Carlos Nougué
Com efeito, tanto qualquer indivíduo como qualquer família, tanto qualquer personagem ilustre como qualquer grande evento, tanto qualquer sociedade como qualquer regime político, todos e tudo só têm sentido providencial, e por conseguinte existência histórica, pelas relações que mantêm com a história religiosa. Fora do governo da Providência, que os produz e dirige, tanto os homens como os eventos não passam de complicação ininteligível, de absurdidade hermética, algo sem razão porque, em si, não tem fim nenhum. Mas dizer história religiosa é dizer, contrariamente ao que quer fazer crer o liberalismo ou o modernismo, a história do Paraíso e a subseqüente história da salvação. Ou seja, a história sacra ou santa. A história das religiões que se afastam dela se define, precisamente, por esse afastamento, mas tampouco escapa às grandes linhas reitoras do desígnio eterno de Deus, e compreender a ordem global da Providência é compreender a precisa correspondência entre a preparação e o desdobramento do Evangelho.
Que dizer, então, das relações entre a história sacra e a história eclesiástica? Mesclar-se-ia esta com uma pretensa história autônoma da sociedade e não com a história do Corpo Místico de Cristo, visto serem os seus atores homens “de carne e osso” como quaisquer atores da marcha total da humanidade? De modo algum, embora seja verdade que se misturam sempre, em maior ou menor grau de atração ou rejeição, aqueles atores com estes — é que ainda esta mistura obedece ao desenho da Providência. Ora, deve-se considerar antes de tudo, com respeito à história eclesiástica, o nascimento, o crescimento, a conservação miraculosa da Igreja Católica, e de modo especial o seu mesmo desenvolvimento interno, enquanto se deve considerar antes de tudo, com respeito à história política ou social ou civil, a própria Igreja em sua ação externa sobre as nações e as civilizações, sobre os próprios fiéis, mas também sobre os infiéis, considerando igualmente o seu maior ou menor grau de atração ou rejeição a ela. Tal ação da Igreja, tal ação de Deus mediante a Igreja explica todos os fatos da marcha global da humanidade, antes (ao modo de preparação) e depois de Cristo, incluída a chamada história moderna, com a sua progressiva emancipação do poder espiritual da Igreja. Há, sim, é claro, além da ação do Cristianismo, outras ações que influem sobre os povos; mas, como tais ações não fazem senão desenvolver a potência divina da Igreja, seja pela sua colaboração, seja pela sua contraposição, tudo se reduz, afinal, à ação da mesma Igreja, com respeito à qual, como já se disse, “tudo é meio, até o próprio obstáculo”.
Recapitulemos o que em essência se disse até aqui. No fundo, não há senão uma história, a história da humanidade sob o governo de Deus, na qual se insere inextricavelmente a história artística, a história científica, a história política, a história militar, a história econômica. Todas estas partem daquela, e a ela retornam. Naturalmente, há neste indissociável conjunto épocas principais e épocas secundárias, partes integrantes e partes acessórias, elementos de destacar e elementos de esquecer; mas não só o todo como estas mesmas épocas, partes e elementos se tornariam ininteligíveis sem o estreito vínculo destes àquele, sem o estreito laço de Deus que faz com que estes elementos sejam inextricavelmente solidários àquele todo sem perder, porém, o seu próprio caráter de parcialidade. O homem, a nossa falível inteligência não pode operar sem distinguir, porque, ao contrário da inteligência angélica, não lhe é dado compreender nem penetrar nada com exatidão e profundidade num só, digamos assim, “lance de vista”. Daí o necessário fracionamento da história global em histórias parciais. Mas, insistamos, tais frações da história universal não têm independência simpliciter, e são parte integrante, ainda que desmembrável, de um todo superior: o da história religiosa, da história do governo de Deus sobre os homens, da história, enfim, da Igreja.
Ora, tal asserção é o que nos permite uma terceira aproximação da história: ela é a história do gênero humano enquanto constituído e conservado por Deus, primeiramente e ao modo de preparação, no seio do povo eleito e, depois e ao modo de consumação, no seio da Igreja Católica. Por conseguinte, pode-se dizer que a própria matéria da história é obra direta de Deus no plano fugitivo da duração, dos tempos, dos séculos, donde ser imperioso estudar a história, como já se disse, do ângulo do Divino, do ângulo do desenho da Providência; é preciso procurar e perscrutar a ação do Altíssimo sobre os elementos e eventos humanos, constatar-lhe e interpretar-lhe as conseqüências. Cabe ao estudioso da história, muitíssimo mais que perseguir os desígnios e iniciativas humanos, fazê-lo com respeito aos desígnios e iniciativas divinos. É a seiva divina, como já se disse, o que vivifica todas as coisas. Ser historiador não pode significar senão tornar-se humilde intérprete da obra do Senhor dos exércitos.
E reconhecê-lo, reconhecer não só que há preeminência absoluta de Deus sobre os homens e dos Seus desígnios e iniciativas sobre os destes, mas também que os desígnios e iniciativas do Criador se fazem normalmente mediante os desígnios e iniciativas dos mesmos homens, leva-nos à derradeira e cabal definição da história: sendo a história do governo de Deus sobre os homens, ela é o conjunto dos eventos sociais humanos que, tanto nos tempos como nos espaços, cumpre a Providência através do livre-arbítrio do homem, antes de tudo para a maior glória do próprio Senhor, e depois para a consecução dos destinos sobrenaturais da humanidade.
(Continua.)
Com efeito, tanto qualquer indivíduo como qualquer família, tanto qualquer personagem ilustre como qualquer grande evento, tanto qualquer sociedade como qualquer regime político, todos e tudo só têm sentido providencial, e por conseguinte existência histórica, pelas relações que mantêm com a história religiosa. Fora do governo da Providência, que os produz e dirige, tanto os homens como os eventos não passam de complicação ininteligível, de absurdidade hermética, algo sem razão porque, em si, não tem fim nenhum. Mas dizer história religiosa é dizer, contrariamente ao que quer fazer crer o liberalismo ou o modernismo, a história do Paraíso e a subseqüente história da salvação. Ou seja, a história sacra ou santa. A história das religiões que se afastam dela se define, precisamente, por esse afastamento, mas tampouco escapa às grandes linhas reitoras do desígnio eterno de Deus, e compreender a ordem global da Providência é compreender a precisa correspondência entre a preparação e o desdobramento do Evangelho.
Que dizer, então, das relações entre a história sacra e a história eclesiástica? Mesclar-se-ia esta com uma pretensa história autônoma da sociedade e não com a história do Corpo Místico de Cristo, visto serem os seus atores homens “de carne e osso” como quaisquer atores da marcha total da humanidade? De modo algum, embora seja verdade que se misturam sempre, em maior ou menor grau de atração ou rejeição, aqueles atores com estes — é que ainda esta mistura obedece ao desenho da Providência. Ora, deve-se considerar antes de tudo, com respeito à história eclesiástica, o nascimento, o crescimento, a conservação miraculosa da Igreja Católica, e de modo especial o seu mesmo desenvolvimento interno, enquanto se deve considerar antes de tudo, com respeito à história política ou social ou civil, a própria Igreja em sua ação externa sobre as nações e as civilizações, sobre os próprios fiéis, mas também sobre os infiéis, considerando igualmente o seu maior ou menor grau de atração ou rejeição a ela. Tal ação da Igreja, tal ação de Deus mediante a Igreja explica todos os fatos da marcha global da humanidade, antes (ao modo de preparação) e depois de Cristo, incluída a chamada história moderna, com a sua progressiva emancipação do poder espiritual da Igreja. Há, sim, é claro, além da ação do Cristianismo, outras ações que influem sobre os povos; mas, como tais ações não fazem senão desenvolver a potência divina da Igreja, seja pela sua colaboração, seja pela sua contraposição, tudo se reduz, afinal, à ação da mesma Igreja, com respeito à qual, como já se disse, “tudo é meio, até o próprio obstáculo”.
Recapitulemos o que em essência se disse até aqui. No fundo, não há senão uma história, a história da humanidade sob o governo de Deus, na qual se insere inextricavelmente a história artística, a história científica, a história política, a história militar, a história econômica. Todas estas partem daquela, e a ela retornam. Naturalmente, há neste indissociável conjunto épocas principais e épocas secundárias, partes integrantes e partes acessórias, elementos de destacar e elementos de esquecer; mas não só o todo como estas mesmas épocas, partes e elementos se tornariam ininteligíveis sem o estreito vínculo destes àquele, sem o estreito laço de Deus que faz com que estes elementos sejam inextricavelmente solidários àquele todo sem perder, porém, o seu próprio caráter de parcialidade. O homem, a nossa falível inteligência não pode operar sem distinguir, porque, ao contrário da inteligência angélica, não lhe é dado compreender nem penetrar nada com exatidão e profundidade num só, digamos assim, “lance de vista”. Daí o necessário fracionamento da história global em histórias parciais. Mas, insistamos, tais frações da história universal não têm independência simpliciter, e são parte integrante, ainda que desmembrável, de um todo superior: o da história religiosa, da história do governo de Deus sobre os homens, da história, enfim, da Igreja.
Ora, tal asserção é o que nos permite uma terceira aproximação da história: ela é a história do gênero humano enquanto constituído e conservado por Deus, primeiramente e ao modo de preparação, no seio do povo eleito e, depois e ao modo de consumação, no seio da Igreja Católica. Por conseguinte, pode-se dizer que a própria matéria da história é obra direta de Deus no plano fugitivo da duração, dos tempos, dos séculos, donde ser imperioso estudar a história, como já se disse, do ângulo do Divino, do ângulo do desenho da Providência; é preciso procurar e perscrutar a ação do Altíssimo sobre os elementos e eventos humanos, constatar-lhe e interpretar-lhe as conseqüências. Cabe ao estudioso da história, muitíssimo mais que perseguir os desígnios e iniciativas humanos, fazê-lo com respeito aos desígnios e iniciativas divinos. É a seiva divina, como já se disse, o que vivifica todas as coisas. Ser historiador não pode significar senão tornar-se humilde intérprete da obra do Senhor dos exércitos.
E reconhecê-lo, reconhecer não só que há preeminência absoluta de Deus sobre os homens e dos Seus desígnios e iniciativas sobre os destes, mas também que os desígnios e iniciativas do Criador se fazem normalmente mediante os desígnios e iniciativas dos mesmos homens, leva-nos à derradeira e cabal definição da história: sendo a história do governo de Deus sobre os homens, ela é o conjunto dos eventos sociais humanos que, tanto nos tempos como nos espaços, cumpre a Providência através do livre-arbítrio do homem, antes de tudo para a maior glória do próprio Senhor, e depois para a consecução dos destinos sobrenaturais da humanidade.
(Continua.)