica), na qual se unem ou se separam dois termos (por exemplo, “René” é ou não é “filósofo”), o juízo hipotético se expressa por duas enunciações ou proposições (por exemplo, “Se René é filósofo, é homem”, ou seja: “René é filósofo” e “René é homem”). Mas por que o juízo hipotético (cujas espécies já veremos) é um juízo “impropriamente” dito ou, acrescentemos, “segundo”? Precisamente porque, ao contrário do juízo categórico, ele não é simples, sendo a simplicidade, como vimos no artigo anterior, a nota essencial do juízo enquanto tal. E precisamente por ser simples é que a operação mental propriamente chamada juízo produz antes de tudo (per se primo), como se disse, uma proposição categórica que também é sempre simples (um sujeito a que se atribui um predicado, estando o predicado para o sujeito assim como a forma está para a matéria), enquanto a operação mental chamada juízo hipotético produz o que se chama proposição composta (um sujeito a que se atribui um predicado + um sujeito a que se atribui um predicado: “René é filósofo” + “René é homem”).
Ora, podemos classificar as diversas espécies de proposições ou segundo o essencial, ou segundo o acidental. Na classificação segundo o essencial,** a proposição se subdividirá em razão do que constitui a sua unidade, a saber, em razão da cópula ou verbo de ligação. Ter-se-ão, assim, três subdivisões gerais:
1) Segundo a quantidade ou espécies de cópulas:
a) Proposições simples ou categóricas;
b) Proposições compostas ou hipotéticas;
2) Segundo o fato de o verbo de cópula unir ou separar:
a) Proposições afirmativas;
b) Proposições negativas;
3) Segundo o fato de o verbo de cópula unir ou separar pura e simplesmente:
● Proposições simplesmente atributivas;
ou segundo o fato de o verbo de cópula comportar certo modo em sua própria função afirmativa ou negativa:
● Proposições modais.
Interessam-nos aqui e agora tão-somente as “proposições compostas ou hipotéticas”, cujas espécies são :
1) as proposições claramente compostas ou formalmente hipotéticas, que se subdividem em:
a) Proposições copulativas (por exemplo, “Uns pensam realisticamente e outros pensam magicamente”);
b) Proposições disjuntivas (por exemplo, “Ou se pensa realisticamente, ou se pensa magicamente”);
c) Proposições condicionais (por exemplo, “Se se pensa realisticamente, pode-se verdadeiramente filosofar” ou, ainda, “Se se pensa magicamente, não se pode verdadeiramente filosofar”)
2) as proposições ocultamente compostas, que por sua vez se subdividem em:
a) Proposições exclusivas (por exemplo, “O pensamento realista é tal, que somente nele o que é propriamente humano pode desenvolver-se convenientemente”);
b) Proposições exceptivas (por exemplo, “Todas as formas de pensamento, salvo o realista, são falazes”);
c) Proposições reduplicativas (por exemplo, “O pensamento mágico enquanto pensamento mágico deve ser negado”).
Pois bem, pergunta-se: em quais dessas subdivisões dos juízos e das proposições se enquadra o “Penso, logo sou” de Descartes?
* Naturalmente, também podemos dizer que com respeito às coisas memas o juízo afirmativo é um assentimento (assensus) e o juízo negativo uma recusa de assentimento (dissensus) . Com respeito, porém, à enunciação que se forma no espírito, todo e qualquer juízo (seja afirmativo, seja negativo) é um assentimento: assim, “Sim, o realismo é a forma de pensar propriamente humana”; e “Sim, René não é filósofo”.
** Segundo o acidental, a proposição terá muitas divisões, entre as quais a divisão de acordo com a quantidade e a divisão de acordo com a extensão do sujeito (proposições universais, particulares, etc.).
Antes de tudo, o juízo pode ser afirmativo (por exemplo, o “Todo aquele que se equivoca é um ente” de Santo Agostinho) ou negativo (por exemplo, “Todo pensamento mágico não é veraz”), ou seja: no primeiro caso, o juízo une “um ente” a “Todo aquele que se equivoca”, enquanto, no segundo caso, o juízo separa “é veraz” de “Todo pensamento mágico”. Essas duas operações, a de unir ou afirmar e a de separar ou negar (que em conjunto constituem o ato dito, em latim, do firmando vel negando), pertencem ao juízo propriamente dito, o juízo categórico, que se expressa por uma proposição igualmente categórica. Mas para prosseguirmos é preciso explicar justamente essa distinção entre juízo e proposição.
Ora, com efeito, nem toda proposição ou enunciação (o conjunto de sujeito + predicado) é um juízo. Assim, toda e qualquer oratio imperativa (por exemplo, “Toma a tua cruz” e “siga empós de mim”) será uma proposição sem ser, porém, um juízo: nela nada é julgado. Igualmente, toda e qualquer oratio deprecativa (ou seja, que suplica), assim como toda e qualquer oratio optativa (ou seja, que deseja), será um proposição sem ser, todavia, um juízo: tampouco nelas se julga nada. Da mesma forma ainda, todo e qualquer juízo formado na mente pressupõe uma enunciação ou proposição interrogativa (como, por exemplo, “René é filósofo?”) que, obviamente, ainda não é um juízo. Sê-lo-á, porém, a resposta a ela, expressa ou por uma proposição afirmativa (“René é filósofo”) ou por uma proposição negativa (“René não é filósofo”). Se, no entanto, nem toda proposição é um juízo, todo e qualquer juízo, por sua vez, se expressa obrigatoriamente por uma proposição. Em que, pois, reside a diferença entre juízo e proposição? Reside em que o juízo é uma sentença, é um assentimento (do lat. assensus), é um assentir que afirma ou nega no interior do espírito*, e que tem anterioridade com respeito à proposição que o expressa, assim como a apreensão de uma coisa real por um conceito tem anterioridade com relação ao termo que o expressa. (Ainda não se fala aqui da expressão material da proposição, mas da mesma proposição enquanto expressão mental do juízo, distinção esta que, porém, ficará para outra oportunidade.) O juízo é, pois, um ato irredutível e imanente, que cada um de nós conhece por experiência própria. (Essa distinção entre o ato do espírito e a expressão lógica por ele produzida [a proposição] se tornou incompreensível para os pensadores modernos em grande parte pela influência nefasta do idealismo kantiano, que os confunde.)
Mas há outro tipo de juízo, um juízo, digamos, “impropriamente” dito: o chamado juízo hipotético. Enquanto o juízo categórico se expressa por uma só proposição (também dita categórica), na qual se unem ou se separam dois termos (por exemplo, “René” é ou não é “filósofo”), o juízo hipotético se expressa por duas enunciações ou proposições (por exemplo, “Se René é filósofo, é homem”, ou seja: “René é filósofo” e “René é homem”). Mas por que o juízo hipotético (cujas espécies já veremos) é um juízo “impropriamente” dito ou, acrescentemos, “segundo”? Precisamente porque, ao contrário do juízo categórico, ele não é simples, sendo a simplicidade, como vimos no artigo anterior, a nota essencial do juízo enquanto tal. E precisamente por ser simples é que a operação mental propriamente chamada juízo produz antes de tudo (per se primo), como se disse, uma proposição categórica que também é sempre simples (um sujeito a que se atribui um predicado, estando o predicado para o sujeito assim como a forma está para a matéria), enquanto a operação mental chamada juízo hipotético produz o que se chama proposição composta (um sujeito a que se atribui um predicado + um sujeito a que se atribui um predicado: “René é filósofo” + “René é homem”).
Ora, podemos classificar as diversas espécies de proposições ou segundo o essencial, ou segundo o acidental. Na classificação segundo o essencial,** a proposição se subdividirá em razão do que constitui a sua unidade, a saber, em razão da cópula ou verbo de ligação. Ter-se-ão, assim, três subdivisões gerais:
1) Segundo a quantidade ou espécies de cópulas:
a) Proposições simples ou categóricas;
b) Proposições compostas ou hipotéticas;
2) Segundo o fato de o verbo de cópula unir ou separar:
a) Proposições afirmativas;
b) Proposições negativas;
3) Segundo o fato de o verbo de cópula unir ou separar pura e simplesmente:
● Proposições simplesmente atributivas;
ou segundo o fato de o verbo de cópula comportar certo modo em sua própria função afirmativa ou negativa:
● Proposições modais.
Interessam-nos aqui e agora tão-somente as “proposições compostas ou hipotéticas”, cujas espécies são :
1) as proposições claramente compostas ou formalmente hipotéticas, que se subdividem em:
a) Proposições copulativas (por exemplo, “Uns pensam realisticamente e outros pensam magicamente”);
b) Proposições disjuntivas (por exemplo, “Ou se pensa realisticamente, ou se pensa magicamente”);
c) Proposições condicionais (por exemplo, “Se se pensa realisticamente, pode-se verdadeiramente filosofar” ou, ainda, “Se se pensa magicamente, não se pode verdadeiramente filosofar”)
2) as proposições ocultamente compostas, que por sua vez se subdividem em:
a) Proposições exclusivas (por exemplo, “O pensamento realista é tal, que somente nele o que é propriamente humano pode desenvolver-se convenientemente”);
b) Proposições exceptivas (por exemplo, “Todas as formas de pensamento, salvo o realista, são falazes”);
c) Proposições reduplicativas (por exemplo, “O pensamento mágico enquanto pensamento mágico deve ser negado”).
Pois bem, pergunta-se: em quais dessas subdivisões dos juízos e das proposições se enquadra o “Penso, logo sou” de Descartes?
* Naturalmente, também podemos dizer que com respeito às coisas memas o juízo afirmativo é um assentimento (assensus) e o juízo negativo uma recusa de assentimento (dissensus) . Com respeito, porém, à enunciação que se forma no espírito, todo e qualquer juízo (seja afirmativo, seja negativo) é um assentimento: assim, “Sim, o realismo é a forma de pensar propriamente humana”; e “Sim, René não é filósofo”.
** Segundo o acidental, a proposição terá muitas divisões, entre as quais a divisão de acordo com a quantidade e a divisão de acordo com a extensão do sujeito (proposições universais, particulares, etc.).