sexta-feira, 8 de julho de 2011

Questão de angelologia: Lúcifer, querubim ou serafim?

Sidney Silveira
No trecho da aula sobre como os Anjos podem ser “indivíduos”, dado que a matéria é princípio de individuação e eles não têm composição de matéria, afirmo que Lúcifer, sendo o mais elevado de todos os Anjos antes de cair, é um serafim.

Pois bem, um atento leitor do Contra Impugnantes, que assistiu àquele vídeo, envia-me uma passagem da Sagrada Escritura (Ez. XXVIII, 14) onde se lê: “Eras um querubim protetor de asas abertas. Estavas na alta montanha de Deus e passeavas entre pedras de fogo”. Agradeço imensamente ao amigo, pois com isto nos remete a uma questão teológica de grande sutileza e relevância, à qual responde genialmente Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica (I, q. 63, art. 7), a partir da seguinte premissa, arrolada conforme o método da disputatio: “Parece que o anjo supremo entre os que pecaram não era o supremo de todos”.

Pois bem, na primeira objeção a essa questão — já partindo da pressuposição católica de que Lúcifer era o superior dentre todos os Anjos —, o Aquinate cita exatamente a passagem da Escritura aludida pelo nobre leitor, como se lê abaixo:

“Do anjo [mau] se diz em Ez. XXVIII, 14: Eras um querubim protetor de asas abertas. Estavas na alta montanha de Deus e passeavas entre pedras de fogo. Ocorre que a ordem dos querubins é inferior à dos serafins, como afirma Dionísio em sua Hierarquia Celeste (c.7). Logo, parece que o anjo supremo entre os que pecaram não era o supremo de todos”.

Neste contexto, antes de prosseguir convém salientar que, de acordo com Santo Tomás, a superioridade ontológica de um Anjo sobre outro não provém propriamente da hierarquia na qual se insere (pois este é o aspecto acidental desta supremacia), mas sim do fato de o superior possuir espécies infusas por Deus — a saber: formas inteligíveis — mais universais. Na verdade, a hierarquia reflete esta primazia ontológica à qual podemos fazer referência com uma simples proposição: a forma inteligível é tanto mais perfeita quanto mais universal, quer dizer, quanto mais contenha em si aspectos distintos do ser. E isto não é prerrogativa dos Anjos, pois também se aplica aos homens. Usemos uma analogia. Um grande jogador de xadrez, como Garry Kasparov, ao contemplar o tabuleiro numa determinada posição conhecerá muito mais as variantes ali implicadas do que um enxadrista neófito. Com uma só forma inteligível, o conhecimento de Kasparov será, pois, mais intensivo (e, no caso, também mais extensivo). Na prática, os dois jogadores olham para o mesmíssimo tabuleiro, mas a intelecção de um é bem superior à do outro.

Podemos, pois, dizer que o Anjo superior, com menos espécies infusas, conhece mais e melhor a realidade do que o inferior. A grande diferença em relação a nós é que, nos Anjos, as formas inteligíveis são infundidas por Deus desde a sua criação; em nós, elas são abstraídas das coisas — pelo intelecto agente. Assim, tudo o que o Anjo conhece naturalmente, conhece desde sempre. Por esta razão, podemos afirmar que, do ponto de vista natural, o conhecimento dos Anjos não pode formalmente crescer nem perder-se; do ponto de vista sobrenatural, sim, ele é passível de aumentar, pois Deus pode manifestar novos conteúdos inteligíveis aos Anjos de quaisquer hierarquias.

Não entro aqui no tema da comunicação entre Anjos de ordens e hierarquias distintas, pois escaparíamos à questão em foco. Com relação a este e a outros pontos, a grande referência no Brasil é o jovem tomista brasileiro Luiz Astorga, que está doutorando-se no Chile com uma tese sobre o estatuto ontológico das espécies angélicas. Um dia publicaremos esse estudo entre nós, pois se trata de matéria pouquíssimo conhecida pelos tomistas inseridos atualmente nos seminários e institutos católicos (modernistas, decerto); um tema abordado por notáveis tomistas históricos, como o Cardeal Caetano e João de S. Tomás, apenas para citar dois que escreveram textos densos e profundos sobre este aspecto interessante da angelologia.

Façamos agora uma escadinha gnosiológica, antes de voltar ao cerne do problema teológico aqui abordado:

> Deus, Ato Puro sem mescla de potência, é omnisciente: conhece absolutamente tudo num só ato, contemplando a Si mesmo e as coisas que criou, pois n’Ele Ser e conhecer identificam-se em grau máximo; 

> O serafim mais elevado conhece as coisas com menos atos intelectivos do que os Anjos de ordens inferiores, os quais têm em sua inteligência infusa formas inteligíveis menos universais. Portanto, os serafins são os Anjos cujas idéias estão mais próximas das idéias da mente divina. Este grau de universalidade das species infusas angélicas diminui progressivamente, indo do mais elevado serafim ao mais modesto Anjo custodiador (ou da guarda);

> O homem, criatura cujo ser, potências e operações são muitíssimo mais limitados, tem um conhecimento das coisas incomensuravelmente menor — tanto intensiva quanto extensivamente. Conhece, com muitíssimos atos intelectivos (ou seja, com grande esforço), apenas alguns aspectos do real, dado o caráter abstrativo de sua parca inteligência. E mais: o seu conhecimento pode crescer pela investigação, ou perder-se pelo esquecimento, por problemas de ordem psicológica, etc. Por isso o Doutor Comum afirma, no começo da Suma Contra os Gentios, que entre nós e os Anjos há uma distância muitíssimo maior do que a existente entre nós e os animais irracionais.

Voltemos agora ao x do problema, apontando o que dizem os versículos seguintes da passagem bíblica citada pelo atento leitor do blog (agora, em Ez. XXVIII, 17): “Teu coração se inflou de orgulho devido à tua beleza; arruinaste a tua sabedoria por causa do teu esplendor.(...)”. E, a partir deste ponto, vejamos a conclusão teológica de Santo Tomás a respeito de se Lúcifer é um serafim ou um querubim. 

Premissa inicial: na Sagrada Escritura, muitas vezes o nome se refere à operação ou função do Anjo. Assim, o texto bíblico, ao indicar que o demônio caído era um querubim (Ex. XXVIII, 14), aborda um aspecto específico, a saber: os querubins são assim denominados, de acordo com a tradição bíblica, pela plenitude de ciência, ao passo que os serafins são os que estão abrasados pelo amor divino. Ora, quem tem ciência pode pecar, mas não o pode quem está abrasado pelo amor divino. Por esta razão, o nome “querubim”, nesta passagem de Ezequiel, designaria exatamente o que tinha a plenitude da ciência, mas sem estar abrasado pelo amor divino. Isto quer dizer que Lúcifer (o mais elevado de todos; e portanto um serafim) é ali designado tão-somente pelo que lhe restou, após o pecado: uma grande ciência, sim, mas inflada pelo orgulho e pela vaidade, porque não era abrasada pelo amor de Deus. 

Isto considerado, Santo Tomás nos leva a concluir que, se fosse um querubim, Lúcifer não seria o mais elevado de todos, e na Escritura ele é designado como querubim para mostrar os despojos ontológicos em que jaz, a partir de sua hedionda revolta contra o Criador: uma sabedoria obstinada na soberba, no ódio, na inveja. Não custa aqui ressaltar que, na própria questão aludida acima da Suma Teológica, Santo Tomás não deixa dúvidas de que se trata de "matéria opinável", ou seja: de algo acerca do qual o Magistério não fez definições dogmáticas.

O nobre amigo Luiz Astorga ressalta também que, para o Doutor Angélico, a hierarquia não é propriamente um gênero, mas um todo de tipo potencial (totus potestativus), em que os superiores contêm em si as capacidades dos inferiores, e que nele o superior pode com certa propriedade (mas denotando de modo incompleto suas virtudes) ser denominado pelo nome de um inferior. E este é exatamente o caso de Lúcifer ao ser citado na Sagrada Escritura como querubim. 

Sobre o totus potestativus em Santo Tomás, Astorga salienta ainda que não consiste numa “ajeitometria” de Santo Tomás, mas na resposta condizente com a doutrina tomada integralmente. 

Por fim, o Luiz, além de me dar inúmeras citações sobre esta questão na obra do Aquinate, lembra-me uma passagem do Tratactus De Substantiis Separatis, por nós editado e por ele traduzido, em que Santo Tomás de Aquino afirma o seguinte: “(...) 'Demônios', segundo o uso da linguagem corrente, são apenas aqueles [Anjos] considerados maus, o que (...) acontece com razão: os demônios recebem este nome do termo grego para 'ciência', a qual, sem caridade, segundo as palavras do Apóstolo, infla de soberba".