[Resposta à mensagem que recebi por estes dias de um sujeito enfezadíssimo, interpelando-me a respeito de como eu, convertido há “apenas” oito anos, me julgo no “direito” de escrever sobre Tomás de Aquino e sobre o Magistério eclasiástico.]
“Na Igreja, os perversos perseguem aqueles que [por compartilhar a doutrina] trazem proveito espiritual a muitos”.
São Gregório Magno (Moralia I, 13)
Sidney Silveira
Na Igreja, antiguidade não é posto. E a razão disso é muito, muito simples: as obras da fé não se medem por nenhuma espécie de cronometragem, porque a fé, sendo virtude teologal infusa por Deus, traz para a alma um tipo de força que transcende por completo a contingências temporais. Ou seja, o sujeito convertido passa a agir sub virtute fidei divinæ — o que muda os vetores de sua vida e, por conseguinte, das suas atividades. Daí ser bastante comum na história da Igreja um recém-convertido começar, em pouco tempo, a atuar diligentemente em questões relativas à fé; e de estéril e inerte, sem a fé, tornar-se frutuoso e laborioso, com ela. Isto porque a força da fé divina é nada menos que a graça, princípio da glória.[1]
Ademais, há pessoas que perdem a fé. Que apostatam mesmo depois de um bom tempo de vida na Igreja. Há casos notórios de monges e padres que, após longos anos de profissão e/ou ordenação, perderam a fé e sucumbiram definitivamente ao espírito do mundo. Como se vê, para o bem e para o mal, antiguidade não é posto na Igreja: há gente que, pouco tempo após converter-se, trabalha pelas verdades da fé, divulgando-as na medida de suas capacidades, e há gente que, depois de muito tempo de vida eclesial, volta as costas à graça e, de figueira estéril, acaba por converter-se em apóstata ou excomungado (casos respectivos de um Lutero e de um Guilherme de Ockham, por exemplo).
Sendo assim, só mesmo uma malícia suma poderia levar alguém a criticar um católico recém-convertido por trabalhar — seja em que frente for — na Igreja, e pior: fazendo uso de nefastos argumentos ad personam (caso do rapazola que me enviou a tal mensagem), que são um verdadeiro manjar na boca do difamador. A propósito, murmurações semelhantes foram feitas a ninguém menos do que Santo Tomás de Aquino, que deixou um conselho bastante útil para quem, no futuro, deparasse com situações análogas. É o seguinte.
Indagando-se sobre se os religiosos devem tolerar pacientemente todas as injúrias que se lhes fazem, o Aquinate distingue entre: a) ataques estritamente pessoais; e b) ataques que, de alguma forma, resvalam em coisas relativas à doutrina da Igreja. Quanto aos primeiros, afirma o Doutor Comum que convém tomar a Cristo como exemplo e suportar absolutamente tudo, aproveitando para oferecer as dores como penitência pelos próprios pecados; quanto aos segundos, a atitude é inversa: não se deve tolerar nada e resistir firmemente. Neste último caso porque, medidas todas as coisas, o caluniado não é outro senão o próprio Deus.[2]
Pois bem: como tal opinião a respeito da atuação de um recém-convertido em coisas relativas à Igreja se enquadra, perfeitamente, no segundo tópico acima, vale respondê-la. E comecemos por dizer que, se ela fosse levada às últimas conseqüências, nem mesmo grandes santos, Padres da Igreja e filósofos cristãos escapariam. O que é patentemente absurdo.
Por exemplo:
* São Paulo teria agido de forma condenável ao começar o seu apostolado apenas dois anos depois de convertido a caminho de Damasco. Ora, em se tratando de ninguém menos do que o Apóstolo dos Gentios, vê-se o tamanho da absurdidade à qual agora damos resposta.
* O recém-convertido Agostinho teria escrito de forma ilícita ou indevida obras-primas como o extraordinário De Sermone Domine in Monte — livro terminado cerca de três anos após sua conversão.
* Clemente de Alexandria (que é Padre da Igreja, apesar de haver erros teológicos em sua obra desaprovados pelo Magistério)[3] teria cometido o grande “pecado” de escrever, logo depois de sua conversão, o Protreptico, conclamando todos os pagãos a abraçar a fé.
* Raimundo Lúlio, hoje instrumentalizado por grupos de católicos neoconservadores que o transformaram em tataravô do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, teria equivocadamente começado a escrever, poucos anos após receber a fé, sua imensa obra com a expressa motivação de converter os infiéis.[4]
Os exemplos são incontáveis, e por economia eximimo-nos de enumerá-los. Estes quatro bastam para mostrar o quão infundada é tal “idéia”: a darmos crédito a ela, grandes santos teriam agido mal trabalhando em coisas relativas à fé logo após sua conversão; um apaixonado apologeta [5] teria dado o péssimo exemplo ao divulgar, perante o mundo, a doutrina do Evangelho pouco tempo depois de abandonar o paganismo; e, por fim, um filósofo medieval declarado beato teria de forma reprovável colocado sua prolífica pena a serviço da conversão dos infiéis, alguns anos após ele próprio converter-se. A estes poderíamos somar outros exemplos significativos, como o de São Francisco de Assis, que pouco tempo depois de sua conversão estava diante do Papa Inocêncio III, admoestando a todos pelo fausto, pelo luxo tão contrário ao Evangelho que bispos e prelados exibiam.
Pois bem, antes de o meu crítico ou os seus pares insinuarem (com a mesma patente malícia do presente argumento) que estamos nós nos equiparando a santos e a filósofos de escol, vale recorrer a um princípio — que aqui expomos por meio de uma analogia:
Ø Em se tratando de doutrina da Igreja, assim como não pode servir como conselho nada que seja contrário a um preceito, visto que a ordem dos conselhos é super-rogatória e eminentemente louvável, assim também não se pode opinar licitamente contra a imitação de uma prática levada às últimas conseqüências por santos e homens notáveis da Igreja .
A razão é simples: em se tratando de difundir o Evangelho (no que nos diz respeito, a partir da simples apresentação da obra do Doutor Comum da Igreja sem as matizações da teologia pós-conciliar), essa imitação é aconselhável em elevado grau. E, a propósito, é essencialmente isto o que fazemos: neste quesito, imitar o que grandes santos, papas e teólogos fizeram no passado — dar publicidade a Santo Tomás de Aquino; e, no tempo desgraçado em que nos cabe viver, mostrá-lo como antídoto contra o modernismo condenado por São Pio X. Essa imitação é também segura, na medida em que não tentamos “inventar a roda”, ou seja, interpretar os Dogmas à nossa moda, como muitos fazem por aí, mas apenas seguir à risca (em matéria de fé) a obra do mais abalizado Doutor da Igreja, consagrado por sete séculos de Magistério. Afastar-se do Aquinate, isto sim, é que implica colocar-se sob o risco de cometer erros teológicos.
Outra coisa: críticos de tal estirpe não possuem a menor autoridade espiritual para proclamar que um trabalho como este é indevido. Na verdade, têm autoridade zero. E também não possuem autoridade hierárquica, a qual seria mais inteligente argüir contra nós, pelo fato de sermos leigos. Mas mesmo este argumento não se sustentaria, por dois motivos principais: a) não é preciso pedir permissão para repetir a doutrina tradicional à luz da obra do Doutor Comum, pois fazê-lo é seguir o conselho magisterial de séculos sem fim. Seria como pedir licença a um superior hierárquico para fazer um bem espiritual que está à mão; e b) dado o atual estado de necessidade na Igreja (patente na voz pluriforme dos neoteólogos e do neomagistério, que, em vários pontos, contrariam o ensino de sempre)[6], apresentar a obra teológica de Santo Tomás de Aquino não apenas se justifica, mas é um dever inarredável por parte daqueles que a estudam com afinco há anos.
Isto assinalado, apenas com o intuito de gravar bem o conceito repitamos com outras palavras o princípio:
Ø não pode um católico criticar licitamente o que — por ser um conselho magisterial multissecular — é super-rogatório.
E mais: em que escola dos infernos o meu crítico terá aprendido que um recém-convertido deve ficar sempre quieto e caladinho? Talvez imagine ele que a Igreja é uma espécie de seita maçônica que requeira do adepto um tirocínio iniciático de anos de testes e estudos esotéricos — para somente então ser considerado apto a compartilhar as verdades aprendidas. Não! As suas leis são de instituição divina e, no decorrer dos séculos, vêm sendo expressas com toda a clareza pelo Magistério e pelos Doutores (isto para não falar do Catecismo e do Credo). Razão pela qual simplesmente repeti-las na voz destes últimos é algo que não pode ser criticado sem uma grande dose de maldade espiritual. Sobretudo se a crítica tem como base o tempo de conversão, o que é ridículo.
Em geral, por trás duma crítica de tal teor oculta-se um profundo ódio às verdades da fé — e mais que isso: ódio às obras que ela produz. E não é raro o murmurante que perpetra calúnias desse teor ser alguém que posa de aguerrido defensor da Igreja. Mas indaguemos nós: é possível defender a Igreja apartando-se de sua doutrina? É possível fazê-lo olhando-a como algo a respeito do qual um católico pode divergir, sem perder a fé? Ora, casos como os de um Guilheme de Santo-Amor, de um Guilherme de Nogaret (de quem ainda falaremos num dos textos da série sobre Bonifácio VIII), de um Sciarra Colonna, etc., são recorrentes na história eclesiástica. São homens que juraram — e perjuraram — estar defendendo a Igreja, quando na verdade trabalhavam para corrompê-la! Quantos caluniadores, a pretexto de trabalhar pela Igreja, atacaram homens que realizavam suas obras difundindo a fé!
Infelizmente, para os ministri diaboli [7]— como chamou Santo Tomás a estes que odeiam ver a doutrina da Igreja divulgada, em prol do bem comum das almas —, tudo serve de palha para a sua fogueira: o bem e o mal.
Sobretudo o bem, que eles gostariam de converter em males.
Em tempo: Recebi nos últimos dias emails e telefonemas de gente pedindo-me opinião sobre o trabalho de Fulano e Sicrano. Por princípio, prefiro crer que não seja por má-fé ou com o intuito de fofoca, mas o fato é que não reponderei a indagações desse tipo, pois, se eu pretendesse transformar-me em conselheiro de homens feitos, abriria uma Tenda do "Pai" Sidão e faturaria grana alta. Ora, pessoas adultas são livres para fazer as suas escolhas, buscar os seus caminhos. E, se são católicas, que peçam conselho diretamente ao Cristo eucarístico, misteriosamente escondido sob as espécies sagradas, mas não a este mísero escriba. Infelizmente, percebo que, em alguns casos, o propósito é pôr lenha na fogueira... Mas do disse-me-disse e das futricas da tia Candinha, livre-nos Deus.
1- Gratia, inchoatio gloriæ, conforme o axioma escolástico.
2- Santo Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, c.13, n.3
3- A respeito da retirada de Clemente de Alexandria do Martirológio pelo Papa Bento XIV, em 1748, por meio da bula Postquam intelleximus, falamos em nossa apresentação ao Protreptico (tradução para o português da Profª. Rita Codá dos Santos), livro já entregue à editora É Realizações para edição.
4- A título de curiosidade, em sua Vita Coaetanea Lúlio diz que três são os seus propósitos ao escrever: a) converter os infiéis ao Cristianismo; b) redigir o melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis; c) suplicar aos poderes constituídos que criassem mosteiros onde se ensinassem as línguas necessárias ao seu projeto de conversão do mundo. Cf. Raimundo Lúlio, Vita Coaetenea, I, 5-8.
5- “Navega para além desse recanto, artesão da morte; basta que tu queiras e terás vencido a perdição. Preso ao madeiro, tu te livrarás de toda corrupção; o Logos de Deus será o teu piloto, e o Espírito Santo te fará ancorar nos portos celestes; então, tu contemplarás o meu Deus e serás iniciado nesses santos mistérios; tu, por fim, usufruirás, nos céus, dos bens secretos (...), os quais nenhum ouvido humano escutou falar, e que não vieram do coração de nenhum mortal”. Clemente de Alexandria, Protréptico, XII, 4.
6- Para não perdermos tempo com a exposição material de documentos sem fim, basta-nos fazer referência ao ecumenismo, condenado solenemente durante todo o período anterior ao Concílio Vaticano II e hoje ensinado como um dos princípios reitores da catolicidade.
7- Santo Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, Prologus.