sábado, 18 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (VII): ainda os predicáveis


(continuação deste texto)


Sidney Silveira



2. A espécie



Para compreender os predicamentos (categorias filosóficas básicas), é necessário antes conhecer os predicáveis (pré-categorias) — saber identificá-los e classificá-los devidamente, pois, como dizia Santo Tomás, fundamentalmente os predicamentos não são outra coisa senão certa relação lógica entre os predicáveis. Sem isso, não foram dados sequer os primeiros passos na filosofia.


Qualquer estudante do período escolástico, orientado desde a sua iniciação filosófica para formar-se nas sete artes liberais — herdeiras medievais das sete disciplinas encíclicas (έγκυκλία παιδεύματα) da Escola de Alexandria —, conhecia de cor esta lição. Daí ter o máximo cuidado de evitar alguns escolhos no âmbito dos predicamentos, que, se não fossem devidamente superados, o fariam passar vergonha perante os colegas. Neste contexto, infelizmente, quando as ciências naturais contemporâneas saem do seu escopo e se transformam num arremedo de metafísica, acabam transformando-se em ideologia científica, como diz Carlos Casanova no citado Reflexiones Metafísicas sobre la Ciencia Natural. Nestas ocasiões, mostram ignorar totalmente a ordem predicamental.


Pois muito bem. Ficou antes estabelecido como se pode dizer que o predicável gênero tem fundamento na matéria — ou seja, na medida em que o primeiro gênero subalterno é o corpo. Para se ter idéia de quão espinhoso é o problema, este princípio levou Santo Tomás de Aquino a dificuldades para colocar as criaturas espirituais num gênero, já que lhes falta esse fundamento genérico comum da matéria. Mas não mudemos de assunto e assinalemos agora algumas características do predicável seguinte: a espécie.


Diz o Aquinate, comentando a lógica aristotélica, que a espécie é o que se diz de muitas coisas diferentes numericamente no que tange à qüididade.[1]Trata-se na verdade de um termo polivalente, mas enquanto predicável é aquilo que diz respeito à essência de um ente e lhe indica a um só tempo o gênero próximo e a diferença específica. Por exemplo, quando se diz que João é animal racional, está sendo indicada nesta proposição a species constituitur ex genere et diferentia,[2]. Trata-se, reiteremos, do conjunto de notas (qualidades) que se podem predicar de muitos entes semelhantes no tocante à forma.[3] Quanto aos vários outros usos do terno “espécie” em Santo Tomás, deixemo-los para outra ocasião para não perder o fio da meada.


Para o que nos interessa, basta por ora saber que a espécie se predica do indivíduo, e o gênero se predica da espécie e do indivíduo. Mas atenção: tal predicação não diz respeito a acidentes materiais do indivíduo, nem a diferenças específicas dele em relação aos seus pares (como acontece em algumas classificações da taxonomia biológica, ao distinguir como espécies distintas entes com potências operativas idênticas), mas à essência — e, por conseguinte, às propriedades inalienáveis dela. A suas notas diferenciais com relação a todas as demais espécies.


E aqui chegamos ao predicável próprio.



3. O próprio


Em síntese, próprio é o que, embora não seja a essência de um ente, a ela está inextricavelmente associado. Pode-se por isso dizer que ele é uma emanação das potências que radicam em tal ou qual forma entis — de maneira que, ao ser identificado, se identifica no ato a essência da qual participa. Assim, por exemplo, a risibilidade é propriamente humana, porque nenhum dos outros entes animados possui a propriedade do riso, na medida em que o riso é o reflexo sensível, orgânico, de um tipo de fruição espiritual que radica na vontade e na inteligência. Portanto, sorrir, em sentido próprio, não é abanar o rabo como um cão, mas expressar fisicamente certo gozo no qual estão implicadas a inteligência e a vontade.


O cão não pode rir de uma piada, por exemplo, porque rir de uma piada pressupõe o entendimento de um desvio no curso natural do fato narrado, ou a compreensão do inusitado de uma situação, etc. Nestes casos, quando alguém ri é porque, em geral, entende que a situação foge ao habitual, e às vezes, mesmo sendo constrangedor ou impróprio rir, a pessoa não consegue conter-se porque a comicidade do fato se impõe à sua inteligência.[4] Com estes breves apontamentos agora se vislumbra uma definição precisa: próprio é um acidente inseparável da espécie. E o é porque se dá sempre e em todos na espécie. Noutras palavras, trata-se de um tipo de contingência que não pode ocorrer senão naquela espécie, pois é sua propriedade ímpar.


Esta definição aplica à espécie as categorias de tempo (sempre) e de quantidade (todos) porque há acidentes inseparáveis que não se dão em todos. Ou seja: há acidentes inseparáveis do indivíduo, e não da espécie, como por exemplo o ser macho ou fêmea. E há, por fim, os acidentes inseparáveis do gênero, como por exemplo a sensibilidade no animal, ou o peso nos corpos. Mas estes últimos não se podem dizer próprios senão por analogia, justamente porque se dão em várias espécies. E quanto aos primeiros, repitamos, não se podem dizer próprios porque se dão apenas neste ou naquele indivíduo.


Falaremos a seguir da diferença específica e dos acidentes, os dois últimos predicáveis.


(continua)


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1- Novamente: “In eo quod quid”.


2- Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.3, art.5.


3- E, na clássica definição do Aquinate, o selhemante é o uno na qualidade.


4- Como não é a propósito do tema em questão, não entraremos em pormenores interessantes, a saber: de que forma pode dar-se nos anjos a ratio risibilis, já que eles não possuem corpo e o riso é o reflexo sensível de um ato espiritual. E como classificar o riso maléfico, ou seja, o que representa o gozo espiritual com o mal que sucede a outrem. Deixaremos estes problemas para o artigo sobre o riso que publicaremos mais à frente.