quinta-feira, 30 de julho de 2009

Corte e costura e ainda a Encíclica "Caritas in Veritate" (I)

Carlos Nougué
Quando querem demonstrar-se tomistas da mais pura ortodoxia, os humanistas integrais ao estilo de Jacques Maritain se aplicam com afinco e arte a um corte e costura da obra do Aquinate... corrijo-me: sempre com afinco, mas nem sempre com arte, porque não raro é muito fácil desfazer-lhes a costura e exibir o corte.

Vejamos um exemplo clássico (e que verdadeiramente surpreende por seu longevo vigor): o uso e abuso da passagem de Santo Tomás na Suma, II-II, q. 10, a. 10 (“Se podem os infiéis ter governo [praelationem] e domínio sobre os fiéis”), corpus, onde se lê: “Ius divinum, quod est ex gratia, non tollit ius humanum, quod est ex naturali ratione” (“O direito divino, que vem da graça, não suprime o direito humano, que vem da razão natural”). Vejamos o que diz com respeito a essa passagem Charles Journet, justamente o principal parceiro de Jacques Maritain (e considerado por muitos e por muito tempo como da mais estrita observância tomista). E, vendo-o, como escreve o Padre Calderón num de seus livros, “é difícil pensar que Journet o diga sem plena advertência de estar falseando o pensamento do Doutor Angélico”.

Com efeito, em sua obra La Juridiction de l’Eglise sur la Cité (Desclée, Paris 1931), o então futuro Cardeal afirma que o que se lê naquela passagem de Santo Tomás é o “princípio supremo” da política cristã. “Deste princípio supremo, cujas conseqüências são incalculáveis, deduz-se imediatamente que, sendo a Igreja de direito divino e as diferentes formas da sociedade civil de direito humano, a Igreja e a Cidade [esta também com maiúscula, como convém a um humanismo] serão ao mesmo tempo distintas e ordenadas entre si, como o são a natureza e a graça. Os dois princípios próximos da política cristã são a distinção entre a Igreja e a Cidade, e a subordinação da segunda à primeira” (pp.26-27). Mas de que distinção e de que subordinação se trata? Em primeiro lugar, a distinção: “Deve-se chamar temporal, com todos os teólogos [sic], ao que é ordenado, como a seu fim imediato e primeiro, ao bem comum (material e moral) da cidade terrestre, bem que concerne substancialmente à ordem natural […]. E deve-se chamar espiritual, com os teólogos, ao que é ordenado como a seu fim imediato e primeiro ao bem comum sobrenatural da Igreja” (ibid., pp. 28-29) Donde, em segundo lugar, este tipo preciso de “subordinação” do material ao espiritual: se a cidade tem uma “soberania essencial” nas coisas temporais, terá uma “subordinação acidental” com respeito à Igreja (cf. Padre Calderón), “na medida em que as coisas de que [o poder político] se ocupa, e que são regularmente temporais, vêm a ser ocasionalmente espirituais” (Journet, ibid., pp. 70-72); razão por que “o fim da Igreja, longe de englobar o fim do Estado, permanece absolutamente distinto” (idem, p. 75).

Mais ainda: quanto ao citado texto da Suma, afirma Journet que é um “principio fundamental de Santo Tomás como expressão” nada menos que “do pensamento tradicional da Igreja” (ibid., p. 40).

Aqui digamos apenas, en passant: primeiro, que, como diz ainda o Padre Calderón, o que é subordinação acidental não é, em verdade, subordinação propriamente dita, que per se sempre será essencial: afinal, “também o Papa está subordinado acidentalmente a seu dentista!” ; segundo, que nem pela melhor costura do mundo tal princípio é “expressão do pensamento tradicional da Igreja”, como já o veremos. Mas será pelo menos um “princípio fundamental de Santo Tomás”?

Como o poderia ser, se à referida passagem de II-II, q. 10, a.10, se segue imediatamente (insista-se: imediatamente, como próximas frases do mesmo parágrafo ou corpus!) o seguinte: “Por isso, a distinção entre fiéis e infiéis, considerada em si mesma, não suprime o domínio ou governo dos infiéis sobre os fiéis. No entanto [ATENÇÃO!], o direito de domínio ou governo pode ser suprimido por uma sentença ou ordem da Igreja, [ATENÇÃO!!] cuja autoridade vem de Deus, porque [ATENÇÃO!!!] os infiéis, em razão de sua infidelidade, merecem perder o poder [potestatem] sobre os fiéis, [ATENÇÃO!!!!] que se transformam em filhos de Deus”?

Como o poderia ser, se, do alto de seu inigualável realismo e bom senso, diz o Aquinate (na mesma questão, ad 1) “que o governo [praelatio] de César preexistia à distinção entre fiéis e infiéis e não cessava com a conversão de alguns à fé”, e que, mais que isso, “era útil alguns fiéis terem lugar na casa do Imperador para a defesa de outros fiéis. Assim, o bem-aventurado Sebastião, enquanto via os cristãos desfalecer em seus tormentos, confortava-os, continuando, oculto sob a clâmide militar, a fazer parte da família de Diocleciano”?

Como o poderia ser, se, por fim, também diz o Aquinate (na mesma questão, ad 3) “que os escravos estão sujeitos a seus senhores por toda a vida, e os súditos a seus superiores; mas os ajudantes dos artífices lhe estão sujeitos [somente] para determinados trabalhos. Portanto, é mais perigoso que os infiéis recebam domínio ou governo sobre os fiéis do que uma colaboração em algum serviço especial. [...] Salomão também pediu ao rei de Tiro mestres-de-obras para que cortassem madeira, como se lê em III Reis, V, 6. ― E, no entanto, se de tal comunhão ou convivência se temer a ruína dos fiéis, deve ela ser totalmente proibida”?

Por não ser nosso objetivo neste artigo, como de fato não é, demonstrar exaustivamente a justiça e verdade do verdadeiro “princípio fundamental” de Santo Tomás, que efetivamente expressa, como já o veremos, “o pensamento tradicional da Igreja” a este respeito, basta tal mostra, de per si evidente, do corte e costura feito com pouquíssima arte pelo então futuro Cardeal Charles Journet (e fonte de que beberá Maritain para tomar o caminho do “humanismo integral”). Nosso objetivo aqui, porém, tem efetiva e diretamente que ver com a péssima arte desses homens que, não obstante, eram mentes poderosas e realmente lidas, estudadas; e que por isto mesmo foram capazes de nefastamente influenciar uma multidão de pequenos costureiros da realidade nem de longe talentosos, lidos e estudados como eles, mas que hoje pululam nos media, tesoura e linha na mão, a alinhavar de modo ainda mais bisonho os textos alheios ― e quase sempre a se considerar ou dizer tomistas e católicos da mais pura ortodoxia. E chega a tal ponto a vertigem, que vemos até não católicos brandir não só o referido “princípio fundamental” de Santo Tomás, mas também o próprio “pensamento tradicional da Igreja” a respeito das relações entre poder espiritual e poder temporal... E tal triste espetáculo, com efeito, o vimos renovar-se por ocasião da última encíclica do Papa Bento XVI, Caritas in Veritate.

Com efeito, uma multidão de liberais não-católicos, católicos liberais, católicos humanistas e humanistas nada católicos ― entre os quais tentar estabelecer fronteiras nítidas seria uma empresa, para parafrasear Aristóteles, para um deus ou uma besta... ― se dividiu, com relação à referida encíclica, em dois campos principais. (Naturalmente, excluímos dessa multidão tanto os que criticaram a encíclica do ângulo do magistério infalível e de Santo Tomás quanto os que, sendo embora católicos tradicionais, não quiseram ver nela o que porém é mais que patente.)

1) Um, contrário a ela, pelo argumento de que um governo ou uma liderança mundial, como proposta por Bento XVI na encíclica, contrariaria a sacrossanta liberdade da pessoa humana e dos povos, razão por que, ainda segundo este campo, iria contra alguns princípios católicos mais profundos, e de passagem feriria os direitos da Igreja. Como veremos, este grupo recorta, além da verdadeira doutrina católica sobre a liberdade, sobre o direito divino positivo e sobre as relações entre poder espiritual e poder temporal, o Apocalipse joanino ― para dos retalhos fazer uma colcha de nítido fundo liberal “ortodoxo”.

2) O outro, favorável a ela, pelo argumento de que tal governo ou liderança mundial proposta por Bento XVI não só absolutamente não contrariaria a sacrossanta liberdade da pessoa humana e dos povos, mas de modo particular absolutamente não iria contra os princípios católicos das relações entre Igreja e Estado nem, de modo algum, feriria os direitos da Igreja. Como veremos, este campo recorta, além da verdadeira doutrina católica sobre a liberdade e sobre o direito divino positivo, a doutrina do magistério infalível sobre as relações entre poder eclesiástico e poder civil (valendo-se, em particular, para seu afã recortador, de documentos ou pronunciamentos de Bento XV e de Pio XII), e identifica a doutrina de Santo Tomás a respeito desta matéria com a de pretensos seguidores seus, em especial: Dante Alighieri (1265-1321) e seu De Monarchia; o dominicano espanhol Francisco de Vitória (1483-1512); e o teólogo jesuíta, também espanhol, Francisco Suárez (1548-1617) ― para dos retalhos fazer uma colcha de nítido caráter humanista integral e vaticano-segundo.

De fato, esta última posição é caudatária da Constituição Pastoral Gaudium et spes, onde se lê: “Enquanto houver risco de guerra e faltar uma autoridade internacional competente e munida de meios eficazes, uma vez esgotados todos os recursos pacíficos da diplomacia, não se poderá negar o direito de legítima defesa aos governos” (GS 79); “Devemos procurar com todas as nossas forças preparar uma época em que, por acordo das nações, possa ser absolutamente proibida qualquer guerra. Isto requer o estabelecimento de uma autoridade pública universal reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos direitos” (GS 82). Pois bem, como diz o Padre Calderón, “por necessidade teológica, a única autoridade com poder eficaz para impedir as guerras que não seja a do Vigário de Cristo será a do Anticristo. Prezado Leitor, não estamos fazendo apocalipse-ficção! Se não é o Príncipe da Paz quem estabelece a ordem da justiça entre os povos por meio dos poderes que lhe comunicou seu Vigário, será o Príncipe das trevas quem o fará por meio dos poderes que lhe fornecer seu primogênito, o Anticristo. São as forças que há em jogo, e não é possível outra coisa. O Concílio Vaticano II tende a preparar com todas as suas forças a instauração não do Reino de Deus, mas do Reino do Inimigo!”. Verdadeiramente, a paz e a cooperação internacionais ou se darão sob as bandeiras da Realeza de Nosso Senhor, ou sob o pavilhão de Satanás.

Mas o que realmente importa segundo o escopo deste artigo não é propriamente demonstrar a maldade intrínseca desta posição nem da sua “contrária”, ou melhor, da referida anteriormente a ela, porque em verdade as duas têm muitíssimos pontos e um trasfondo ou substância comuns. O que realmente importa aqui, no pequeno âmbito deste artigo, é demonstrar até que ponto vai o atrevimento desses costureiros da realidade em sua arte pífia e nada lisa. É o que faremos em seguida.

(Continua.)

Em tempo 1: O fato de tal arte não ser nada lisa independe da ciência atual que seus cultores tenham de tal falta de lisura. Afinal, a ignorância não só pode ser causa de pecado, mas pode ter razão de culpa e pois ser ela mesma pecado (cf. Santo Tomás de Aquino, De malo, q. 3, aa. 6-7).

Em tempo 2: Continuar-se-á este artigo na próxima semana, após o retorno de uma viagem.