segunda-feira, 25 de julho de 2011

Três em um: aula sobre Husserl; os “santos” palavrões; e alguns avisos

Sidney Silveira


Leiam-se a seguir três textos: a) uma resposta acerca do interessante tema da “intuição das essências”; b) o resultado do concurso “Santo Palavrão”; c) e breves avisos.


Vejamo-los.




Ceci n'est pas un chat.


Lectio:


Sobre a intuição “instantânea” das essências


A filosofia pós-escolástica foi, desde os seus primórdios, pródiga em gerar autores ecléticos, destes que mesclam em sua obra elementos tão díspares e contrários entre si que, no final das contas, produzem escritos repletos de terminologia equívoca e confusão doutrinária. A razão disto será tema para outro texto, mas vale deixar aqui consignadas algumas diferenças entre os grandes filósofos e aquilo que alguns autores medievais chamavam de philosophantes (para nós, filosofastros): os primeiros logram uma síntese superadora de todas as influências das quais beberam; os segundos não conseguem senão realizar esboços a partir de insights isolados — mostrando-se incapazes de alçar-se ao sentido de unidade sistêmica que toda boa filosofia possui. Em suma, uns produzem conhecimento verdadeiramente arquitetônico; outros compõem rebotalhos a partir de idéias estanques entre si, quando não aporéticas em sua raiz.


Nos grandes filósofos, os pontos cardeais da filosofia — ser (metafísica), conhecer (gnosiologia) e agir (moral) — são harmônicos e complementares; nos filosofastros, são caóticos e autofágicos. Na obra dos primeiros se observa um quadro sinóptico extraordinário, pelo qual se vislumbra toda a grandeza do conjunto; na dos segundos vê-se não raro uma massa conceptual difusa — quando não simplesmente amorfa —, que mais confunde o estudioso do que infunde nele algum conteúdo inteligível. A propósito, em alguns casos não é difícil demonstrar que são maus filósofos, o que é bastante evidente (caso de um David Hume, por exemplo); difícil mesmo seria demonstrar que são filósofos, sobretudo se tivermos em mente que é próprio do sábio — ou, no contexto, do filósofo — ordenar as coisas aos seus fins devidos, o que definitivamente inclui ordenar a sua própria formação.


É bem certo que o ecletismo predominante na filosofia ocidental a partir de Descartes não produziu, no decorrer dos séculos, apenas filosofastros como um Voltaire, por exemplo — publicista a quem só mesmo por analogia de atribuição imprópria poderíamos chamar de “filósofo”. Contudo, mesmo entre os melhores da filosofia moderna observamos com bastante freqüência teorias anômalas, incompletas ou aporéticas em seus princípios. E este é justamente o caso de alguns dos mais importantes filósofos de uma linha a que podemos chamar de intuicionista, como apontaram com grande competência autores como G. Manser e Octavio Derisi, além de pensadores de fora da escola tomista que seria ocioso enumerar. Essa tendência ganha enorme impulso com Kierkegaard e Bergson, no século XIX, e tem em Husserl, Heidegger e Xavier Zubiri alguns de seus expoentes, no século XX; e, em Duns Scot, o parentesco distante do século XIV. Em muitos desses autores, a má-compreensão do ato do conhecimento levou à formulação de teses insustentáveis que, ao fim e ao cabo, fizeram derruir boa parte de seu edifício filosófico.


Pois muito bem, a propósito de uma crítica recente recebida a um trecho de aula minha sobre Husserl, pela qual agradeço penhoradamente, tomou-se uma simples imagem analógica usada em sala (à guisa de exemplo para uma platéia bastante heterogênea) com o intuito de mostrar cabalmente que confundia eu ali, ao final das contas, o eidos, quer dizer, a forma inteligível de um ente, com os seus acidentes individuantes. Ou seja: seria eu sujeito tão tapado que sequer saberia distinguir a diferença entre a essência de uma tartaruga e o casco dela que me atiraram na cabeça, tão benevolamente.


Antes de tudo, e para não incorrer na equivocidade que tanto criticamos, definamos alguns termos neste tema gnosiológico em que estamos: “intuir” nada mais é do que “inteligir”, ou, como afirma com acerto Santo Tomás de Aquino, o ato do intuitum não é nada além disto: a união formal do intelecto com a essência da coisa — de qualquer modo que seja: “Intelligere nihil aliud dicit, quam intuitum, qui nihil aliud est, quam praesentia intelligibilis ad intellectum quocumque modo".


Bem, ao afirmar “de qualquer modo que seja” (“quocumque modo”), observamos que o genial filósofo medieval estava apenas referindo-se a um fato demonstrado em sua obra: o de que nós, humanos, não somos os únicos capazes de conhecer a verdade, quer dizer, os únicos aptos a apreender a forma inteligível dos entes. Ensina o mestre (e não é o caso de destrinchar cada uma destas teses, porque mudaríamos o foco):


Ø há o modo divino de conhecer, que é por visão total de tudo a partir de Si mesmo, ou seja: Deus, o Próprio Ser, conhece todos os entes ab intra, contemplando a Si mesmo num só ato que se identifica absolutamente com a Sua própria essência, que é “simplesmente Ser” (esse simpliciter). Noutras palavras, Deus, causa das causas, contemplando-Se, conhece o que é, o que foi, o que era, o que será e o que seria;


Ø o modo angélico de conhecer, que é duplo: ab intra na compreensão das essências — infusas por Deus na inteligência de cada Anjo —, e ab extra para o mero reconhecimento presencial de seus particulares inteligíveis no mundo, mas sem mediação das imagens abstraídas das coisas (às quais Santo Tomás chama de “fantasmas”, ou seja: são aquelas imagens captadas pelos sentidos externos do homem — tato, olfato, visão, audição e paladar — e que ficam impressas nos sentidos internos, senso comum, memória, imaginação e potência cogitativa). Em palavras simples, o Anjo intui a essência dos entes instantanemente, ao passo que nós, não, pois há, como veremos, outra instância necessariamente implicada em nosso processo de conhecimento;


Ø e há o modo humano de conhecer: que é ab extra — ou seja, tem como fonte as próprias coisas que estão “além e fora de nossa mente”, ou seja, o ente extramental — e se dá por abstração dos “fantasmas” acima aludidos. Em resumo, o modo humano de inteligir não tem nenhuma instância totalmente ab intra, como nos casos acima, nem é perfeito — no sentido de que nenhuma inteligência humana é capaz de esgotar a inteligibilidade dos entes. Ademais, nesta vida o conhecimento humano (mesmo quando é aparentemente “instantâneo”, como mostraremos abaixo) nunca ocorre sem o intermédio dessas imagens apreendidas pelos sentidos externos e laboradas pelos sentidos internos.


Dadas estas premissas, prossigamos com algo fundamental: quando o homem intelige uma essência pela primeira vez, dá-se a aquisição do inteligível por abstração das particularidades materiais individuantes, e nesta abstração o intelecto agente “ilumina” diretamente o “fantasma” (inteligível em potência) sobre a base do intelecto possível (ou seja: dessa tabula rasa que é potência para os inteligíveis, que Temístio, grande comentador de Aristóteles acolhido por Santo Tomás, denominou noûs dynamei ou noûs dynatós, distinguindo-a do noûs pathetikós — presente nominalmente na clássica passagem do De Anima, III, 5). Neste exato instante ocorre o seguinte “milagre”: o intelecto se torna uno com o inteligido em ato, e, nas palavras de Santo Tomás, o ínfimo do supremo (que é Deus) toca o supremo das coisas ínfimas (que somos nós). O erro dos intuicionistas em geral está em conceber o ato do conhecimento desconsiderando a anterioridade de todo este aparato sensitivo. Não se trata, em princípio, apenas de uma anterioridade temporal dos sentidos em relação ao intelecto — conforme apontou o meu crítico e como se fora um erro, o que veremos abaixo se procede —, mas também material-formal.


O quadro acima pode ser ilustrado com o que se disse noutro texto: Deus, quando pensa, cria a coisa pensada; o Anjo, quando pensa, intui a essência da coisa pensada; o homem, quando pensa, abstrai a essência da coisa de seus acidentes individuantes. E abaixo de todos nessa escala, na presunção do meu crítico, decerto há de estar este miserável escriba, arrojado dramaticamente no plano da sensibilidade a ponto de não saber se o chuveiro de sua casa é comestível ou se os sons emitidos pelo seu bichano (chamado “Boécio”) são anagramas seráficos em forma de miado.


Mas retomemos o fio da meada. Diz o meu crítico:


“O ato e reconhecimento instantâneo (grifo meu!) pelo qual o intelecto apreende um gato naquilo que os sentidos lhe apresentam como gato é, precisamente, o que se denomina intuição”.


Bem, a título de informação, esta é, com diferença de palavras e de contexto, exatamente a tese de Xavier Zubiri — expressa, entre vários outros lugares, na obra Los problemas fundamentales de la metafísica ocidental. Em linhas gerais, a tese pressupõe que não há uma anterioridade dos sentidos em relação ao conhecimento, chegando o filósofo basco a dizer, na conhecida formulação recorrente em sua obra, que “sentir e entender não são dois atos distintos, mas uma só apreensão instantânea (grifos meus!) pela inteligência sentinte” (recuso-me a usar o neologismo “senciente”). Esta premissa, ao nosso ver equívoca, embora defendida com vários argumentos pelo espanhol, é constante em toda a trilogia de Zubiri recém-lançada em português pela editora É Realizações, em brilhante tradução do Nougué. A propósito, sobre a intelección sentiente de Zubiri pretendemos falar amiúde noutro artigo**.


Em suma, após inteligida uma essência pela primeira vez, não é necessário abstraí-la sempre e sempre, mas basta-nos um reconhecimento (pela memória), do “fantasma” deste ou daquele particular, para que percebamos que tal ente individual X pertence à essência Y. Assim, pois, quando o meu intelecto apreende um gato reconhecendo-o de imediato como gato, exemplo usado pelo Prof., não se trata de cognição “instantânea”, no sentido de direta, da essência, pois mesmo neste caso o encontro do intelecto com a essência da coisa se dá por intermédio dos “fantasmas” (que lhe apontam uma essência que já havia sido inteligida anteriormente). A propósito da potência sensitiva interna da memória, leia-se este breve texto.


Retenhamos, pois, o seguinte: nem no primeiro contato da inteligência humana com as coisas, nem nos seguintes, há o encontro direito do intelecto com a essência delas sem o intermédio desses “fantasmas” — que lhe mostram diretamente o que nelas há de inteligível em potência. Por isso, é lugar comum da filosofia perene dizer que a intuição direta das essências é o modo de conhecimento propriamente angélico (a conversio ad intelligibilia), e não humano. Portanto, se um bom conhecedor de Aristóteles defende a tese da intuição “instantânea”, das duas uma: ou simplesmente preteriu Aristóteles em favor de Zubiri (ou Husserl, etc., etc., etc.), ou está manifestando o ecletismo que traz consigo uma imprecisão terminológica que acaba por gerar confusões conceptuais. Prefiro acreditar na primeira hipótese, que em si não implica nenhum “crime”, embora a segunda seja também uma possibilidade exponencial.


Demos, porém, o seguinte: alguém pode, com total elasticidade de termos, dizer que o homem intui instantaneamente as essências das coisas, pois o intuir nada mais é do que o ato de inteligir de qualquer modo que seja (“quocumque modo”). Até aí, como dizem, morreu Neves, e "intuem" os homens, os Anjos e Deus. Mas, no caso humano, ainda quando ocorre o “instantâneo” reconhecimento da essência gatesca ao observar-se este ou aquele gato, isto também se dá por intermédio do “fantasma” — o inteligível em potência que é atualizado pelo intelecto agente. Em termos simples: não existe intuição instantânea das essências, ou, nas palavras do meu crítico, “cognição instantânea”, a menos que tal definição se dê, como se disse, com elasticidade total de termos.


Vale neste contexto dizer que é cabal a irredutibilidade da obra gnosiológica de Santo Tomás de Aquino, e por extensão da dos tomistas, a qualquer tese “intuicionista” como a fenomenológica de Husserl, malgrado a tentativa de Edith Stein — importante discípula do autor alemão convertida do judaísmo à fé católica após o contato com a obra do Aquinate — de tentar fazer uma simbiose deste filósofo com o Doutor Comum da Igreja, em alguns aspectos. Essa irredutibilidade foi demonstrada por importantes tomistas do século XX. A bibliografia sobre o tema é densa e extensa.


Feitos estes esclarecimentos, torna-se evidente até mesmo para um gato (pelo menos para o meu) que o trecho criticado da aula sobre Husserl pressupunha corretamente uma anterioridade temporal dos sentidos sobre a inteligência, mas não apenas esta, como se viu, e que o exemplo citado em sala de aula era apenas uma imagem de ocasião colhida para facilitar a compreensão por parte dos alunos.


De toda forma, agradeço pela crítica, que é sempre bem-vinda, mesmo neste caso discordando eu dela fundamentalmente — tanto na forma, como no conteúdo.


Outra coisa: se porventura o Prof. crê sinceramente haver malícia de minha parte, não me resta senão pedir-lhe que, como cristão, reze por mim.


** Registre-se que a premissa gnosiológica implicada na inteligencia sentiente nada tem a ver com a nossa crítica, iniciada nesta série de artigos, ao modernismo teológico de Zubiri — que o levou não apenas a largar a batina, mas também à excomunhão. A propósito, jamais dissemos que o nosso contendor é o porta-voz desse modernismo teológico, ou de qualquer outra coisa — até porque ele próprio fez questão de frisar, com o seu humor peculiar, que é um abalizado porta-voz de si mesmo.


Em tempo: Quanto às incontáveis imputações por parte do meu adversário de intenções ocultas do meu coração (além de coisas bem mais graves), não me defendi delas até o momento e, a princípio, não pretendo fazê-lo. Meus muitos pecados conhece-os Deus, que vê o oculto, e o meu confessor. Seja como for, dou graças a Deus por tais coisas sucederem, pois se elas acontecem é porque estão incluídas no plano da Divina Providência, que a tudo abarca, naquilo que os grandes teólogos da Igreja chamavam de “vontade divina de beneplácito” — o ato interno da vontade de Deus não manifestado, ou seja, que não nos é dado conhecer.


Dizia acerca disso o grande São Francisco de Sales: “Devemos abandonar-nos confiantemente ao divino beneplácito, certos de que Deus nada quer ou permite que não seja para o bem espiritual dos que O amam” (Tratado do Amor de Deus, I. 8).




Resultado do concurso “Santo Palavrão”


Como já anunciáramos noutro post, o vencedor do concurso “Santo Palavrão” é o leitor J. S. Matos, da cidade de Tubarão (SC), o primeiro a me enviar uma mensagem, e a quem, portanto, serão postados os livros e DVDs descritos na promoção. E digo vencedor pelo seguinte: ao criar a coisa com o intuito de pôr fim a esta chalaça toda, eu já tinha em mente entregar o prêmio ao primeiro sujeito que mandasse uma mensagem para concursosetimoselo@gmail.com (como aliás está no regulamento), caso do leitor acima, cujo email chegou-me ao endereço eletrônico às 9h15 da última quinta-feira (21/07). Mas por uma espécie de benemerência da comissão julgadora (ou seja: eu mesmo!), estava firmemente decidido eu a mandar os livros e DVDs mesmo no caso de não se comprovar a “santa” chulice. E foi o que sucedeu. [ADENDO: é claro que se as obscenidades fossem de fato comprovadas, de acordo com o que diziam as regras — oh, que tirania terrível cumprir regras externas à consciência individual! —, eu apontaria aqui a coisa sem problema algum].


A propósito, as outras duas pessoas que enviaram mensagens o fizeram (sendo uma delas o Prof. Olavo), respectivamente, às 9h17 e 10h44 do mesmo dia — e um deles ainda mandou, por distração, o texto para o meu email pessoal, e não para a caixa postal acima, conforme prescrevia o regulamento da brincadeira. Mas não por esta distração eu acusaria o participante de ser um mau leitor de textos. São coisas que acontecem.


Em síntese, foram apenas três os emails enviados: o do vencedor, às 9h15; outro às 9h17; e um terceiro às 10h44. Todos os três citaram Thomas Morus, mas o vencedor — que o foi por ter sido o primeiro a mandar mensagem, conforme destacou-se acima — mencionou, além de Morus, São Gregório de Nazianzo, numa passagem em que o Santo teria dito o seguinte, durante o Concílio de Constantinopla:


“Vinde todos vós, que cavalgais no vício, escória do gênero humano. Porcos! Vós que vos desafogais, despudorados, arrogantes, alcoolizados, vagabundos, bufões, efeminados, falsos, insolentes, prontos ao perjúrio”.


Bem não há aí obscenidades ou imoralidades, no sentido em que as apontamos anteriormente, mas sim a crítica veemente delas. Quanto a Morus, o item 4 do concurso fazia menção exatamente ao fato de que não valiam santos que receberam a glória dos altares devido ao martírio no final da vida, caso notório de Thomas Morus, que, não obstante o belo exemplo de santidade, foi colocado no Índex dos Livros Proibidos, como mostramos aqui e aqui. Quem lê com atenção o decreto de canonização de Morus (por Pio XI) não tem dúvida de que se trata de um mártir santificado ao final de sua vida, no período em que se pôs frontalmente contra o nefasto Henrique VIII.



Aviso


O Contra Impugnantes entrará em recesso por alguns dias. Entre vários outros motivos, preciso terminar finalmente o trabalho de revisão dos textos de três livros que estão por vir:


Ø A Questão Disputada Sobre a Alma, de Santo Tomás (edição bilíngüe, latim/português);


Ø o Protréptico, de Clemente de Alexandria (edição bilíngüe, grego/português);


Ø e As Heresias de Pedro Abelardo, de São Bernardo (edição bilíngüe, latim/português).


Este último pela pequenina Sétimo Selo, e os dois primeiros pela É Realizações.