domingo, 17 de julho de 2011

O limite moral das contendas (e alguns avisos)

O vangloriar-se que causa a contenda não é outra coisa senão a defesa indevida, desmesurada, do próprio parecer”.


Sidney Silveira


Para ser lícita e não degenerar em ódio interior — e nos atos exteriores maus que se lhe seguem —, toda divergência deve ter como critério a busca sincera da verdade, sem a qual irá gerar contendas, rixas, escândalos, detrações. Quando digo aqui a palavra verdade, tomando-a como critério inalienável das divergências levadas a cabo de forma justa e honesta, não a estou usando em abstrato, ou seja, referindo-me ao conceito de verdade, e sim fazendo alusão às verdades objetivas implicadas na divergência mesma. Um pequeno desvio no que tange a essas verdades, e a divergência se transforma em ações injustificáveis contra o próximo; no habitat espiritual propício para os acusadores de má-fé, que fazem do vale-tudo imoral uma espécie de tática desesperada, que diz mais deles próprios do que de seus adversários.


O fato é que se nós, humanos, tivéssemos a intuição direta das essências das coisas, como imaginava Husserl, não haveria divergências nem disputas: a verdade assimilada por todos num flash intuitivo se imporia como esteio da paz social — sendo possível divergir apenas por malícia proveniente de uma corrupção na vontade. Este é, a propósito, o caso de Lúcifer e dos seus desgraçados anjos: neles a verdade apreendida pela inteligência não pode ser o pilar da paz apenas porque a sua vontade obstinou-se, quer dizer, perverteu-se irreversivelmente, mas isto não implica dizer que, numa situação em que não haja essa obstinação perfeita (a qual só se dá nos demônios), a verdade não seja vínculo da paz entre as criaturas inteligentes, ou seja, os entes dotados de potência para os inteligíveis. Em suma, como o nosso acesso aos inteligíveis é dificultoso, dada a humana forma de conhecer, que é a partir da essência das coisas materiais (quidditas rei materialis), é natural que, no transcurso da vida, nos vejamos em situações propícias a ocasionar contendas, controvérsias, querelas.


Isto postulado, podemos dizer que há duas formas principais de considerar moralmente uma contenda. Mas, antes de tudo, o que seria uma contenda? Sabemos, com Santo Tomás, que a contenda é uma das filhas da vanglória, e mais ainda: nas palavras precisas deste grande gênio filosófico, o vangloriar-se que causa a contenda não é outra coisa senão a defesa indevida, desmesurada, do próprio parecer. Noutras palavras: é quando o que é buscado na ação é apenas prevalecer sobre os demais, ser visto como “melhor” aos olhos dos demais (algo parecido com a insustentável teoria do desejo mimético, de René Girard).


Seja como for, uma coisa é certa: tal situação espiritual gera uma quantidade infindável de conflitos, seja de uma pessoa com outras, seja dela consigo mesma. Neste último caso, porque até mesmo uma consciência narcotizada pela vanglória — a qual faz um homem perder totalmente o senso de perspectiva — em algum momento acusará o golpe, pois a sindérese (o hábito inato da captação dos primeiros princípios da razão prática) é infalível em nós. Ou seja: nesta vida ou na outra, haverá o momento em que cada um de nós se deparará com as próprias ações, diante do espelho da consciência (termo que os liberais de todas as colorações, como já mostramos em vários artigos do blog, usam de forma absolutamente equívoca). Ocorre que, para a consciência estar de fato iluminada, ou seja, para rebrilhar em nossas ações pelo selo da reta razão, é preciso evitar a todo custo a vanglória, o que se pode fazer de várias maneiras (mas não é o caso de abordá-las aqui). Fiquemos, por ora, com o seguinte: o vanglorioso será necessariamente um detrator, assim como também um praticante da contumélia, que nasce da ira.


Mas voltemos à contenda, deixando consignada outra definição que toca o aspecto prático da questão: contenda é a divergência conceitual transformada em rixa pessoal. E vamos às duas formas — a que se fez alusão acima — de avaliar a contenda no tocante ao aspecto moral:


Ø Se a contenda é instrumento da impugnação da verdade, será moralmente má. Acontece que alguém pode impugnar a verdade por erro ou ignorância na ação, e neste caso a contenda será má, sim, mas desculpável em algum grau; e também pode impugná-la de caso pensado, e então a contenda será não apenas má, mas verdadeiramente abominável. Este é, literalmente, o pecado contra o Espírito Santo, cuja remissibilidade, de acordo com o grande tomista Santiago Ramírez, é um dos maiores milagres que pode haver;


Ø Se a contenda é instrumento da impugnação da mentira ou de erros, será lícita, mas isto não quer dizer que o seja em todos os casos. Um exemplo: se da disputa com o contendor se presume uma conseqüência nefanda para ele, como por exemplo o induzi-lo ao ódio espiritual, que é sempre pecado, então até mesmo a contenda justa deve ser evitada. Aqui, ela só será moralmente lícita se for levada a cabo em legítima defesa. É aquela história que contava a minha avó: dá-se um boi para não entrar numa briga, mas, dependendo das circunstâncias, dá-se uma boiada inteira para não sair dela. É quando a situação obriga à ação, e depor as armas se transforma em omissão grandemente culpável.


Em resumo, em toda contenda há um limite moral, pois a vitória justa não se consegue com táticas escusas, e muito menos deixando prevalecer as paixões do apetite irascível, o que a propósito ocorre deveras quando o ambiente da contenda é de palavrões, insultos, ironias infames, xingamentos e coisas que tais (e não o da boa ironia da maiêutica socrática, é claro).


No caso de um inimigo desleal que acuse de forma insana o seu oponente, inventando teorias sofisticadíssimas sobre as suas supostas más intenções do coração (pelo amor de Deus, nem mesmo a Igreja julga o foro íntimo!), a coisa é tremenda, e o conselho prudencial é o seguinte: jamais usar dos mesmos expedientes, para não sucumbir à contenda má — que é um verdadeiro preâmbulo do inferno nesta vida.


Pois muito bem, não sou professor de malícia. Mas isto não implica dizer que não tenha a clara visão dela, quando se apresenta à minha frente, num espetáculo aterrador. Portanto, digo algumas coisas a propósito da discussão recente que gerou este texto:


1ª. Ela não se transformará em contenda má, simplesmente porque não vou deixar, ainda que a outra parte espume de raiva, invoque os demônios para fazer uma infestação local aqui em casa, etc. Para tanto, peço uma modesta contribuição a pessoas que (talvez por simpatia para comigo) me têm mandado mensagens com conteúdos das “lições” recentes do professor acerca da minha minúscula pessoa: não façam isto! Entre outras coisas, porque o seu “apostolado dos palavrões” (atividade chulíssima para a qual apresentou um padroeiro oficial, no vídeo em que faz carícias no meu ego, com insultos) interessa-me tanto quanto as conseqüências deletérias da eructação dos cangurus australianos para a camada de ozônio. Repito: o meu interesse por esses conteúdos e por qualquer opinião sobre a minha pessoa é, matematicamente, o seguinte: zero menos nada. Até porque prefiro confiar na Providência Divina, em lugar dos estratagemas humanos.


2ª. Por um desses emails fiquei sabendo que sou um “pérfido inconsciente”, conceito autocontraditório com o qual fui agraciado, idéia que, por decoro, prefiro não destrinchar por aqui. Basta apenas dizer que a perfídia, conforme aprendi numa prova cabal extraída da obra do Aquinate, pressupõe a plena consciência do malefício na ação. Logo, um pérfido inconsciente é algo tão possível quanto um círculo quadrado. Seria melhor, portanto, chamar-me de “homem dos infernos”, “pérfido diabólico” ou de coisa até pior, mas não disso aí — que é uma impossibilidade lógica e ontológica, e eu não me sinto nem um pouco lisonjeado por ser chamado de uma coisa que não existe. Ademais, nada disso me interessa, portanto não enviem mais esses conteúdos “filosóficos” para mim. Não vivo disso, tenho mais o que fazer, várias atividades profissionais que me tomam tempo, pessoas que dependem de mim, etc. E não tenho o menor interesse em obter informação de qualquer ordem sobre a vida ou as atividades desse professor, a quem pessoalmente não desejo nenhum mal. E não tenho o menor interesse sobretudo depois da forma desleal, mesquinha, feia, desproporcional e tola como agiu comigo. Por isso reitero: não me mandem mais essas coisas! Se não as indico a outras pessoas, por que eu mesmo iria contemplá-las?


3ª. Continuaremos o modesto trabalho do Contra Impugnantes; da editora Sétimo Selo (que acabou de lançar seu último livro, e está finalizando o próximo); do Instituto Angelicum (com os DVDs); do SPES; etc. E não digo “modesto” por falsa modéstia, mas porque é isso mesmo: um quase nada que oferecemos como uma espécie de serviço teológico, neste momento de crise eclesiástica. Se é de fato um trabalho bom ou ruim, meritório ou demeritório, entregamos ao julgamento do Pai do céu.



4ª. Quem espera que façamos um circo deste lamentabilíssimo episódio, se decepcionará muito. É claro que as acusações amalucadas ou insustentáveis (como a da tal “perfídia inconsciente”) serão respondidas devidamente, no tempo e na forma que julgarmos adequados. No mais, continuaremos mostrando a obra de Santo Tomás de Aquino com cursos, aulas e livros editados de uma forma que faça jus a este grande Doutor da Igreja (como por exemplo o primeiro volume do De Malo e o Tratactus De Substantiis Separatis, em edições bilíngües, latim/português). Por fim, vale dizer que, quando eu tiver um tempo maior para escrever, os leitores em breve verão por aqui: a) a continuação da série de textos sobre Xavier Zubiri; b) mais um artigo para mostrar como tomismo e neotomismo possuem uma contiuidade harmônica, uma complementaridade estupenda, e que não se pode jamais tomar a Jacques Maritain como seu representante máximo no século XX, sob nenhum aspecto; c) informação sobre os novos DVDs da série A Síntese Tomista, que em breve apresentaremos por aqui.