domingo, 5 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (II): resposta a uma objeção comum





(continuação deste texto)


Sidney Silveira


Estabelecido de que maneira se pode dizer que a forma é, na perspectiva metafísica, princípio de operação, de especificação e de inteligibilidade, abra-se um parêntese para responder a uma objeção comum de estudiosos de algumas ciências da natureza: os conceitos da metafísica não podem ser a elas aplicados — pois, entre a ciência metafísica e as dedicadas ao estudo da natureza, existe uma diferença de objeto formal.


Para responder a isto, partamos inicialmente da premissa de que a verdade é este movimento acidental da potência intelectiva que culmina na assimilação imaterial da forma dos entes pelo intelecto.[1] Neste sentido, a verdade é cum fundamento in re. Ou seja: há verdade quando a forma da coisa (que, nos entes compostos de matéria e forma, é princípio organizador da matéria) se transforma em forma inteligível. E tal species inteligível, absolutamente imaterial, é mais ou menos abrangente conforme a universalidade do objeto assimilado pela inteligência.[2] Reiteremos, então, o princípio: a verdade tem fundamento na coisa,[3] na medida em que esta lhe serve de princípio ab extrinseco. Infelizmente, a história da filosofia mostra o quanto essa propriedade da verdade começou a esvanecer-se após Duns Scot e sua distinctio formalis.


Pois bem, feita a referência a este aspecto relacional do conceito de verdade — pressuposto, de alguma forma, em todas as ciências, inclusive a biológica, malgrado as incontáveis divergências quanto ao seu teor —, passemos à observação de que a metafísica, por ser formalmente filosofia primeira (como ensinara Aristóteles), fornece a todas as demais ciências os princípios sem os quais elas sequer poderiam ser chamadas propriamente de “ciências”, a menos que apelemos a uma forçosa analogia. Assim, a matemática não pode desvincular-se do princípio da não-contradição (pressuposto em todas as suas premissas e operações), nem a física desvincular-se do conceito de movimento como trânsito da potência ao ato, nem a biologia, que estuda o ente enquanto possui vida (ou será que os animais não são “entes” viventes?) desvincular-se da noção metafísica de espécie. E isto simplesmente porque a categorização metafísica é formalmente anterior à das demais ciências, que pegam os seus princípios de empréstimo da filosofia primeira para lograr os fins a que orientam os seus estudos.


É claro que há correntes da matemática que tentam negar o estatuto do princípio de não-contradição. Isto é arqui-sabido, mas os textos desta série não se propõem expô-las nem apontar o seu erro flagrante neste tópico. É claro que há correntes da física que parecem ignorar totalmente o conceito metafísico de movimento, em toda a sua rica amplitude. É claro que há correntes da biologia que parecem ignorar absolutamente o vínculo necessário desta ciência particular com aquela que, por sua natureza, é primeira e universal.


Nestes casos, o que acontece é curioso: as ciências naturais, cujos objetos formais se referem a um universo mais ou menos demarcado, pretendem ultrapassar os limites que as especificam e fazer dos seus conceitos verdades omniabarcantes, como destaca o filósofo Carlos A. Casanova no estupendo livro Reflexiones metafísicas sobre la ciencia natural. E acabam, na prática, por transformar-se em má-metafísica. Um exemplo? Alguns físicos quando se põem a falar sobre a origem do universo e descambam a produzir teses que, em verdade, são um arremedo de metafísica — algo canhestro por partir da formulação de hipóteses que transcendem ao escopo de todas as correntes da física, sem que eles percebam.


Não vêem, por exemplo, que a física pode especular, sem dúvida, sobre a origem do universo material[4] (pois aborda o ente na perspectiva do movimento, que, nos entes compostos de matéria e forma, radica na potência da matéria), mas não sobre a origem do ser. E mais: sequer os problemas filosóficos a respeito da proveniência da materia prima — de que ainda falaremos na presente série —, ou da energia concentrada que, há 13,9 bilhões de anos, teria gerado o Big Bang (concedamos, por procedimento dialético, que ele tenha havido) são resolvíveis por uma filosofia da natureza, como a physis.


A metafísica, portanto, pode e deve imiscuir-se nos problemas de todas as demais ciências, quando estas contrariam os princípios indemonstráveis dela, que lhes servem de esteio. E tal “intromissão” lhe cabe de direito, em virtude da absoluta universalidade do seu objeto formal terminativo e, também, do seu grau de abstração superior ao de todas as demais ciências: o ente enquanto ente — ou o ente na medida em que é o que “tem ser” (habet esse), ou seja, tudo o que há.


Com isto fica estabelecido que a refutação da teoria da evolução que se logrará ao fim desta série é metafísica, e, portanto, científica em elevado grau. Não trataremos de nenhum aspecto propriamente biológico, mas apenas da impossibilidade formal de as espécies — enquanto formas entitativas nas quais radicam determinadas potências — “evoluírem” em outras.


Assim, não será trazido à baila nenhum argumento de biólogos, químicos, paleontologistas ou embriologistas como o ex-evolucionista Soren Lovtrup, cientista sueco, autor do demolidor livro Darwinism: the refutation of a myth. Apenas não posso deixar de assinalar que a sua conclusão está totalmente de acordo com a prova metafísica que apresentaremos no decorrer destes textos. É a seguinte: algum dia, o mito darwinista será classificado como a maior de todas as fraudes científicas da história.


Mas esqueçamos por ora Lovtrup, cujos argumentos, como se frisou, sequer serão citados (assim como não abordaremos em detalhe fraudes como a do Homem de Piltdown, entre outras), pois a presente prova se dará em outra clave.


(continua)


____________________


1- A propósito, o fim do movimento, em sentido metafísico, culmina sempre na aquisição de uma nova forma.


2- A título de exemplo, um cardiologista, devido a seu conhecimento da natureza do coração humano, pelos exames identifica quando ele apresenta problemas, ou seja, quando as funções naturais do coração não se cumprem perfeitamente. Neste caso, a forma inteligível superior e mais universal abarca, inclui e/ou abrange a inferior, no seguinte sentido: o conhecimento da doença proveio do conhecimento da coisa (o coração) em sua compleição natural. Noutras palavras, o conhecimento da substância, em sua integridade, é ontologicamente anterior ao conhecimento dos acidentes, embora muitas vezes seja cronologicamente posterior. Os acidentes só se conhecem como acidentes à luz do conhecimento da substância — e é no seguinte sentido em que, na gnosiologia tomista, se diz que uma forma inteligível é mais abarcadora que outra: quanto mais universal for uma forma inteligível, melhor será o conhecimento, porque mais species conterá em si. Por isso, Deus, inteligência suma que se identifica absolutamente com o Seu próprio e infinito Ser, possui uma só forma inteligível (Ato Puro) que contém em si, perfeitamente, todas as demais.
3- Não nos custa lembrar que “coisa” (res) é um dos transcendentais do ser. Quando, portanto, se diz que a verdade tem fundamento na coisa (in re) não se está afirmando senão que ela tem fundamento no ser, do qual a coisa é um dos transcendentais. Disto se depreende que, nesta relação entre conhecer e ser, o ser tem precedência ontológica — com a óbvia exceção da inteligência divina, e, também, das inteligências angélicas, que têm as species inteligíveis das coisas antes mesmo de as próprias coisas serem, pois foram tais formas infundidas por Deus em suas inteligências. Mas deixemos este assunto de gnosiologia angélica para outra ocasião.


4- Advirta-se: especular sobre a origem do universo material no tocante à matéria segunda, que é potência para o ser acidental, mas não no tocante à proveniência da matéria prima.