segunda-feira, 23 de junho de 2008

Música e beleza (I)

Carlos Nougué
Joahnn Sebastian Bach encerra alguns mistérios. Entre eles, o fato de ter sido um luterano e, no entanto, ter querido rematar sua obra com uma católica Missa em Si menor em cuja composição levou 25 anos — ele, que compunha num abrir e piscar de olhos. Karl Geiringer explica-o de maneira interessante, conquanto apenas introdutória, em Johann Sebastian Bach, The Culmination of an Area.

Mistérios à parte, porém, o fato é que é de Bach uma frase que encerra, por seu lado, toda uma doutrina a respeito da música: “A música serve para louvar a Deus e para recrear a alma dentro de justos limites. Se se perde isso de vista, a música não passará de barulhos infernais”. E doutrina justa. Está na linha de Platão (que, embora rechaçasse em grande medida as artes, dava lugar especial à música); de Aristóteles (que dedica a ela o último capítulo que nos chegou de sua Política); de Santo Agostinho (leia-se o seu De musica); e, de modo geral, do pensamento católico, segundo o qual, como é óbvio, não podemos ser católicos sem sê-lo inteiramente, em todas as nossas manifestações, e segundo o qual todos os nossos fins intermediários ou se ordenam ao nosso fim último, ou simplesmente deixam de ser fins.

Bach, portanto, dá à música (e ipso facto à arte em geral, como veremos em outro artigo) seu fim último e seu fim intermediário. Mais que isso, porém: a própria obra de Bach, intrinsecamente, é um remate prático de uma longa tradição filosófica, que começa com Pitágoras, passa por Boécio, Santo Agostinho e Pseudo-Dionísio Areopagita, e chega a Santo Tomás de Aquino, segundo a qual a beleza (qualquer beleza, da espiritual à material) tem caráter não só transcendental, mas objetivo: é questão de proporções. É questão de proporções tanto a harmonia dos coros angélicos como a harmonia das esferas, e por isso são belos.

Dizê-lo da música de Bach, é verdade, não nos deve fazer esquecer da superioridade do canto gregoriano e do canto polifônico (este, o pós-tridentino); trata-se de superioridade não de espécie, mas de gênero, e portanto insuperável e inquestionável. Mas, por outro lado, Bach é inquestionavelmente uma rotunda negação da música (e da arte) que, após o interlúdio ambíguo do classicismo, se instala na Europa: a música (e a arte) romântica. Ora, o romantismo, nascido como mescla de duas fontes, a gnóstica e a liberal, é um antípoda da arte bachiana: não tem a Deus por fim último, mas o próprio indivíduo humano; não busca recrear a alma dentro de justos limites, mas antes busca exacerbar-lhe as paixões; e, em vez de ser uma imago da harmonia da Divindade e do universo, expressa, em grande parte dos casos (já no Bethoveen de transição, e muitíssimo em Wagner), uma desarmonia das esferas — ou melhor, a desarmonia do homem revolucionário, liberal e afastado da Igreja.

Em tempo: para Bach, a forma musical chamada fuga era uma imagem ou expressão das processões da Santíssima Trindade.