Sidney Silveira
Uma premissa reiterada em diferentes obras por Tomás de Aquino é a seguinte: depois da bondade divina — que é um fim transcendente e independente das coisas —, o principal bem que pode haver é a perfeição do universo, que não haveria se, nele, não houvesse graus de ser. Ora, cabe à inteligência divina produzir o ser em todos os graus, por criação; por conseguinte, como a inteligência divina é perfeitíssima em máximo grau, o universo há de ser perfeito, pois a perfeição dos efeitos é proporcional à perfeição da causa de que provêm*.
Antes de prosseguir, convém fazer uma distinção: perfeito é aquilo que, para ser o que é, não lhe falta nada. Assim, um homem perfeito possui não apenas as notas distintivas de sua essência (as faculdades da inteligência e da vontade), mas também todo um conjunto de características genéricas e específicas que distinguem as potências que pode atualizar, sem as quais não seria perfeito. Ora, uma das potências da alma humana é a motriz; sendo assim, se num homem x essa potência anímica é reduzida drasticamente, ele não será perfeito. Por exemplo, um homem a quem faltem as duas pernas é imperfeito no tocante a este aspecto, o que quer dizer o seguinte: embora ele continue perfeitamente homem (pois mantém as notas essenciais distintivas de sua forma entitativa), é um homem imperfeito. E o mesmo se pode dizer de um cego, etc. Repitamos: perfeito é o que, para ser o que é, não lhe falta nada.
Retomemos a premissa inicial. A perfeição do universo é, depois da perfeição divina, o maior bem que há, e este bem se observa na gradação de ser que constitui a incomensurável riqueza do universo. Ora, um dos graus de ser é justamente o da potência intelectiva, ou seja, esta possibilidade (e tendência) que alguns entes possuem de assimilar imaterialmente a forma das coisas, sendo isto, propriamente, o conhecimento. No homem, esta potência se dá de forma imperfeita e finita, pois ele precisa instrumentalmente dos sentidos corpóreos para atualizá-la, dado que o primeiro grau de intelecção em nós se refere à essência das coisas materiais (quidditas rei materialis). Logo, se entre o homem e Deus não existissem entes espirituais totalmente incorpóreos, haveria, nesta gradação de ser que observamos no universo, um grande hiato. Sendo assim, é preciso admitir a existência destas criaturas imateriais independentes da instância corpórea — que para a teologia são os Anjos, e para a metafísica são as substâncias separadas da matéria.
Outro argumento: no tocante ao ser das coisas existentes no universo, o perfeito tem precedência ontológica com relação ao menos perfeito (por ex.: o mais quente em relação ao menos quente). Ora, existindo um tipo de inteligência de per si dependente do corpo para conhecer (como a alma humana), é conseqüente e lógico concluir que haja, na ordem do ser, um tipo de inteligência mais perfeito, não dependente do corpo para entender. E esta é a inteligência angélica.
A força desta prova por razoabilidade — ou por argumentos de conveniência, como a chamam alguns — aumenta quando aquele que depara com ela já está na posse da prova apodítica da existência de Deus, e possui o conhecimento dos Seus atributos. Neste caso, a conclusão se torna absolutamente evidente, porque a sua contrária — a proposição da não-existência das criaturas imateriais — seria absurda. Mal comparando, seria como imaginar a existência de um computador que funcionasse sem HD, sem placas, sem memória, sem processador e sem quaisquer componentes eletrônicos. Não à-toa, no final dos textos em que faz referência à prova, o Santo Doutor usa fórmulas como: “É necessário à razão admitir a existência destas criaturas espirituais...”.
Façamos ainda o seguinte raciocínio disjuntivo, a partir do que foi dito anteriormente:
1- Ou os Anjos existem (e perfazem a harmonia que observamos na maravilhosa gradação de ser que há no universo, criado à Imago Dei), ou a sabedoria divina não é perfeita.
2- Ora, é perfeitíssima a sabedoria de Deus, ordenadora de todas as coisas criadas em vista da absoluta perfeição do universo, espelho da Sua própria perfeição.
3- Logo, os Anjos existem.
Reitero: a prova ganha força demonstrativa apenas depois de adquirir-se o conhecimento apodítico (ou seja, científico, no sentido formal) da prova da existência de Deus, e dos Seus atributos, aos quais se chega dedutivamente com máxima certeza.
* Que a gradação e variação que observamos no universo é um grande bem é algo que salta aos olhos, para qualquer pessoa não devotada à estupidez. Assim, a riqueza das incontáveis propriedades que há nos alimentos é, comprovadamente, um bem para a nossa saúde, dadas as nossas necessidades protéicas e vitamínicas para viver. Poderíamos enumerar os exemplos ad nauseam. Mas seria antieconômico...
Em tempo: Esta é uma breve introdução à aula deste sábado sobre os Anjos.