Sidney Silveira
Para demonstrar efetivamente que as espécies evoluem, seria antes necessário comprovar que os entes podem operar para além das potências radicadas em suas formas, alterando assim o que os distingue na ordem do ser como circunscritos a uma espécie. Sem isto, a teoria da evolução — no tópico em que propõe a passagem "evolutiva" de uma espécie a outra — naufraga como quimera com ares de ciência.
Antes porém de passar à indagação acerca da possibilidade de uma espécie transmudar-se em outra, seja por razões endógenas, exógenas ou, ainda, pela combinação de ambas, como numa mescla acidental entre elementos primários, vale repisar alguns conceitos.
Vimos que potência é um possível no Ser, ou, noutra formulação, o Próprio Ser — que é Deus, cuja existência está metafisicamente comprovada — é a raiz primária de todas as potências, o horizonte possibilitante dos entes, quanto ao ser e quanto ao operar. Em resumo, sem o Ipsum Esse nada poderia haver nem atuar. E mais, como Ele é o único Ente Necessário, é forçoso admitir que todos os demais são partícipes d’Ele, na medida em que participar uma perfeição na ordem do ser é, em sentido estrito, causar, e, sendo o Próprio Ser a causa das causas, todos os entes estão radicados n’Ele, visto que suas perfeições entitativas específicas foram participadas.[1]
Explicar o conceito de causalidade a partir da noção de participação não é, no caso de Tomás de Aquino, simplesmente aplicar terminologia platônica à teoria aristotélica das causas[2], mas enfatizar um determinado aspecto da relação entre causa e efeito: o efeito possui semelhança com a causa, na medida em que participa da mesma qualidade dela, e diferença, na medida em que está na posse daquela qualidade num grau inferior e/ou acidental. Disto se depreende que o conceito de participação na obra do Aquinate é essencialmente analógico, como sublinha o Pe. Battista Mondin em seu Dizionario Enciclopedico del Pensiero de San Tommaso. Veremos, adiante, como essa participação — decorrente do ato criador de Deus — é fundamento da distinção entre as espécies.
Neste breve texto não se encontrarão argumentos da química ou da biologia, como os arrolados por Michael Behe em seu estupendo A Caixa Preta de Darwin, cuja conclusão é cabal, apodíctica: a complexidade das estruturas em nível bioquímico é irredutível, ou seja, não pode ser explicada como resultado da evolução a partir da seleção natural, mas sim como projeto concebido por uma poderosa inteligência; portanto, como design inteligente. Aqui se encontrarão apenas argumentos metafísicos para mostrar que é impossível aos entes transcender às possibilidades que radicam:
a) proximamente nas suas formas, e
b) distantemente no Ser.
A forma como princípio de operação
Nos entes compostos de matéria e forma, a forma é o ato primeiro de organização da matéria, sendo a operação o seu ato segundo.[3] Portanto, um ente sem forma seria — além de absurdo e inconcebível —, tão inoperante quanto a materia prima. É a forma que, organizando a matéria,[4] dá ao ente os princípios pelos quais atua. Neste contexto, cumpre salientar a absoluta harmonia entre matéria e forma em ordem à operação própria de um ente, assinalando o seguinte: uma matéria que, em dado indivíduo, não fosse predisponente às operações próprias da espécie indicaria nele o começo da corrupção da forma. Por exemplo: num hipotético homem privado das potências sensitivas partícipes da espécie, a cognição se comprometeria, na medida em que é próprio do homem chegar aos inteligíveis (universais) pelos sensíveis (particulares) abstraídos da matéria pelas referidas potências sensitivas.
Reiteremos, pois, este princípio com outras palavras — a mero título de procedimento mnemônico: em todas as espécies em que há composição de matéria e forma, é necessário que a matéria esteja perfeitamente predisposta às operações que radicam na forma, pois, se não estiver, tornar-se-á um obstáculo às operações naturais próprias da espécie, indicando o começo da corrupção da forma, que é princípio de operação e, como veremos, também de especificação.
Por sua vez, a matéria é o que, em sentido lato, está em potência tanto para o ser substancial como para o ser acidental. À primeira chamará Santo Tomás matéria “a partir da qual” (materia ex qua), à segunda, “matéria na qual” (materia in qua).[5] A propósito, a matéria ex qua é um dos coprincípios da natureza, sendo os outros dois a forma e a privação. Mas, com relação a esta última, esclareçamos o modo como ela pode ser dita “princípio”, que é o seguinte: para haver geração, requerem-se três coisas — o ente em potência (matéria); o não estar em ato (privação); e aquilo pelo qual o ente é atual (forma).[6] O exemplo dado pelo Aquinate nesta passagem do opúsculo De Principiis Naturae é bastante esclarecedor:
“(...) Quando, a partir do cobre, é feita uma estátua,[7] o cobre (que está em potência para a estátua) é matéria; que esse cobre esteja desfigurado, indisposto [ou seja: sem forma], é privação; e a figura pela qual ele é chamado “estátua” é forma”.[8]
Retenhamos bem isto: em todos os entes naturais (assim como nos artificiais), os coprincípios são forma, matéria e privação, sendo estes dois últimos meramente potenciais, ao passo que a forma é o ato que os distingue e, também, demarca os limites de seu modo de operar na ordem do ser. Neste contexto, o axioma escolástico operatio sequitur esse deve ser assim entendido: nos entes, o operar segue o ser por intermédio da forma. Ela é, como se pode depreender, o princípio próximo da operação, ao passo que o ser é um princípio universal que está virtualmente presente em todas as formas. Mas o ser — em sentido estrito — não pode ser manipulado, alterado, anquilado ou criado senão por Deus, que o participa aos entes por um ato criador.
Nós, pobres mortais dotados de potências intelectivas ínfimas, somos capazes de atuar tão-somente sobre a forma e sobre a matéria dos entes, mas o ser é o suposto fundamental absolutamente inalcançável pela mão humana — ou mesmo pelos Anjos, cuja inteligência é incomensuravelmente superior.
Nunca ninguém tocou o ser, mas apenas a forma e a matéria dos entes.
Feitos estes apontamentos, fica, portanto, estabelecido o sentido em que se diz que a forma é princípio de operação. Sem ela, a matéria é inerte.
A forma como princípio de especificação
Outra característica da forma é ser princípio de especificação. E isto por uma razão muito simples: é pela forma que um ente se enquadra num gênero ou numa espécie.[9] Ora, se fosse a matéria o princípio de especificação, todos os entes compostos de matéria e forma seriam da mesma espécie, hipótese excluída por ser absurda. Pelo mesmo motivo não pode a privação — que é um dos princípios da natureza — ser chamada de princípio de especificação, porque é impossível classificar como pertencente a uma espécie o que é, em si mesmo, privação de quaisquer propriedades substanciais.
Abra-se um breve parêntese para dizer que o conceito de espécie é, aqui, arrolado em sua concepção metafísica, e não de acordo com a taxonomia da biologia atual. Esta concebe a espécie como unidade básica na classificação dos seres vivos, embora não haja um consenso absoluto com relação a tal definição, que todavia é largamente aceita.
Assim, para a biologia há:
Ø Domínio
Ø Reino
Ø Filo
Ø Classe
Ø Ordem
Ø Família
Ø Gênero
Ø Espécie
Diga-se, em princípio, que esse modo de classificar as espécies, embora bastante útil para os fins a que se destina a ciência biológica, é entrópico por natureza, na medida em que tende a aumentar em progressão geométrica o número de espécies a partir de pequeníssimas diferenças. Para ter-se idéia disto, há hoje aproximadamente 180.000 espécies de lepidópteros (borboletas e mariposas),[10] distribuídas por 127 famílias. Algumas dessas espécies são classificadas a partir de meras diferenças materiais, mas não formais; outras, sim, têm diferenças quanto ao modus operandi que, para a metafísica, justificariam uma classificação como espécies distintas. Não se quer com isto afirmar que a taxonomia biológica é inválida, mas apenas mostrar que o âmbito no qual os seus conceitos se formulam não serve para os problemas radicais com que lida a metafísica.
A propósito, a metafísica, cujas considerações são anteriores às da biologia, tem uma classificação distinta das espécies. Para ela, espécie é o que radica na forma, e portanto em um modo próprio (e único!) de operar. E com o vocábulo “próprio” referimo-nos a um dos cinco predicáveis aristotélicos, ou seja, às propriedades que, não sendo a essência de um ente, estão no entanto associadas inextricavelmente a ela. Não se trata, pois, de propriedade enquanto comportamento de uma classe de indivíduos numa espécie, mas sim de algo anterior: o estatuto ontológico da espécie, que inclui todos os seus predicamentos.
Convém também destacar que, na ordem do ser, nem toda potência radica na matéria, mas toda matéria implica potência. Diga-se, neste contexto, que a potência é o fundamento real do devir, pois todos os sujeitos do movimento pressupõem ou: a) predisposição ontológica da matéria para a mudança (potência passiva); ou b) capacidade da forma para atuar sobre a matéria e sobre outras formas (potência ativa).
Não é evidentemente o propósito deste breve texto abarcar todo o escopo do conceito de potência, que é imenso, mas apenas destacar alguns aspectos da natureza do ente para mostrar a impossibilidade de um movimento evolutivo de uma espécie a outra, na medida em que as espécies não têm potências ativas nem passivas para transcender as formas que as distinguem, pois, como dizia Aristóteles, “todo devir é algo, de algo e por algo”,[11] e o papel da forma é justamente o de ser algo (princípio de especificação) e o ser por algo (princípio de operação), ao passo que a matéria é o de algo — substrato da ação da forma (nos entes compostos de matéria e forma).[12]
A forma como princípio de inteligibilidade
Outra característica da forma é ser princípio de inteligibilidade, pois “todas as espécies inteligíveis são a forma do intelecto quando intelige em ato”.[13] Um ente sem forma seria, portanto, ininteligível, e a razão disso é a seguinte: embora as formas inteligíveis sejam em si mesmas imateriais (no caso dos homens, porque abstraídas das notas individuantes da matéria pelo intelecto agente), elas na verdade estão nas coisas como princípio operativo e de especificação, como vimos acima.
É em parte graças à existência de tais princípios formais impressos em todos os entes que o intelecto entende as coisas e as classifica, e, como veremos adiante, a classificação metafísica das espécies — devido aos princípios universais de que parte — leva necessariamente a concluir contra a teoria da evolução.
Quando, pois, Tomás de Aquino afirma que “o intelecto se faz inteligente mediante um inteligível em ato” (cf. Liber de Causis, lec.3), está referindo-se às formas como princípio por meio do qual o ser nos é inteligível.
(continua)
P.S. É verdade que, nos últimos anos, a Igreja, pela voz de algumas de suas autoridades (a começar pelos Papas), vem dizendo que não há contradição entre criação e evolução — evitando assim ferir susceptibilidades da mentalidade anticriacionista predominante, sobretudo no mundo ocidental. E até mesmo no seio do tomismo há quem implicitamente defenda esta tese a partir de alguns princípios colhidos em livros como o De mixtione elementorum e o apócrifo De natura materiae.
Mas deixaremos a análise de alguns de seus argumentos para o final desta pequena série.
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2- A propósito, a conciliação da metafísica do ato e da potência de Aristóteles com a doutrina da participação em Platão é um aspecto da síntese magistral feita pelo Aquinate entre os dois gênios gregos.
3- Cf. Tomás de Aquino, In II De Cael 4, n.334.
4- A referência aqui é, evidentemente, aos entes compostos de matéria e forma. Não tratamos aqui das substâncias separadas da matéria: os Anjos.
5- Tomás de Aquino, De principiis naturae, I, 2-3.
6- Tomás de Aquino, De principiis naturae, I, 4.
7- Idolum, no latim. Apenas para facilitar a compreensão do texto do Aquinate, neste artigo traduzimos o vocábulo por “estátua”, e não por “ídolo”.
8- Tomás de Aquino, De principiis naturae, I, 4.
9- Tomás de Aquino, Contra Gentes, II, c 7.
10- A borboleta, por exemplo, pertence ao reino animal; ao filo antrophoda; à classe dos insetos; à ordem dos lepidópteros; e à família papilionoidea.
11- Aristóteles, Física, I, 8, 191b
12- Nos entes sem composição de matéria (os Anjos), a matéria não pode ser o fundamento real do devir.
13- Cf. Tomás de Aquino, Subst. Sep. , c16.