terça-feira, 17 de junho de 2008

Antes da consciência, a alma (I)

Sidney Silveira
A supervalorização do papel da consciência, corriqueira entre liberais de todas as vertentes, nasce da absoluta falta de uma teoria conseqüente sobre o que seja o homem, a começar por seu princípio intrínseco de movimento: a anima, com todas as suas potências.

Em suma, sem uma antropologia filosófica consistente, cai-se em reducionismos nefastos em psicologia (e, no caso dos liberais, basta lermos o que, ao longo dos tempos, escreveram sobre a natureza humana, sobre a liberdade, etc., para constatarmos que, na melhor das hipóteses, eles fizeram das potências inferiores da psique o parâmetro das superiores). Cai-se também em uma péssima teoria política, uma teoria econômica em que os meios e os fins se invertem, literalmente, e uma teoria do direito de cunho contratualista, que engessa a lei nas fórmulas jurídicas, dada a perda do vínculo entre lege e natura — realidades estas que veremos em textos futuros. Uma tragédia em toda a linha!

Portanto, depois de adquirida uma base metafísica — sem a qual a filosofia tende a se transformar numa conversa de rufiões —, convém investigar o que é o homem, de que potências se constitui, quais são os seus atos próprios, o que nele é natural e a que fim tendem as suas operações.

Na estrutura psicofísica do homem, a forma dá o ser ao composto (forma dat esse). É o que diz, com muita propriedade, Santo Tomás. No caso, o que a forma "dá" é a vida, como fica claro na bela fórmula “a vida é o ser para os viventes”. Vale lembrar que, em todos os entes compostos de matéria e forma, a forma tem prioridade sobre a matéria, pois a matéria não se move nem age por si, mas é potência para ser movida por outrem, como Aristóteles já ensinara. No caso do homem, a forma é a alma, e esta, de acordo com a clássica definição, é o princípio intrínseco de movimento do corpo. Não fosse assim, seríamos entes tão inanimados quanto uma porta, o que a experiência mostra ser absurdo — não obstante a porta não ter potências para a burrice, atualizadas em muitos dos nossos semelhantes. Assim, fica desde logo refutada a corrente de psicologia conhecida como monismo materialista, que nega a existência da alma. É simples: se o homem não tivesse alma, não poderia movimentar-se por si.

Quais seriam, então, essas potências da alma humana? Voltemos a Tomás de Aquino, e não por um arqueologismo anacrônico, mas porque a sua psicologia é, ainda hoje, uma referência fundamental, como demonstra Martín F. Echavarría no seu monumental La Praxis de la Psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás. Pois bem: diz o Santo Doutor que a alma humana possui cinco gêneros de potências: vegetativas, sensitivas, apetitivas, motrizes e intelectivas. Consideradas em seu conjunto e a partir de suas operações, essas potências representam o horizonte máximo das possibilidades humanas, pois, como acontece em todo ente composto de matéria e forma, só podemos operar no limite das possibilidades da nossa forma — razão pela qual eu não posso ficar, por exemplo, durante 25 minutos embaixo d’água, pois a forma entis humana não é como a dos hipopótamos. Gravemos, então, em nossa memória: a forma é o princípio, e também o limite, da operação dos entes.

Pois bem.
O papel da consciência, nessa estrutura, embora importante, é bastante delimitado. A tentativa de torná-la uma substância ou potência especial resultou, na história da psicologia, no chamado paralelismo psicofísico — postura que não resolve o problema das relações alma/corpo, nem se há uma ou mais formas substanciais na alma—, pois se limita a constatar o paralelo entre fenômenos psíquicos e orgânicos.

Continuaremos, nos próximos textos, a estudar os atos próprios do homem e a estrutura da alma, e, mais adiante, veremos quão nefasto é o ato de hipertrofiar o papel da consciência nesse ente composto que é o homem.