domingo, 28 de dezembro de 2008

René Girard, na terminologia tomista

Sidney Silveira
Costumo dizer o seguinte, para quem quer saber efetivamente algo sobre a natureza humana, quanto aos vícios e às virtudes: estude, na Prima Secundae da Suma Teológica, os tratados sobre os atos humanos (questões 6 a 21), sobre as paixões da alma (questões 22 a 48) sobre as virtudes em geral (questões 55 a 67) e principalmente o magistral tratado sobre os vícios e pecados (questões 71 a 89). Há ali uma condensação, um resumo das estruturas da psique humana incomparavelmente mais profundo do que muitas psicologias reducionistas hoje nos propõem. Nossas tendências e apetências naturais e seus desvios mais típicos estão ali descritos de forma milagrosamente precisa.

Apliquemos um pouco dessa teoria à tese do desejo mimético de René Girard. Sim, àquela que nos diz o seguinte: é da natureza do desejo ser movido não pelos bens objetivos com os quais o espírito se relaciona, mas pelo fato de uma coisa ser objeto do desejo de outras pessoas (na pressuposição de que, pela posse de tal coisa, esse “eu” desejante se diferenciará dos outros, e assim se tornará também ele mais “desejável”). Em suma: só desejaríamos algo como imitação do que invejamos.

A SOBERBA
Santo Tomás segue a divisão de vícios capitais feita pelo grande papa São Gregório Magno: vaidade, inveja, ira, acídia, avareza, gula e luxúria. E, acima desses sete, como vício supracapital, põe a soberba — fonte de todos os demais.

Trata-se de uma enfermidade psíquica (aegritudo animalis) definida pelo Angélico Doutor como o apetite desordenado da própria excelência. Um estado mórbido que destrói todo o organismo das virtudes, ou pior: destrói a possibilidade de qualquer virtude, pois a soberba contraria a todas, radicalmente. E tal destruição provém de o soberbo se propor um fim último fictício (justamente o sobressair-se aos olhos das pessoas) em detrimento do fim último efetivo, que é Deus — atitude que, como não poderia deixar de ser, tem ressonâncias físicas identificáveis. Uma delas, segundo Santo Tomás, é que o soberbo tem habitualmente o olhar elevado, altivo (extollentia occulorum), signo da sua falta de reverência e de temor.

Esse pendor narcísico é um traço distintivo do soberbo — afã de autodivinização, como dizia Adler. E autodivinização (diga-se) à custa de depreciação das pessoas e/ou teses que sejam um empecilho para a afirmação desse fim fictício que o soberbo se propôs: a entronização do próprio umbigo. Na prática, essa atitude doentia tem conseqüências diretas para a nossa dinâmica psíquica, segundo Santo Tomás. A primeira delas é a emergência de outro vício tremendo: a vaidade, que busca a glória vã do reconhecimento do mundo. Assim, se o soberbo quer imoderadamente a própria excelência, o vaidoso quer a manifestação pública da própria excelência. Na prática, quer uma “glória” humana vazia — sem importância, na escala dos valores reais. Sendo assim, o vaidoso busca aparecer exteriormente, sobressair, chamar a atenção dos demais sobre o “alto” valor da sua pessoa. Quer ser honrado e louvado pelos outros, ainda que tais louvores e honrarias não correspondam a uma excelência realmente possuída.

Por fim, a vaidade — essa filha da soberba que busca a vanglória — acaba por acarretar outros vícios: desobediência, jactância, hipocrisia, contenta, pertinácia, discórdia e presunção de originalidade (novitatum praesumptio). Todas essas são filhas da inveja, para o Doutor Comum, e constituem uma escadinha ontológica que nos leva aos meandros mais terríveis, a buracos psicológicos verdadeiramente sem saída. Isto porque a vaidade acaba por conduzir a uma insegurança radical (ainda que o soberbo a esconda dos olhos do mundo), porque leva alguém a se apoiar apenas em si mesmo, em seus próprios supostos méritos, e isto não lhe pode trazer mínima estabilidade. Daí Santo Tomás dizer sabiamente que “se chama ‘vão’ o que não tem firmeza nem estabilidade” (Suma Teológica, II-II, q. 132, a.5).

Isto posto, vale dizer o seguinte: desejar algo apenas para diferenciar-se dos outros, apenas para parecer melhor que os outros (por inveja) é literalmente o que Santo Tomás chama de soberba: um apetite (desordenado) da própria excelência! Eis aí exposta, com terminologia distinta, a “tese” de René Girard, com a diferença de que o autor francês quer convencer-nos de que essa inveja “fundamental” é a fonte dos nossos desejos, enquanto Santo Tomás a coloca como uma grave doença do espírito — um desequilíbrio que, se continuado, pode tornar-se incurável.

A propósito: a inveja, para o Angélico, é outra filha da soberba.

Em tempo1: A verdadeira marca do idiota é a pertinácia no erro. Um erro que quer propagar irresponsavelmente, sobretudo se o fará parecer diferente, presumir-se “original”...
Em tempo2: A tese de Girard, na prática, se casa perfeitamente com a idéia liberal de que a consciência individual é “autônoma”. A afirmação do próprio "eu" em detrimento dos outros, presente na teoria girardiana, representa essa vontade de autonomia, esse desligar-se dos outros (coisas e pessoas) elevando-se artificiosamente.
Em tempo3: Terá Deus posto no coração do homem essa inveja fundamental? Estará o homem condenado a sempre querer algo invejando? Já lembramos aqui, noutro texto, que a tese girardiana, se levada às últimas conseqüências, parece descrever o estado de espírito luciferino: a inveja ao próprio Deus, por pura soberba.