sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As relações entre a inteligência e a vontade (VIII): o pecado (2)

Sidney Silveira


Fazendo o estabelecimento do texto da obra Inteligência e Pecado em S. Tomás, do português Celestino Pires, para a edição que em breve apresentaremos ao público brasileiro (corro para que seja durante o evento Santo Tomás, médico da alma), deparo uma vez mais com capítulos magníficos, desses que, ao ser relidos, sempre trazem novas luzes, como habitualmente ocorre com textos de real valor filosófico.


No denso capítulo “Natureza da ignorância ou do erro no pecado de paixão”, a partir de uma distinção de Santo Tomás entre pecado “de ignorância” (ex ignorantia) e pecado “com ignorância” (cum ignorantia) — aludida neste texto da presente série —, Celestino faz um passeio pelos modos segundo os quais a ignorância pode ser classificada propriamente como pecado ou, então, como causadora do pecado. O caso aqui abordado é bem tópico: o da ignorância ocasionada pela paixão [1], ou seja, por um movimento do apetite sensitivo capaz de fazer a inteligência não atualizar um conhecimento habitual. É literalmente quando a paixão faz o homem perder a dimensão da temporalidade e agir como que imantado pelo nunc, ou seja, aprisionado ao momento presente. Isto instaura nele uma desordem psicológica, um descentramento teleológico de suas potências anímicas, dada a perda da noção de que os atos humanos devem ordenar-se retamente uns aos outros.


Diz o Aquinate:


“Se o homem peca por causa da ignorância que lhe sobrevém quando está sob o domínio da paixão, por exemplo da concupiscência ou da ira (puta concupiscentiæ vel iræ), é bom investigar que espécie de ignorância é esta. Porque é evidente que o incontinente, antes da paixão, não julga dever fazer o que de fato faz [quando] impelido por ela”. (Tomás de Aquino, Comentário à Ética, VII, lec. 2, n. 1314).


A investigação do gênio medieval revela que este tipo de ignorância não existe antes da paixão (antequam passio superveniat), e não permanece depois que o influxo da imagem apaixonante cessa. Seja como for, em meio a uma paixão intensa o homem só consegue ver o aqui e agora. Trata-se, como diz Celestino Pires, de uma dolorosa singularização do tempo, um sentir-se premido pela hora presente querendo dar a ela uma resolução imediata — de forma tão mais violenta quanto mais a paixão afetar as potências superiores da alma. Somente quando cessa a paixão, o homem carnal — ou seja, o que habitualmente não logra ordenar os seus apetites — consegue julgar o presente com categorias de futuro, quer dizer, ter a reta estimativa dos fins de sua ação (cessante passione quae cito transit, remanet in recta aestimatione finis, diz o Aquinate noutro trecho do Comentário à Ética). Em palavras breves, o presente havia adquirido um valor de “absoluto” na consciência, e isto deixa de acontecer exatamente quando a paixão interrompe o seu influxo.


O aflitivo, se tomarmos a extraordinária psicologia de Santo Tomás como efetiva, é que as paixões nascidas de pecados espirituais (como a soberba, a inveja, o orgulho, etc.) tendem a se transformar em qualidade duradoura na alma, quase uma “segunda natureza”, nas palavras de alguns tomistas, o que indica o seguinte: neste caso, o apaixonado tende a multiplicar, contra si e contra o próximo, os atos desordenados fomentados pela paixão. Mas não por qualquer paixão, e sim pela paixão concomitante com a ignorância no ato mau, que é a que abordamos no momento.


Em breves palavras, esta redução da dimensão temporal — a qual induz o homem a tantos pecados e a concentrar patologicamente sua psique no tempo presente — provém precisamente da paixão. Entre outras coisas porque a inteligência atinge os singulares por intermédio dos sentidos, e não à-toa, neste contexto, Santo Tomás afirma que a paixão é uma faculdade do presente (“ex passione contigint quod aliquid iudicetur bonum prout nunc”), pois radica no corpo. Assim, a paixão, solicitada pela presença veemente do objeto — no caso do ódio, por exemplo, pela imagem (phantasma), em geral errônea e deformada, que o apaixonado faz da pessoa a quem odeia —, concentra toda a significação da vida no momento presente a partir dessa imagem que acossa a alma.


No que tange às relações entre a inteligência e a vontade, portanto, é possível haver um déficit nessas potências quando sucumbem à força de potências sensitivas não ordenadas retamente. No caso que no momento interessa, a paixão pode:


Ø causar a ignorância acerca dos princípios da ação humana, podendo chegar à ignorância invencível (que abordamos de passagem no texto intitulado “meandros da ignorância”);


Ø causar a ignorância sobre a aplicação do princípio universal ao caso singular concreto;


Ø causar a chamada “ignorância de circunstância”, da qual o homem não é, em princípio, culpável, na medida em que é impossível conhecer, com ciência perfeita, todas as circunstâncias da ação.


São vários os pontos em que Santo Tomás aborda o problema de como a paixão pode causar a ignorância: entre outros, no Comentário às Sentenças; no Comentário à Ética; no De Malo; e na Suma (IIª-IIª). Vejamos o que diz Celestino Pires num trecho da obra que apresentaremos em breve:


“Seguimos passo a passo o raciocínio de Santo Tomás. Primeiramente temos de distinguir vários estágios de conhecimento. Em primeiro lugar, entre ciência habitual e atual. Um geômetra, por exemplo, sabe sempre os princípios da geometria, mas nem sempre atende a eles atualmente. Possui sempre e a cada momento a ciência habitual, mas nem sempre e em cada momento a tem atualmente presente. Pode usar da sua ciência quando quiser, porque a possui; mas o geômetra não considera sempre atualmente os princípios da geometria. O mesmo pode acontecer com a ciência da ação humana. O homem pode ter a ciência habitual de todas as verdades morais, mas não atende a elas em cada momento. A distinção parece fundamental a Santo Tomás.


“Temos, pois, a primeira oposição entre a ciência habitual e ciência atual. Quem peca possui a primeira, mas não a segunda. Não é uma oposição entre ciência e ignorância no sentido rigoroso do termo. Quando a geômetra não se aplica à geometria, não a ignora; simplesmente não a usa; sabe, mas não considera: “scitur in habitu, non consideratur in actu”[2].


“A segunda distinção a fazer é entre ciência universal e ciência singular. A ação humana rege-se por princípios universais e por proposições singulares. E na ação tem mais importância o conhecimento do singular que do universal [3]. A ciência universal só move à ação mediante o conhecimento do singular: “Universalis scientia non est principium alicuius actus, nisi secundum quod applicatur ad particulare”[4]. Daqui tira Santo Tomás a conclusão de que não há inconveniente algum em que alguém possa pecar contra a ciência universal, habitual e atual, e mesmo contra a ciência singular habitual, mas não contra a ciência singular atual”.


Vale dizer que há diferentes modos de a paixão impedir a ciência do singular. Mas a que nos interessa no momento é a seguinte: por diminuição das energias da inteligência. Com efeito, as faculdades humanas radicam todas na essência mesma da alma; por conseguinte, quando a paixão é intensa, as energias da alma concentram-se no ato do apetite sensitivo e diminuem, assim, a força de atenção da inteligência. Então, o conhecimento habitual não passa a atual. Conforme diz o tomista português, Santo Tomás chama a este modo de impedir o exercício da razão de abs-tracção ou dis-tracção [5]. É claro que nem toda paixão causa esta diminuição de energias com prejuízo da inteligência ou da vontade, mas só a paixão intensa. Esta distração ou abstração explica, na psicologia tomista, que o conhecimento habitual não se atualize.


Em resumo, pela intensidade e veemência da paixão, a inteligência não considera, no ato singular, aquilo que conhece. Diz Celestino: “Embora o texto nos não diga de que conhecimento habitual se trata, temos todas as razões para pensar que é do conhecimento habitual da bondade ou malícia de determinada ação singular”.


Em ocasiões tais, a vontade — cujo apetite é sub ratione boni — laborará a partir de formas inteligíveis equivocadas e induzirá o homem toda a sorte de más escolhas, que, em linguagem teológica cristã, são chamadas pecados.


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[1]Não é demais reiterar: “paixão”, aqui, é significa o movimento do apetite sensitivo, pela imaginação de um bem ou de um mal, conforme a definição de S. João Damasceno.


[2] Mal. 3, 9, c.; Cfr. VII Ethic., I-II, 77, 2, c.




[3]“Et dicit, quod quia duo sunt modi propositionum quibus utitur ratio practica, scilicet universalis propostitio et singularis: nihil autem prohibere videtur, quod aliquis operetur praeter scientiam, qui habitu quidem cognoscit utramque propositionemm sed in actu considerat tantum universalem et non particularem. Et hoc ideo, quia operationes sunt circa singulariza. Unde si aliquis non considerat singulare, non est mirum si aliter agat”. VII Ethic. lect. 3, n. 1339.




[4] Mal. 3, 9,c.; Cfr. II Ethic. lect. 8, nn. 333-334.




[5] I-II, 77, 1, c.; I-II, 77, 2, c.; Mal. 3, 9, c.