terça-feira, 15 de março de 2011

Potência e omnipotência (I)

Sidney Silveira

Ao nobre amigo Luiz Astorga.

Em sentido metafísico, potência é um possível no Ser. Ou, noutra formulação, o Ser é a raiz primária de todas as potências, o horizonte possibilitante dos entes e de seu devir — ou seja, de todo e qualquer trânsito da potência ao ato*. Ponho o Ser em maiúscula porque, aqui, a referência não é o ente (necessariamente composto de ato e potência, essência e ser, substância e acidentes, etc.), mas o Próprio Ser Subsistente que é Deus, o qual é simplícimo e não tem potência para não-ser, quer dizer, não possui nenhuma potência passiva, nenhuma potência para receber atualizações formais de outrem, dado que Ele não pode deixar de ser o que é**. O Próprio Ser tem, no entanto, potência ativa: são as idéias na mente divina — omnipotente na medida em que Deus pode tudo o que é possível no Ser. Em suma, a omnipotência significa exatamente isto: o absoluto poder da inteligência e da vontade divinas de realizar qualquer coisa na ordem do Ser, pois fora do Ser (ou seja: d’Ele próprio!) nada é possível e não há potências que se possam atualizar. Convém ressaltar que a potência ativa absoluta de Deus está na Sua inteligência e na Sua vontade, ambas imateriais, justamente porque Ele não tem composição de matéria.

Neste contexto, diga-se que a inteligência divina, que é potência ativa absoluta, quando pensa cria instantaneamente a coisa pensada. Fiat lux. Et facta est lux. Assim, se não houvesse a potência absoluta e criadora da mente divina, não haveria entes e, a fortiori, nenhuma outra potência (ativa ou passiva) além da omnipotência ativa do Próprio Ser. Por isto, se “eu sou”, e, sendo, posso atualizar estas ou aquelas potências radicadas na minha forma entitativa, isto se deve em primeira instância à omnipotência da mente de Deus, que participou o ser aos entes por criação — sendo esta, como diz Santo Tomás, uma “novidade no ser”. Em resumo, há uma radical dependência das potências ativas e passivas nos entes criados com relação à potência ativa absoluta, criadora e mantenedora, da inteligência divina; aquelas não existiriam sem esta, e mais ainda: metafisicamente, o Ser as mantém (o que se explicará noutro texto da série, ao se abordar isto que Tomás de Aquino chama de potentia obedentialis). Neste contexto, vale ainda frisar que a omnipotência só poderia caber a um Ser absoluto e infinito, e este é o Próprio Ser Subsistente chamado por alguns metafísicos de Ente Necessário, sem o qual nenhuma contingência seria possível. A prova da existência de Deus nos leva a este conhecimento.

A atualização da omnipotência divina se dá, entre infindáveis outras coisas, no milagre, evento extraordinário que extrapola as potências naturais dos entes. Ou seja, que a sarça de fogo tenha falado a Moiséis foi algo possível no Ser (cf. Gênesis, III, 4), mas este trânsito específico da potência ao ato não radicou nas potências ativas ou passivas da sarça de fogo, e sim na omnipotência ativa do Próprio Ser. Reiteremos, pois: potência é, primordialmente, um possível no Ser, e frisemos neste ponto que, ao definir a potência tomando como base a omnipotência do Próprio Ser, procuramos seguir de perto a Santo Tomás adotando uma premissa reiterada na Suma Teológica e noutras obras, segundo a qual as coisas são o que são em relação ao seu máximo: o bom e o mau o são em relação ao Bem; os entes e as privações o são em relação ao Ser; e a potência o é, proximamente, em relação ao ato de ser em que radica, mas primária e fundamentalmente em relação à omnipotência do Próprio Ser. E como, no plano metafísico, o mais perfeito tem precedência com relação ao menos perfeito, daí se segue que a potência se diga, primeiramente, da omnipotência do Próprio Ser a quem chamamos “Deus”. Em relação a esta, todas as demais potências serão relativas e estarão contingenciadas ou pela forma, ou pela matéria ou pelo ato de ser dos entes.

E mais: ser “ativa” ou “passiva” são distinções posteriores do conceito de potência. Ademais:

Ø É próprio de Deus (ser simplícimo, não composto) ter potência ativa absoluta. Esta omnipotência é a primeira de todas as potências na ordem do ser, e provém da forma perfeitíssima d’Aquele cuja essência é ser em sentido absoluto (esse simpliciter). Em Deus, a essência é Ser, e a este Ser infinito convém uma infinita potência.

Ø É próprio dos entes compostos matéria e forma (nos quais a essência não se identifica com o ser) ter potências radicadas e limitadas por suas respectivas essências, que são o receptáculo do ato de ser.

Ø É próprio dos entes compostos apenas de essência e ser (os Anjos, que não têm composição de matéria em sua forma) ter potências ativas em relação a todos os entes da ordem do Ser, excetuando Deus, em relação ao qual possuem potência passiva — como por exemplo para receber novas formas inteligíveis.

Estas distinções são absolutamente necessárias na medida em que muitos metafísicos, ao longo de séculos sem fim, identificaram em sentido absoluto os conceitos de potência e matéria. Para estes, matéria e potência seriam sinônimos perfeitos, na medida em que a matéria primeira seria a pura potência para receber todas as formas. Outros, de modo análogo, disseram que a potência está na matéria como em seu sujeito. Ambos os casos padecem de materialismo, pois estas posições levam a aporias insanáveis, como por exemplo o fato de que, se assim fosse, não existiriam potências atualizáveis imaterialmente — o que não é verdadeiro. Reitere-se, pois, que a potência está na matéria acidentalmente, mas não essencialmente. Se a potência radicasse na matéria, Deus não teria potência nenhuma, o que não é correto porque ele é potência ativa infinita, absoluta.

* Nunca é demais lembrar que o movimento, ou seja, o trânsito da potência ao ato, radica sempre em algum ato de ser, pois o que não está na plena posse formal do ser não possui potência alguma, pois o não-ser nada pode operar ou atualizar. Aristóteles já dizia, neste sentido, que o ato é radicalmente anterior à potência.

** A propósito, alguns dos principais biógrafos de Santo Tomás contam que, ainda menino em tenra idade, ele se saiu com a seguinte pergunta a um religioso: “O que é Deus?”. Pode-se dizer que o grande Santo e Doutor passou a vida inteira buscando respostas a esta pergunta.

*** Convém frisar que a omnipotência divina não implica que Deus possa fazer o formalmente impossível, como o Nougué explica muito bem no DVD “O Tempo e a Eternidade”, da série A Síntese Tomista. Deus não poderia absurdamente contrariar a ordem implicada no seu Próprio Ser:

a) Ele não poderia não-ser;

b) Ele não poderia pecar, praticando o mal;

c) Ele não poderia fazer com que o passado não tenha sido; etc.

Nenhuma destas impossibilidades diminui a sua omnipotência, pois na verdade todas elas são privações.

(continua)