quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (IV): a deificação da matéria

(continuação deste texto)

Sidney Silveira


Ficou assentado que uma ciência que lida apenas com causas acidentais não está aparelhada para conhecer sequer a origem da série causal em seu próprio âmbito de investigação, que dirá para dar a uma hipótese o estatuto de verdade universalmente válida. Este é o caso da biologia quando pretende aplicar a hipótese da evolução à origem das espécies (e portanto da vida):[1] ela o faz sem ter instrumentos filosóficos para tanto. Em poucas palavras, uma ciência é dita natural justamente porque o seu objeto está no limite da natureza, e investigar o princípio — seja de que forma for — é fazer ciência acerca das causas da natureza. É, portanto, fazer metafísica e não ciência natural.


No plano lógico, essa impossibilidade se dá porque, nas séries de causas ordenadas acidentalmente, jamais a razão pode chegar a um primeiro em sentido absoluto, pois sempre se poderá acrescentar logicamente mais uma causa à série.[2] Duns Scot, filósofo que somos insuspeitos para elogiar, ensina bem isto no Tractatus de Primo Principio. Ocorre que, se a biologia saísse da série acidental de causas naturais na qual está imersa, ainda que a pretexto de investigar uma suposta origem da vida, já não seria ciência natural, como acima se destacou.


E mais:


Ø a hipótese da evolução, mesmo se forçosamente a desvinculássemos da questão referente à origem das espécies, em virtude do seu caráter de explicação totalizante, abarcadora de toda a série causal (dos primeiros organismos unicelulares até as espécies contemporâneas, que deles “evoluíram”), padece de semelhante carência: nas causas ordenadas acidentalmente, é impossível definir um primeiro simpliciter. Mas sem o primeiro não há o segundo e, portanto, não existe a série. Querer, pois, estatuir uma verdade que englobe uma série de causas sem conhecer sequer o princípio dela é, para dizer o mínimo, ter da ciência um conceito muito baixo.[3]


No plano ontológico, por ora basta-nos o fato já apontado de que a forma dos entes é princípio de especificação e de operação. E que, para não sucumbir diante da primeira objeção filosófica, a hipótese da evolução precisaria provar antes de tudo a possibilidade de uma forma entis ir além das potências que a circunscrevem. E não venham os biólogos argüir que se está misturando biologia com metafísica, ciência com filosofia, pois na verdade é justamente o oposto que ocorre: a cobrança de uma prova metafísica para a hipótese da evolução impõe-se porque, em si, tal hipótese é má-metafísica com roupagem de ciência natural, na medida em que aventa uma premissa que não lhe cabe enquanto ciência natural.




Evolução e deificação da matéria


O problema dos evolucionismos em geral não diz respeito apenas aos métodos de que se valem os seus propugnadores — inapropriados para a hipótese que pretendem provar cientificamente. Levadas as suas premissas às últimas conseqüências, observa-se que a teoria da evolução é uma mal-disfarçada espécie de deificação da matéria, pois, ainda que os naturalistas não saibam sequer o que seja propriamente a matéria, o fato é que, com a hipótese da evolução, creditam a ela um tipo absurdo de “omnipotência”, como veremos. O irônico de tudo isso é verificar que se trata de materialistas que desconhecem a natureza da matéria, o que no entanto se explica: quem conhece o que é a matéria deixa no ato de ser materialista, pois a matéria, mesmo quando organizada por uma forma, não dá conta de explicar a ordem do ser.


Pois bem. Comecemos por um axioma escolástico muito simples e de valor universal: operari sequitur esse (o operar segue o ser) Ora, dizer isto significa o seguinte: nada opera senão enquanto é, pois o não-ser não pode operar. Portanto, o ser é a raiz primária de todas as operações, e, por conseguinte, de todas as potências. Nas palavras de Santo Tomás, ele é o ato de todos os atos e a perfeição de todas as perfeições. O seu primado é, portanto, absoluto, na medida em que o ser é o ato primeiro por si subsistente (primus autem actus subsistens per se, na expressão precisa e concisa do Aquinate).[4]


Mas o ser tem outra característica marcante: por estar pressuposto em absolutamente em todas as coisas, ele é a atualidade de todas as formas existentes (actualitas cuiuslibet formae existentis).[5] Noutras palavras, toda forma — que, como vimos, é o princípio de especificação, ou seja, é o que distingue os entes em espécies — está para o ser assim como a potência está para o ato. E a matéria, por sua vez, está em potência para a forma, e ao unir-se a ela demarca um princípio e também um limite operativo para o ente. Assim, que um jacaré consiga ficar até duas horas embaixo d’água decorre do fato de que a matéria está nele organizada pela forma exatamente para operar assim. A sua qüididade contempla, em elevado grau, um tipo de respiração anaeróbica, ao passo que a forma entitativa humana (ou seja, a espécie homem) não possui tais potências.[6]


Fixemos bem isto: o ser é o que de mais perfeito há em todas as coisas (ipsum esse est perfectissimum omnium) e é também a atualidade de todas as formas (actualitas omnium rerum, et etiam ipsarum formarum).[7] Em resumo, não há formas sem ser, e mais: a forma (enquanto essência) é o limite do ato de ser de um ente. Neste contexto, o grau de nobreza ontológica de um ente corresponde ao grau de ser que é atualizado nesta ou naquela forma, a qual dá ao ente tais ou quais possibilidades de operar; dá a ele, portanto, species. Assim, que o macaco de Darwin não possa resolver um problema de física quântica ou compreender as teses evolucionistas radica no fato de que a sua forma entis não possui potências intelectivas capazes de assimilar imaterialmente as formas das coisas. Ademais, pressupor que tal símio possa um dia — por meio de um complexo processo evolutivo “natural” — transcender às notas individuantes da matéria, sem ter contudo potências que o habilitem a tanto, é estabelecer um abismal salto na natureza.[8]


Vale neste ponto relembrar que, na integração da forma com a matéria, compete à forma fixar a substância de ente num gênero ou numa espécie. Ora, vimos que a matéria não pode ser princípio de especificação porque, se o fosse, todos os entes compostos de matéria e forma (justamente por possuírem matéria em seu composto) seriam de uma mesma espécie, o que é absurdo. E como ato primeiro de organização da matéria, que tem a operação como ato segundo, dele decorrente, a forma define o ser substancial.[9] No caso do homem, por exemplo, a alma intelectiva é a sua forma substancial.


Expostas todas estas coisas, observe-se que a matéria é de uma indigência ontológica sem par, visto que o seu grau de participação no ser é ínfimo. Sozinha, ela nada pode fazer, pois é inerte por natureza. E mais: tudo o que tem ser possui certas tendências, aptidões ou inclinações naturais, e neste contexto a materia prima, não podendo ser caracterizada como não-ser em sentido absoluto — pois então seria impotente para assumir quaisquer formas —, é tendência radical às formas. Ou seja: a materia prima é potência para o ser substancial,[10] ou, noutra formulação, ela é princípio absolutamente potencial. Ou seja, ela é informe enquanto princípio potencial, mas isto não implica que na realidade ela não possua formas, como se explicará adiante.


Para evitar mal-entendidos posteriores, vale dizer que nos referimos, com a presente definição, à materia prima enquanto potência, mas ainda não abordamos amiúde dois problemas:


a) se a sua informação (ou seja, o receber as formas) foi simultânea ou sucessiva ao seu surgimento;


b) e se ela foi informada apenas por alguns elementos ou já recebeu formas entitativas prontas.


Baste-nos frisar que, como primo principium passivum, ela é potência para o ser; ou seja, é ser potencial.[11]


A propósito, observou-se anteriormente que a física não pode dar qualquer resolução teorética satisfatória acerca da natureza da materia prima, pois até mesmo para chegar-se à conclusão de que ela existe é exigida uma abstração de terceiro grau — eminentemente metafísica. Muito menos a biologia ou outras ciências naturais podem fazê-lo. Portanto, ao se indicar que os evolucionismos deificam a matéria, por lhe atribuírem superpotências operativas, está-se fazendo referência imediata à materia secunda, que é potência para o ser acidental, e não à materia prima enquanto potência para o ser, que eles sequer alcançam conceber.


Abra-se aqui um breve parêntese para registrar que há, no tomismo contemporâneo, quem sustente a idéia de que a materia prima se identifica de alguma maneira com as formas “elementais”[12] a partir das quais se teriam desenvolvido sucessivamente formas posteriores — tese de que discordamos peremptória e decisivamente. Entre outras cosas porque o Aquinate é claríssimo ao afirmar, em diferentes passagens de sua obra, que o estado informe da matéria (materia prima) não precedeu no tempo à sua informação (materia secunda).


Entre outros argumentos, pelos seguintes:[13]


Ø Se a matéria informe precedeu em duração à matéria informada, isto implicaria dizer que ela existia em ato antes de ser informada. Ora, tal premissa pressupõe a existência de um ser atual sem ato, o que implica contradição (quod implicat contradictionem).


Ø Toda imperfeição de um efeito provém de imperfeições no agente que o causou. Ora, Deus (cuja existência está provada) é o agente omniperfeito. Logo, nenhuma coisa feita por Ele poderia ser, em sentido absoluto, informe na realidade (o que indicaria certa imperfeição).


Ø Se o estado informe (materia prima) porventura precedeu no tempo à formação da matéria (materia secunda), seguir-se-ia que, desde o princípio, reinou a confusão entre as coisas materiais, à qual os gregos chamavam caos.


Ora, como o tempo surge com a materia prima,[14] daí se segue que, se houver alguma precedência da materia prima com relação à materia secunda, será quanto à natureza, mas não cronológica.[15] Para a compreensão disto, deve-se saber que Deus está fora do tempo; portanto, opera Ele desde a eternidade ordenando umas coisas a outras de acordo com a Sua Providência sapientíssima, razão pela qual os Seus decretos implicam, sim, precedência ontológica de umas coisas em relação a outras, mas não necessariamente cronológica.[16] Ocorre que de nenhuma dessas premissas se segue que a materia prima tenha possuído desde o início apenas formas “elementais” com potência para evoluir em outras — por meio de uma mescla acidental de elementos, embora se possa conceder que tal hipotética mescla possa realizar-se eficientemente por Deus, de potentia absoluta. Falaremos noutra ocasião acerca do tipo de atualidade que a materia prima possui, mas as características até aqui apontadas já nos servem como fio condutor da presente prova metafísica. Fechemos agora este parêntese relativo a um problema da escola tomista e voltemos ao tema que nos ocupa.


A materia secunda, justamente por já estar informada, participa do limite de ser e de operação que há no ente. Mas ela, assim como a materia prima, também não possui potências ativas — mas tão-somente potências passivas, que são (reiteremos!) limitadoras das potências ativas radicadas na forma. Assim, desde os entes unicelulares do pool genético ancestral, pressuposto na hipótese da evolução, até o homem, existe sempre uma forma organizadora da matéria, mas também limitada por ela. Somente um ente sem composição de matéria em sua forma poderia não ser limitado pela matéria em seu ser e em seu operar.[17] Em resumo: todo ente composto de matéria e forma possui um conjunto específico de potências ativas e passivas (maior ou menor, não importa).


Mas as potências da matéria, exatamente por serem passivas, sofrem em geral a ação de outrem ao modo de corrupção. No melhor dos casos, sofrem-na ao modo de adaptação ao meio — com mudanças acidentais e/ou substanciais que já estavam incluídas na potência daquela matéria informada. Assim, quando por exemplo se produz vinagre de vinho, a forma avinagrada proveniente do vinho é uma transformação devida a uma alteração química num ente natural orgânico, mas não uma “evolução”, em sentido metafísico.


A corrupção da forma pela matéria, portanto, não é outra coisa senão a perda de elementos.[18] Mas a contrária não é verdadeira: a aquisição de novos elementos (ou a sua mescla pura e simples) não basta para gerar uma nova espécie com potências operativas superiores na ordem do ser, entre outros fatores em virtude de seu caráter acidental — e o acidente sequer entra na divisão por gênero.[19] Ora, nos entes compostos de matéria e forma, o que não é genérico não pode, por sua vez, ser predicado como específico — pois a espécie é uma subdivisão do gênero. Por isto, uma espécie composta de matéria e forma que não pertença a um gênero é tão possível quanto um círculo quadrado, porque nesta categoria de entes o gênero radica na matéria, e a espécie, na forma.


Por estes apontamentos se pode ver que só é possível a hipótese evolutiva se se tem de antemão uma concepção da matéria informada como realidade potencialmente ativa — e não como o que ela de fato é: potência passiva limitadora das operações da forma. Mas conceber isso é absurdo porque até mesmo os elementos constitutivos dos corpos cumprem um papel predispositivo da matéria em relação à forma, contribuindo para a integridade da natureza substancial mista. Nas palavras de Santo Tomás, toda forma substancial requer uma disposição adequada da matéria, sem a qual não pode existir, daí ser a alteração um caminho entre a geração e a corrupção.[20] Mas quem disse que a geração, neste caso, é de uma espécie com potências ativas superiores?


Fica, pois, estabelecido que a hipótese da evolução traz consigo a premissa oculta de que a materia secunda tem potências ativas “infinitas”. Potências para mudar populações de organismos ao longo dos tempos — de maneira não-aleatória (seleção natural) ou de maneira aleatória (deriva genética). Seja como for, uma coisa é modificarem-se as características de uma espécie no decorrer dos séculos, ou mesmo chegar a espécie a corromper-se, extinguir-se totalmente; outra, muito distinta, é pressupor que uma espécie supere, de uma maneira ou de outra, as inalienáveis contingências metafísicas em que está arrojada.


Ademais, a primeira potência ativa na ordem do ser (radical e infinita) é d’Aquele cuja essência é ser em sentido absoluto. D’Aquele a quem, normalmente, damos o nome de Deus (quam omnes Deum nominant).[21]
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1- É impossível falar de “evolução” das espécies de forma totalmente dissociada do problema da origem da vida, não obstante sejam questões distintas. Na presente série, o vocábulo “evolução” serve tanto para fazer referência à origem da vida segundo os naturalistas, como para fazer referência à hipótese da evolução propriamente dita.

2- Mas não ad infinitum, visto que o infinito numérico é impossível. A menos que usemos o termo “infinito” por meio de uma analogia.


3- É claro que há incontáveis explicações naturalistas para a origem da vida na Terra. Mas uma explicação que se pretende universal e não alcança valor de prova apodíctica não é outra coisa senão uma petição de princípios. Ora, um metafísico jamais poderá aceitar que uma ciência se erga inteiramente sobre hipóteses. Neste contexto, quando se começa a procurar entre biólogos, geneticistas, paleontólogos, bioquímicos ou embriologistas quais são as suas explicações sobre a origem da vida, a discrepância entre eles já é um indicador de que não se trata de princípios nem de evidências, mas sim de hipóteses mais ou menos plausíveis de acordo com sua maior ou menor conveniência com a tese defendida. Portanto, petitio principii.


4- Tomás de Aquino, Quodl. XII, q.5, art.1.


5- Tomás de Aquino, Quodl. XII, q.5, art.1.


6- Reiteramos o que foi dito anteriormente: species, aqui, é um termo usado em clave metafísica.


7- Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.4, art.1., ad.3


8- Além, é claro, de agredir um princípio metafísico universalíssimo: o operar radica no ser, e este se atualiza em formas com potências mais ou menos limitadas, visto que, nos entes, a essência não se identifica com o ser em grau máximo. Só em Deus a essência pode ser dita ser em sentido absoluto.


9- Referimo-nos aqui, evidentemente, às formas substanciais e não às formas acidentais.


10- Tomás de Aquino, De princ.nat., c 1, n.338.


11- Definir a materia prima como princípio absolutamente potencial não implica dizer que ela seja o não-ser, mas sim tomá-la como o ser em potência ou potência para o ser — o que a distingue do nada.


12- Quase ao modo como alguns entenderam as razões seminais de Santo Agostinho.


13- Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 66, art. 1, sed contra e corpus. Neste ponto convém registrar que o tempo que se iniciou com a matéria informe.


14- Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 66, art. 4.


15- Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 66, art. 4.


16- A título de exemplo, é desse tipo a precedência das verdades capitais da teologia mariana. Maria é mãe de Deus e em ordem a isto é que recebeu a plenitude da graça. Há, portanto, precedência ontológica da maternidade divina de Maria em relação a ela ser plena de graça, mas não cronológica, porque em Deus não há cronos.


17- Ou seja: os Anjos.


18- Cf. Tomás de Aquino, In Met. V lec.4 n.800.


19- Tomás de Aquino, Suma Teológica, III, q. 80,, a.3, ad.3


20-“Omnis forma substantialis propria requirit dispositionem in materia”. Tomás de Aquino, De mix. ele, I, 6.


21- Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 2, art. 3, resp.