terça-feira, 24 de junho de 2008

Consciência e obediência (entre a "autonomia" e o "sim" a Deus)

Sidney Silveira
Já vimos algumas coisas relevantes, em textos anteriores:

a. A consciência não é uma superestrutura da alma, mas apenas a aplicação de uma ciência habitual a algo;
b. Em termos metafísicos, a consciência é ato, e não potência;
c. Não é na consciência que reside a liberdade humana, mas na vontade;
d. Sendo uma “ciência unida a algo” (cum alio scientia, na expressão de Santo Tomás), a consciência não pode ser autônoma, porque dois são seus insumos básicos: 1º- A impecável sindérese — hábito natural que capta os primeiros princípios da razão prática; 2º- E as experiências adquiridas sempre à luz desse princípio indefectível. Isto para não entrarmos no mérito, entre outros, do ensino das verdades filosóficas fundamentais, que é um santo antídoto contra teorias engambelantes, como a que prega a contraposição entre consciência individual e autoridade exterior (essa tese merecerá, noutro texto, uma verdadeira dissecção do sofisma fundamental que embute);
e. Por todo esse condicionamento e por muitas razões que não cabe enumerar aqui — por mera questão de espaço —, a consciência é falível, ou seja, passível de erro, razão pela qual Santo Tomás afirma que a consciência não é regra regulante, mas “regra regulada” (regula regulata, cf. De Veritate, q. 17, a. 2, ad 7). Regra no ato das nossas escolhas, e regulada pelo princípio que a alimenta, o da sindérese, tão evidente que não precisa ser demonstrado, mas apenas mostrado.

Por ora, bastam essas constatações para o que, no momento, nos interessa. A primeira pergunta é: Como pode haver conciliação entre uma teoria que prega a autonomia da consciência individual (e mais, usando o nome “consciência” de forma totalmente equívoca) e outra que ressalta a absoluta necessidade de a consciência obedecer à norma externa promulgada por um Magistério — o da Igreja — participado pelo próprio Deus aos homens, ainda que esse Magistério seja, tão-somente, causa instrumental e não formal do exercício de uma autoridade que é própria apenas do Cristo? Pois bem, antes de mostrar o quão inconciliáveis são essas posições — a do católico, obediente, e a do liberal, que prega a autonomia da consciência —, é preciso deixar consignados alguns princípios, quanto ao Magistério da Igreja. Com relação ao objeto do Magistério, é preciso distinguir dois: o objeto primário são as verdades reveladas explícita ou implicitamente por Deus, seja na Sagrada Escritura ou pela tradição apostólica; o objeto secundário se estende a todas as coisas que, embora não tenham sido explicitamente reveladas, ao juízo da autoridade eclesiástica estão de tal forma integradas à Revelação, que são necessárias para custodiar integralmente essas mesmas verdades. Para defendê-las são proclamados os dogmas, que derrogam as opiniões a eles contraditórias.

Sendo assim, a anuência que o fiel católico dá ao Magistério não é a culminância de um processo dialético de busca da verdade, por parte da consciência individual (até porque a consciência não busca nada; apenas aplica), mas é anuência sob o peso da autoridade apostólica, já que quem diz é Deus, por meio dos seus consagrados: é o “sim” da fé às verdades primordiais reveladas pelo próprio Deus, e, por isso, em seu Comentário ao Credo, Santo Tomás afirma algo curioso: uma velhinha com fé, de certa forma, sabe mais do que... Aristóteles! Portanto, para o católico, a autoridade aperfeiçoa a liberdade, daí que deva ser sempre exercida pelos órgãos do Magistério eclesiástico, e mesmo as autoridades civis legítimas devem também ser obedecidas, como ensinou Leão XIII (pois toda autoridade humana vem do alto, como se lê em Jo. XIX, 1o-11); para o liberal, a autoridade (qualquer uma, civil ou religiosa!) coage a liberdade, daí que se queira sempre reduzi-la, no caso do Estado, ou dela ser de alguma forma independente, no caso das relações do liberal católico com a Igreja, o que lhe fará tender sempre a moldar o Magistério à sua consciência, que ele presume ser o epicentro da liberdade. Mas, aqui, a relação já se inverteu: a consciência (humana) tornou-se norma para o Magistério (divino). Por isso não exagera quem afirma o seguinte: entre o “sim” humilde e benévolo da alma simples e obediente, e o non serviam da alma orgulhosa e cheia de malícia, eis a distinção entre essas doutrinas.