Carlos Nougué
Com a queda do Império Romano pelas hordas bárbaras, o latim entrou naquilo que em lingüística se costumou chamar deriva: já sem a civilização que lhe era a alma, tornou-se como um “cadáver”, que logo “se putrefaria” e desfaria numa multidão de dialetos cada vez mais distantes entre si, quer pela assimilação diversamente imperfeita do latim pelas várias tribos invasoras, quer pela influência das línguas destas sobre os falantes do idioma itálico.
Já no século VI, mais ou menos cem anos após aquela queda, chegava a desculpar-se o grande São Gregório de Tours, galo-romano, por seu mau latim. E, se foram precisamente as ordens monásticas e seus copistas que salvaram não só a língua latina, mas a própria herança literário-filosófica da Antiguidade clássica, o latim medieval, porém, tornar-se-ia uma espécie de “língua franca”. Seria usado na liturgia, nos documentos eclesiásticos e nas escolas (e, é claro, nas obras filosóficas e teológicas), mas em âmbito local cada um acabaria por falar o dialeto materno. É assim que Santo Tomás de Aquino se valerá da língua do Lácio no altar, nas cátedras universitárias e em suas obras escritas, mas usará o napolitano no lar e em toda a sua terra natal.
Será verdade, porém, como se diz largamente desde o Humanismo e a Renascença, que o latim escolástico, e em particular o do Aquinate, é bárbaro, pobre, sem brilho? Será ele inferior ao latim clássico de Cícero e Virgílio, ao latim imperial de Sêneca e Tácito, ao latim cristão de São Jerônimo e Santo Agostinho? Será, enfim, uma língua morta? Restrinjamo-nos ao latim do próprio Santo Tomás para provar o absurdo da pretensão.
Antes de tudo, Santo Tomás é autor de algumas das mais belas orações latinas jamais escritas: tão bem escritas, tão belas, tão perfeitamente poéticas, que sua tradução é, em termos estritos, praticamente impossível. Tomemos como exemplo Adoro te devote, cuja autoria a tradição nunca hesitou em atribuir ao Aquinate. (Transcrevemo-la usando acentos agudos para indicar a vogal tônica, os quais não necessariamente indicam som aberto. Ademais, lembre-se que em latim nunca houve acentos gráficos):
1. Adóro te devóte, látens Déitas,
Quae sub his figúris vére látitas;
Tíbi se cor méum tótum súbjicit,
Quía te contémplans tótum déficit.
2. Vísus, táctus, gústus in te fállitur,
Sed audítu sólo túto credítur:
Crédo quídquid díxit Dei Fílius;
Nil hoc vérbo veritátis vérius.
3. In crúce latébat sóla Déitas,
At hic látet símul et humánitas:
Ámbo támen crédens átque cónfitens,
Péto quod petívit látro paénitens.
4. Plágas, sícut Thómas, non intúeor
Deus támen méum te confíteor;
Fac me tíbi sémper mágis crédere,
In te spem habére, te dilígere.
5. O memoriále mórtis Dómini,
Pánis vívus vítam praéstans hómini,
Praésta méae ménti de te vívere,
Et te ílli sémper dúlce sápere.
6. Pie pellicáne Jésu Dómine,
Me immúndum múnda túo sánguine,
Cújus una stílla sálvum fácere
Tótum múndum quit ab ómni scélere.
7. Jésu, quem velátum nunc aspício,
Óro fíat íllud quod tam sítio:
Ut te reveláta cérnens fácie,
Vísu sim beátus túae glóriae. Ámem.
Eis uma tradução dela ad litteram.
1. Adoro-vos devotamente, Divindade oculta,
Verdadeiramente escondida sob estas figuras;
A Vós meu coração se submete por inteiro,
Porque, contemplando-vos, tudo desfalece.
2. A vista, o tato, o gosto falham quanto a Vós,
Mas basta-me ouvir-vos para crer em tudo:
Creio em tudo quanto disse o Filho de Deus;
Nada mais verdadeiro que esta palavra de verdade.
3. Na cruz, ocultava-se apenas a vossa Divindade,
Mas aqui se oculta também a vossa humanidade:
Eu, porém, crendo em ambas e professando-as,
Peço o mesmo que pediu o ladrão arrependido.
4. Não fito, como Tomé, as vossas chagas,
Mas confesso-vos, meu Senhor e meu Deus;
Faça com que cada vez mais eu creia em Vós,
E em Vós espere, e a Vós vos ame.
5. Ó memorial da morte do Senhor,
Pão vivo que dá vida aos homens,
Fazei com que meu espírito viva de Vós
E lhe seja sempre doce este saber.
6. Piedoso pelicano,* Senhor Jesus,
Lavai-me a mim, que sou imundo, em vosso sangue,
Do qual uma só gota pode limpar
De toda iniqüidade o mundo inteiro.
7. Ó Jesus, que velado agora vejo,
Peço se cumpra isto que tanto desejo:
Ante a vossa face claramente revelada,
Ter a beatitude de ver a vossa glória. Amém
* Considerava-se o pelicano um animal especialmente zeloso com seu filhote, a ponto de, não tendo nada mais com que alimentá-lo, dar-lhe de beber seu próprio sangue. Por isso tornou-se um símbolo de Cristo, de seu Sacrifício na Cruz e de seu Sacrifício sacramental.
(Continua.)
Com a queda do Império Romano pelas hordas bárbaras, o latim entrou naquilo que em lingüística se costumou chamar deriva: já sem a civilização que lhe era a alma, tornou-se como um “cadáver”, que logo “se putrefaria” e desfaria numa multidão de dialetos cada vez mais distantes entre si, quer pela assimilação diversamente imperfeita do latim pelas várias tribos invasoras, quer pela influência das línguas destas sobre os falantes do idioma itálico.
Já no século VI, mais ou menos cem anos após aquela queda, chegava a desculpar-se o grande São Gregório de Tours, galo-romano, por seu mau latim. E, se foram precisamente as ordens monásticas e seus copistas que salvaram não só a língua latina, mas a própria herança literário-filosófica da Antiguidade clássica, o latim medieval, porém, tornar-se-ia uma espécie de “língua franca”. Seria usado na liturgia, nos documentos eclesiásticos e nas escolas (e, é claro, nas obras filosóficas e teológicas), mas em âmbito local cada um acabaria por falar o dialeto materno. É assim que Santo Tomás de Aquino se valerá da língua do Lácio no altar, nas cátedras universitárias e em suas obras escritas, mas usará o napolitano no lar e em toda a sua terra natal.
Será verdade, porém, como se diz largamente desde o Humanismo e a Renascença, que o latim escolástico, e em particular o do Aquinate, é bárbaro, pobre, sem brilho? Será ele inferior ao latim clássico de Cícero e Virgílio, ao latim imperial de Sêneca e Tácito, ao latim cristão de São Jerônimo e Santo Agostinho? Será, enfim, uma língua morta? Restrinjamo-nos ao latim do próprio Santo Tomás para provar o absurdo da pretensão.
Antes de tudo, Santo Tomás é autor de algumas das mais belas orações latinas jamais escritas: tão bem escritas, tão belas, tão perfeitamente poéticas, que sua tradução é, em termos estritos, praticamente impossível. Tomemos como exemplo Adoro te devote, cuja autoria a tradição nunca hesitou em atribuir ao Aquinate. (Transcrevemo-la usando acentos agudos para indicar a vogal tônica, os quais não necessariamente indicam som aberto. Ademais, lembre-se que em latim nunca houve acentos gráficos):
1. Adóro te devóte, látens Déitas,
Quae sub his figúris vére látitas;
Tíbi se cor méum tótum súbjicit,
Quía te contémplans tótum déficit.
2. Vísus, táctus, gústus in te fállitur,
Sed audítu sólo túto credítur:
Crédo quídquid díxit Dei Fílius;
Nil hoc vérbo veritátis vérius.
3. In crúce latébat sóla Déitas,
At hic látet símul et humánitas:
Ámbo támen crédens átque cónfitens,
Péto quod petívit látro paénitens.
4. Plágas, sícut Thómas, non intúeor
Deus támen méum te confíteor;
Fac me tíbi sémper mágis crédere,
In te spem habére, te dilígere.
5. O memoriále mórtis Dómini,
Pánis vívus vítam praéstans hómini,
Praésta méae ménti de te vívere,
Et te ílli sémper dúlce sápere.
6. Pie pellicáne Jésu Dómine,
Me immúndum múnda túo sánguine,
Cújus una stílla sálvum fácere
Tótum múndum quit ab ómni scélere.
7. Jésu, quem velátum nunc aspício,
Óro fíat íllud quod tam sítio:
Ut te reveláta cérnens fácie,
Vísu sim beátus túae glóriae. Ámem.
Eis uma tradução dela ad litteram.
1. Adoro-vos devotamente, Divindade oculta,
Verdadeiramente escondida sob estas figuras;
A Vós meu coração se submete por inteiro,
Porque, contemplando-vos, tudo desfalece.
2. A vista, o tato, o gosto falham quanto a Vós,
Mas basta-me ouvir-vos para crer em tudo:
Creio em tudo quanto disse o Filho de Deus;
Nada mais verdadeiro que esta palavra de verdade.
3. Na cruz, ocultava-se apenas a vossa Divindade,
Mas aqui se oculta também a vossa humanidade:
Eu, porém, crendo em ambas e professando-as,
Peço o mesmo que pediu o ladrão arrependido.
4. Não fito, como Tomé, as vossas chagas,
Mas confesso-vos, meu Senhor e meu Deus;
Faça com que cada vez mais eu creia em Vós,
E em Vós espere, e a Vós vos ame.
5. Ó memorial da morte do Senhor,
Pão vivo que dá vida aos homens,
Fazei com que meu espírito viva de Vós
E lhe seja sempre doce este saber.
6. Piedoso pelicano,* Senhor Jesus,
Lavai-me a mim, que sou imundo, em vosso sangue,
Do qual uma só gota pode limpar
De toda iniqüidade o mundo inteiro.
7. Ó Jesus, que velado agora vejo,
Peço se cumpra isto que tanto desejo:
Ante a vossa face claramente revelada,
Ter a beatitude de ver a vossa glória. Amém
* Considerava-se o pelicano um animal especialmente zeloso com seu filhote, a ponto de, não tendo nada mais com que alimentá-lo, dar-lhe de beber seu próprio sangue. Por isso tornou-se um símbolo de Cristo, de seu Sacrifício na Cruz e de seu Sacrifício sacramental.
(Continua.)