terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (VI): a natureza dos predicáveis




(continuação deste texto)


Sidney Silveira


Embora útil e adequada aos fins a que visa, a taxonomia da ciência biológica tende à entropia, pois multiplica ad infinitum as espécies a partir de pequenas diferenças materiais, sem a consideração prévia de que a matéria só pode ser raiz comum do gênero corpo — animado ou inanimado, conforme a clássica divisão da Árvore de Porfírio —, mas não um princípio definidor das espécies.[1] Veremos, a seu tempo, como esse modo de classificação (útil e adequado, repitamos, para a biologia) está indevidamente implicado na hipótese da evolução, e induz a um erro basilar quando se tenta aplicá-lo ao conjunto das espécies assim entendidas.


Contudo, como se vem apontando ao longo do presente estudo que a forma de um ente é o seu princípio de operação e de especificação, ou seja, é o que o faz ser diferente em espécie de todos os demais, vale fazer alguns aprofundamentos relativos a este tópico. Comecemos, pois, esclarecendo como algo pode, fundamentalmente, ser predicado de outro.


Trata-se, a propósito, de princípios pré-categoriais implicados em qualquer classificação possível por parte da inteligência humana.




O lugar do gênero e da espécie entre os predicáveis


1. O gênero


Partamos da consideração de que o intelecto humano é, radicalmente, essa potência para abstrair as condições individuantes da matéria e alcançar a região das formas inteligíveis, ou seja, alcançar o universal pelo particular. E também de que, nesta abstração da matéria, ele está apto a separar racionalmente coisas que estão em si unidas na realidade, atribuindo a muitos o que percebe em um (intenção de universalidade). Neste contexto, diz-se que a inteligência não está presa à matéria porque o seu objeto formal está além da matéria: a species intelligibilis, o ente imaterial ao qual o homem chega por um processo que se inicia nas potências sensitivas, passa pelo intelecto possível[2] e culmina numa “iluminação” do intelecto agente, como veremos.[3]


Dada esta atividade abstrativa da inteligência humana,[4] abra-se um parêntese para registrar que os conceitos por ela formulados são referentes antes de tudo à substância (ente), à qualidade (forma) e à quantidade (matéria) — neste último caso, evidentemente, em se tratando de entes compostos de matéria e forma. Todos os demais conceitos ou predicamentos, de alguma maneira, supõem estes. Mas como, afinal, se pode dizer que algo pertence a um gênero de ente?


Para responder a esta pergunta, deve-se levar em conta que os entes naturais são por nós conhecidos com a matéria, e não sem ela. Seja com esta ou com aquela matéria, não importa; o fato é que eles nos chegam devidamente limitados pelas condições da matéria assinalada por certa quantidade. Esta, por sua vez, é captável pelas potências sensitivas externas (tato, olfato, audição visão e paladar) e laborada pelas potências sensitivas internas (senso comum, memória, imaginação e cogitativa). Assim, por exemplo, as cores de determinada superfície, em virtude da luz que as torna visíveis, agem sobre a potência da visão e produzem uma forma (species) na base do intelecto possível — à qual chamamos "forma inteligível". Essa forma imaterial passa a estar presente virtualmente na potência intelectiva, até que o intelecto agente atualiza-a, fazendo-a passar de potencialmente inteligível a inteligida em ato. Neste sentido é que a gnosiologia tomista afirma que o intelecto agente ilumina a forma inteligível.[5]


Neste processo se chega ao universal: deste azul individuado naquela matéria y à forma inteligível azul — universal e distinta em espécie de todas as demais cores. Como se vê, trata-se de uma propriedade universal atribuída a este indivíduo, o que nos dá a clara indicação de que os universais não estão nas coisas reais, mas tão-somente na inteligência. Ninguém, portanto, jamais deparou com o azul, mas com este azul hic et nunc, abstraído da matéria pela potência intelectiva. Ninguém viu a humanidade, mas este ou aquele homem.


Isto considerado, observe-se que a inteligência — abstraindo a matéria signata — descobre graus de universalidade. E um deles é justamente o gênero, percebido como o que é comum em muitas substâncias no que tange à sua quididade.[6] Ora, como ente de razão, o gênero também não possui ser na realidade (genus non est unum in re, nas palavras de Santo Tomás), mas apenas na inteligência, que o identifica e o classifica.


A título de exemplo, neste contexto vale perguntar em que difeririam e em que se assemelhariam Platão, um asno e uma planta? Radicalmente, assemelha-os o fato de que todos estão no gênero da substância, mas este é o gênero generalíssimo e não conta para a nossa classificação, relativa a entes já compostos de matéria e forma.


Portanto, o que neles é comum (e o que os diferencia) é:


1- Possuir corpo;


2- Possuir corpo animado;


3- Possuir corpo animado sensitivo;


4- Possuir corpo animado sensitivo e intelectivo (racional).


Observa-se que, do corpo (primeiro gênero que é subalterno ao gênero generalíssimo, a substância), passando pelo segundo gênero subalterno (animal) até chegar a espécie ínfima especialíssima decorrente da racionalidade (ou seja, o homem) existe uma escala de diferenciações. Mas, a partir da espécie, as diferenciações só poderão ser numéricas, ou seja, materiais, e não específicas, ou seja, formais. Daí que Sócrates e Platão não difiram em espécie, mas em número.


Portanto, as formas específicas encontram-se indeterminadas no gênero, e todos os predicáveis neste âmbito se referem a ele fundamentalmente. É neste exato sentido a matéria se diz princípio de determinação do gênero, e não da espécie.


A seguir, após a definição de espécie, verifiquemos a atualidade da Árvore de Porfírio e sua pertinência ao problema que ora nos ocupa.


(continua)


__________

1-
Ou seja: a matéria não pode ser fundamento da especificação porque, nos entes compostos de matéria e forma, ela tem a função de condição predisponente para a forma realizar os seus atos próprios. Ademais, como se disse anterioremente, se a matéria fosse princípio de especificação, todos os entes com composição de matéria seriam de uma mesma espécie, o que é absurdo.
2- Ou seja: dessa potência radical para todos os inteligíveis.

3- Não há, portanto, o que alguns pensadores zubirianos chamam de cognição instantânea, pois, após inteligida uma essência pela primeira vez, não é necessário abstraí-la sempre e sempre, mas basta um reconhecimento (pela memória), desta ou daquela species inteligível particular, para que se perceba que o ente individual X pertence à essência Y. Assim, pois, quando o intelecto humano apreende um asno reconhecendo-o de imediato como asno, não se trata de cognição instantânea, pois mesmo neste caso o encontro do intelecto com a essência da coisa se dá por intermédio da species inteligível — a qual lhe aponta uma essência que já havia sido abstraída anteriormente das condições individuantes da matéria.


4- Advirta-se que a abstração à qual se faz aqui referência é desta ou daquela matéria, ou seja, da matéria delimitada por certa quantidade — captável, por sua vez, pelos sentidos. É neste sentido que as coisas naturais são conhecidas pelo homem a partir desta ou daquela matéria informada.


5- Luz do intelecto agente – lumen intellectus agentis – foi o conceito empregado por Tomás de Aquino ao fazer reparos à gnosiologia agostiniana da iluminação. Segundo o Bispo de Hipona, a percepção da verdade provém de uma direta iluminação divina na mente humana: é a luz divina o que propicia ao homem compreender as coisas por meio de símbolos e palavras. Em resumo, para Agostinho, a luz divina põe ao alcance do homem as verdades – que estão em seu interior como reflexo da própria verdade divina, eterna, necessária, imutável. Neste contexto, o mestre não faria mais do que transmitir ao discípulo os signos das coisas, e estes, para ser compreendidos, necessitariam haurir sua inteligibilidade da iluminação divina. A isto o Aquinate contrapõe o seguinte: se por “iluminação divina” se entende a potência da faculdade intelectiva ou a virtude encerrada nos primeiros princípios do entendimento, que não se adquirem por serem hábitos naturais inatos, então se pode dizer que Deus ilumina a mente humana. Mas a atividade cognoscitiva não consiste em o homem ser “iluminado” por Deus cada vez que entende algo. Para a aquisição da ciência requer-se o processo de compor e dividir raciocínios, tendo sempre como fundamento os primeiros princípios indemonstráveis. Neste contexto, o que faz o conhecimento passar da potência ao ato não é outra coisa senão o intelecto agente, princípio operativo inerente à alma humana. Esta é, pois, a função própria do intelecto agente – iluminar, fazer passar da potência ao ato um novo conteúdo inteligível. Cf. Santo Tomás de Aquino, De Ver q11 a1-2.
6- “No que tange à sua quididade” foi a expressão em português a mim sugerida pelo tradutor Luiz Astorga para a quase intraduzível expressão latina in eo quod quid. Ou seja: na definição do Aquinate, gênero é o que se predica de muitas coisas distintas em espécie in eo quod quid, quer dizer, “no que tange à sua quididade”.