segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (III): incompatibilidade entre fim e meios

(continuação deste texto)

Sidney Silveira


A anterioridade da metafísica com relação às demais ciências não é evidentemente cronológica, mas sim ontológica e, em certo sentido, topológica, na medida em que os seus princípios servem de ponto comum para as ciências de menor grau de abstração da matéria. Neste contexto, a física, que aborda o ente na perspectiva do movimento, do trânsito da potência ao ato, pode no máximo alcançar em seus cálculos, teses, premissas, hipóteses ou teorias aquilo que Santo Tomás chama de materia secunda, que é potência para o ser acidental e, portanto, raiz da distinção numérica dos entes, mas não da distinção formal — ou seja, por espécies.


Por sua vez, a materia prima informe, enquanto potência primeva na ordem dos entes compostos de matéria e forma, está para além das especulações da física porque a sua cognoscibilidade não radica em evidências passíveis de comprovar-se por experimentos empíricos ou suposições oriundas de cálculos matemáticos, visto que a materia prima não possui quaisquer distinções numéricas ou qualitativas. A ela, portanto, só se pode chegar por uma abstração de terceiro grau, tipicamente metafísica. E, ainda assim, o conhecimento a seu respeito será por analogia.


Muito menos podem a biologia ou a química, cujo grau de abstração da matéria é inferior ao da física e ao das matemáticas, dar efetiva resposta ao problema da origem das espécies animais (ou seja, da dos entes compostos de matéria e forma animada). As suas teorias, neste tópico específico, jamais passarão de suposições com roupagem científica, e a razão disto é simples: o seu objeto de estudo está imerso na matéria. Ora, quanto mais distante está a causa do efeito atual, maior abstração da matéria se requer para poder investigá-la, e este, em definitivo, não é o caso da biologia no tocante à origem das espécies, pois ela na prática lida com causas ordenadas acidentalmente (per accidens), nas quais o efeito comum não depende do influxo atual de todas as causas da série para existir,[1] e não com causas ordenadas essencialmente (per se), nas quais efeito, para ser e manter-se, precisa do influxo atual de todas as causas da série. Neste contexto, convém frisar o seguinte:


> Uma ciência que investiga apenas causas acidentais não pode, por definição, conhecer a origem da série causal em seu âmbito — ou seja: a causa primeira.


Não por outra razão, o ramo da biologia consagrado no último quartel do século XX como “biologia evolutiva” padece de uma radical incongruência entre objeto e meios, e, na prática, quando se vêem os seus propugnadores defenderem alguma tese, em geral repleta de dados empíricos agrupados, salta aos olhos que se trata de uma mal-disfarçada espécie de metafísica evolutiva, mas sem o menor rigor demonstrativo da verdadeira metafísica, que parte de evidências ancoradas nos primeiros princípios para chegar a conclusões necessárias.


A propósito, a perda do elevado rigor do método metafísico escolástico explica, em parte,[2] como pôde uma ciência cujo objeto formal está imerso na matéria dar pareceres, formular hipóteses ou desenvolver teses relativas à origem das espécies, estando a sua própria definição de “espécie radicada na matéria informada (e, portanto, materia secunda). Não se trata, é óbvio, de desqualificar a importantíssima ciência biológica, e sim de apontar o quanto ela transcende indevidamente o seu objeto ao formular uma teoria — em verdade, uma hipótese — para a qual não possui sequer instrumentos científicos e filosóficos apropriados.


Ora, toda e qualquer ciência supõe que o mundo é inteligível e que é possível conhecer essa inteligibilidade. Daí que, em qualquer ciência, haja uma pergunta prévia — a ser respondida ao se lhe demarcar o objeto — acerca da demonstrabilidade de suas teses centrais, a qual precisa comprovar-se com todo o rigor. Mas tal pergunta não pode ser respondida senão recorrendo a princípios anteriores aos da própria ciência particular. Sem isto, por mais que a observação e o estudo acurado da realidade levem a conclusões topicamente acertadas, eles naufragarão de forma rotunda no momento em que se tentar dar a essas conclusões particulares um caráter de princípio válido universalmente.


Assim, mesmo que a hipótese da evolução se comprovasse apodicticamente — o que, ao final, veremos ser impossível, dada a estrutura da ordem do ser —, isto não lhe autorizaria a concluir, por exemplo, que as espécies animais não foram criadas — entre outras coisas porque o problema da evolução sequer é o mesmo do da criação. Somente uma ignorância suma acerca do que seja propriamente o problema filosófico da criação é capaz de fazer alguém colocá-lo num mesmo plano da hipótese da evolução das espécies. Esta, de tão imersa no materialismo, sequer vislumbra os conceitos de causa final e causa exemplar, e quando o faz é de forma capenga.


É, portanto, absolutamente falsa a dicotomia criação/evolução. A primeira trata de uma questão de cariz metafísico, pois radica no ser; a segunda soçobra no materialismo. E, a respeito do materialista, bem dizia Chesterton com o seu humor típico:


“É o sujeito que faz uso do espírito para dizer que só existe a matéria”.


(continua)


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1- Por exemplo: dando-se a evolução como certa (a mero título de procedimento dialético), é evidente que a existência atual da espécie Y não depende da existência atual de todas as espécies anteriores na série que culminou nela.


2- Das razões de ordem ideológica trataremos noutra ocasião.