Sidney Silveira
Filosofia de Combate
O tomismo e a dissolução das idéias
no mundo pós-moderno
TOMO I
Prefácio
Embate de idéias e labor filosófico
“Nem Deus pode dar nem o homem pode receber
nada mais excelso do que a verdade”.
Plutarco
A história da filosofia é a história de querelas. Os exemplos são incontáveis e remontam a tempos imemoriais: os filósofos da Natureza, na Grécia Antiga, divergiam acerca do princípio de todas as coisas, altercando entre si nem sempre com a parcimônia que se presume deva ser a reitora das discussões entre os homens de saber; posteriormente, torna-se antológico o embate de Sócrates e do seu discípulo Platão com os sofistas que começavam a ganhar terreno na então recém-criada democracia ateniense; citem-se também as abissais divergências entre duas correntes dos chamados “socráticos menores”, os cínicos e os cirenaicos, no tocante à busca da felicidade; Aristóteles, por sua vez, em diferentes obras põe abaixo uma série de conceitos dos seus predecessores, erigindo novos estatutos epistemológicos para o filosofar; Epicuro, no período helenístico, ateia fogo na luta de idéias com sua filosofia hedonista, que, não sem aporias insanáveis, via no prazer o fim último da vida humana; os estóicos contrapõem tal visão a uma proposta que colocava nos vícios o mal absoluto, chegando ao extremo de condenar toda e qualquer paixão como má em si.
Nas épocas seguintes, movimentos pendulares em torno de alguns temas levaram muitos pensadores importantes a posições contrapostas não raro belicosas, pois se tratava de visões de mundo tendentes a se digladiar — e por uma razão muito simples: levadas às últimas conseqüências, elas propunham modelos civilizacionais (ou mesmo anticivilizacionais) que não poderiam coexistir pacificamente. Com o advento do Cristianismo e sua cosmovisão alimentada pela mensagem evangélica, as disputas filosóficas acirram-se, pois entram em cena as verdades de ordem sobrenatural [1] a ser custiodiadas primeiramente por um conjunto de homens de língua grega — hoje conhecidos como Padres da Igreja — e depois pelo Magistério eclesiástico, cioso em combater as heresias que punham em risco a salvação das almas.
Da Patrística Grega à chamada Alta Idade Média, a filosofia conhece uma espécie de cume na resolução de alguns dos problemas capitais da condição humana, não sem que os amantes da sabedoria, na defesa das suas posições, deixassem de controverter com maior ou menor contundência na busca da verdade filosófica, ou, então, na tomada de posições teológicas que, de uma forma ou de outra, abarcavam um enorme conjunto de questões atinentes à vida política, à pedagogia, à noção de liberdade, de amor, de ciência, etc. Sulcada, pois, por divergências profundas entre homens de escol, a filosofia segue o seu caminho histórico em meio a uma espécie de monumental disputatio dialética, em que os argumentos de uns se contrapõem às objeções de outros, incessantemente.
Como afirma Santo Tomás de Aquino em uma de suas obras, ao se contemplar este cenário olhando amiúde para os principais esforços filosóficos do passado, vê-se que algo de grandioso se fez — à custa dos avanços e retrocessos que sempre servem de base para futuras conquistas. Ora, tal riqueza provém do fato de que a verdade, dada a inesgotabilidade da fonte de que emana (o Próprio Ser), é também ela inexaurível, razão pela qual o Aquinate afirma, no começo do seu Comentário ao Credo, que nenhum filósofo jamais conseguiu esgotar sequer a essência de uma mosca.[2] Isto nos leva a pensar que, por trás de toda verdade descoberta, sempre haverá uma salutar zona de mistério, de algo por saber. [3] Em suma, sendo o conhecimento a posse imaterial dos entes pela inteligência, cada forma inteligível de que o homem se apossa apontará inelutavelmente para novas regiões de inteligibilidade, numa incomensurável espiral de coisas cognoscíveis que reflete a infinitude do Ser divino, do qual os entes participam.[4]
Seria ocioso enumerar ad nauseam todos os combates travados ao longo de séculos sem fim, mas alguns são parte importantíssima da história das idéias filosóficas e merecem ser citados, como o de Agostinho contra os maniqueus, o de Porfírio, discípulo de Plotino, contra os cristãos, as lutas entre hereges e doutores da Igreja, como a que se travou entre Abelardo e São Bernardo de Claraval, [5] assim como as discussões teológicas entre dominicanos e franciscanos, no seio da Igreja, que gerou rusgas até mesmo entre santos: o próprio Tomás de Aquino dá a entender que São Boaventura é um dos “murmurantes” aludidos na densa obra De unitate intellectus, de cariz metafísico, escrita para combater os averroístas — então considerados, e com justíssima razão, como deturpadores da obra de Aristóteles em várias teses que, ultrapassando os umbrais da filosofia, acabavam por colocar em perigo a fé. Estava-se no ápice intelectual do século XIII, tempo de turbulência política e de esplêndida efervescência filosófica e agudeza espiritual.
Após o Renascimento, que, como dizia jocosamente G. K. Chesterton, foi a morte de muitas coisas boas, o embate filosófico ganha novos contornos, bem mais acirrados, entre as posições antagônicas em cena. Agora, de um lado está a Cristandade em lento declínio filosófico e teológico, desde a escolástica tardia — que havia preparado, com grande sofisticação, o giro antropocêntrico da modernidade, a partir de Duns Scot [6] e Guilherme de Ockham —, e de outro a nova visão de mundo de um humanismo que se quer autônomo em relação a Deus e, a fortiori, à religião. Neste cabo-de-guerra civilizacional, acaba por prevalecer o espírito moderno que, alguns séculos depois, engendrará o Estado laico e as democracias liberais paridas na Revolução Francesa. Na perspectiva católica, trata-se de um espírito de retrocesso e apostasia, de uma brutal reação da carne às duras exigências do espírito, como afirma o Pe. Álvaro Calderón, um dos maiores teólogos da atualidade, no livro A Candeia Debaixo do Alqueire. [7]
O fato é que, no largo período histórico que vai de Descartes até o final do século XX, com episódicos lampejos geniais a filosofia vai materializando-se em obras de pensadores que constroem as suas teses atacando tudo o que foi produzido até então. É verdadeiramente impressionante como o novo sestro de erigir destruindo passa a caracterizar o modo do filosofar humanista, refletido num pensar fragmentário e na divisão — muitas vezes problemática — entre os saberes. Não se trata mais de um simples combate entre posições contrapostas, como até então ocorrera, mas de uma tentativa de reconstrução total que implode sem dó nem piedade um tesouro filosófico acumulado ao longo de milênios, não obstante resgatando aqui e ali as teses que parecem dar força ao novo homem forjado pela modernidade, confiante na ciência e no progresso material e cada vez mais fechado à transcendência.
[1] Em vários artigos da presente obra se fará menção ao conceito de “sobrenatural”, tão importante para a teologia de Tomás de Aquino.
[2] “(...) sed cognitio nostra est adeo debilis quod nullus philosophus potuit unquam perfecte investigare naturam unius muscae”. Santo Tomás de Aquino, Expositio in Symbolum Apostolorum, Proêmio.
[3] Nem mesmo na visão beatífica da essência divina, de acordo com Tomás de Aquino, os bem-aventurados lograrão o conhecimento completo, exaustivo, do ser. Isto porque a respeito de Deus, que é o Próprio Ser, nenhum homem pode chegar a conhecer tudo; somente um intelecto infinito em ato poderia conhecer totalmente o Ato Puro infinito do Ser divino — daí concluir-se que só mesmo Deus pode conhecer-Se com perfeição; só Ele pode saber absolutamente tudo, ao passo que o intelecto humano é mera potência para os inteligíveis.
[4] O conceito de participação tem origem platônica e foi aperfeiçoado por Santo Tomás de Aquino, que fez uma original síntese dele com a metafísica aristotélica do ato e da potência. À rica noção de participação recorremos em diferentes artigos que se seguirão.
[5] No calor desta famosa disputa, Bernardo de Claraval escreveu As Heresias de Pedro Abelardo (Hæresum Petri Abælardi), obra em que enumera, uma a uma, as teses de Abelardo contrárias a um grande conjunto de verdades de fé, usando para isto de seu poderoso poder de persuasão, fundado em uma límpida lógica argumentativa e na retórica demolidora de sua pena.
[6] A influência de Duns Scot sobre a filosofia moderna e contemporânea, por exemplo, é imensa — embora pouco conhecida. No artigo da presente coletânea intitulado Duns Scot, o ancestral da modernidade, são elencadas algumas teses deste metafísico do século XIV que, direta ou indiretamente, forjaram muitas filosofias dos séculos que se lhe seguiram.
[7] Obra editada no Brasil pelo Instituto Angelicum, em parceria com o Mosteiro da Santa Cruz, de Friburgo (RJ) e a editora Sétimo Selo.