quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Relações Igreja-Estado (IX): a política inimiga da verdade

Antígona e o funeral de Polinices


Sidney Silveira
Em Platão, Paideia e Politeia são indissociáveis. O grande filósofo grego parte da premissa de que não pode haver civilização, em sentido pleno, sem uma pedagogia realista que alcance todos os âmbitos da política — aqui entendida, antimodernamente, não como um simples jogo de poder entre homens corruptos[1]
, conforme acontece a partir de Maquiavel, mas como o conjunto das relações que propiciam à Cidade a preservação do bem comum. Sem este último, qualquer teoria política não passará de uma quimera a serviço da exacerbação dos conflitos entre indivíduos e grupos, da degradação dos costumes, da convulsão social e suas conseqüentes revoluções e contra-revoluções. Na prática, nesta Cidade em que o bem comum inexiste, a política será uma aberrante autocontradição: uma política... sem fins políticos! A menos que usemos o termo “política” com analogia de atribuição, aplicando-o elasticamente às vontades individuais. Estamos, pois, na antipólis por excelência, no enevoado e aporético submundo das idéias liberais e de seu grosseiro individualismo.


O devaneio maior de todos os tipos de liberalismo está em conceber a política, na melhor das hipóteses, como uma espécie de mediadora dos interesses conflitantes dos indivíduos, não mais que isso. Ocorre que, nesta situação, não havendo uma Verdade de ordem superior que dirima as questões fundamentais e imprima o seu caráter à sociedade, o crescimento em escala geométrica dos conflitos acabará por transformar a própria política na geradora da desordem — até o ponto de consagrar em lei os maiores absurdos, simplesmente por ser a presumível opinião da maioria. Num ambiente insalubre e pluralista como este, a política não terá nenhum vínculo, ainda que acidental, com o conceito de verdade. Ao contrário: será a política orientada pela opinião de uma maioria dispersa e confusa, manipulada por grupos organizados e economicamente poderosos, tendo por “bucha de canhão” intelectuais que se vendem por meia dúzia de patacas.


Por ser, em princípio, alheia ao conceito de verdade, essa política estimulará a partidarização e os sectarismos, até o ponto de desintegrar totalmente a ordem social. Assim, o que antes era apenas uma espécie de “neutralidade” em relação aos valores fundamentais distintivos da condição humana — e, por conseguinte, das precondições necessárias para a vida em sociedade —, acabará mostrando a sua verdadeira face: tal regime político se transformará, no transcurso de suas vicissitudes, no maior inimigo da verdade, favorecendo a ação dos demagogos que adulam a multidão (segundo Platão, obcecados pelo “amor do povo” [Demou Eros]), com o intuito de alcançar o poder e nele manter-se a qualquer custo. Quando se chega a este ponto, a aceleração centrípeta das mais contraditórias forças não terá mais como ser contida, a não ser por interveniência direta de Deus.


Quando, pois, o liberal católico defende a absoluta separação entre as ordens material-política e espiritual-religiosa, ou, em outras palavras, a separação entre o Estado e a Igreja, está defendendo a idéia de uma Cidade sem nenhuma Paideia que a conforme e preserve a sua unidade. E isto sem se dar conta de que tal proposta é absurda e irrealizável, pois não há política onde não há ordem, e não pode haver ordem onde a verdade está absolutamente ausente das discussões da comunidade à qual cabe governar e legislar — dado que emerge, apenas, como truque retórico em ocasiões de campanha, para ludibriar os mais crédulos, ou então quando a chamada opinião pública se manifesta. Mas ainda mais do que isto: o católico liberal “esquece” que essa a Verdade que ele quer ver fora de qualquer discussão pública é a fonte de todas as verdades. E é exatamente aquela que ele diz professar, a qual inclui a Cristo-Rei como senhor absoluto de todos os poderes, de acordo com a Sagrada Escritura e com o Magistério bimilenar da Igreja.


Não é como “prova” contra o católico liberal que aduzo aqui o Syllabus de Pio IX, o qual, entre outras coisas, condena a seguinte proposição (nº 55): “A Igreja deve estar separada do Estado, e o Estado da Igreja”. E nem comentarei os principais trechos de Encíclicas como a Quanto Conficiamur, do mesmo Pio IX, Una Sanctam, de Bonifácio VIII, Quas Primas, de Pio XI, ou ainda a longínqua Carta do Papa Gelásio I ao Imperador Atanásio, etc. Isto porque muitos hoje na Igreja propõem, à moda de Dante e Thomas Moore, esta separação como se fora “canônica”, contrariando milênios de Magistério. Portanto, não partimos das mesmas premissas e, por isto, estes documentos são aqui citados não como argumento de autoridade (a propósito legítima), mas apenas para lembrar-nos e remeter-nos a uma verdade: o poder espiritual pode e deve julgar o material, e, se este último se extravia — e as autoridades que poderiam contê-lo se omitem —, cabe a nós a obediência ao princípio superior, pois leis iníquas não são propriamente leis e, por isto, não estamos obrigados a obedecê-las ou lhes dar a nossa anuência. Cabe a nós uma santa desobediência, semelhante à de Antígona, que na famosa peça do mesmo nome é condenada à morte por violar uma ordem do rei Creonte, de Tebas, para não infringir um preceito intocável, divino, superior ao poder temporal.


Como afirma brilhantemente o meu querido amigo Carlos Nougué, na apresentação ao livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás (citado em nota de rodapé no presente texto), “trata-se, em verdade, da encruzilhada em que desde sempre se viu o homem: ou a permanente exposição a uma tirania brotada de suas próprias debilidades e limitações, ou a submissão a uma ordem maior, objetiva, fonte perene do bem e do justo. Como já o dizia Antígona”.


Em resumo: ou a política neste mundo se orienta pela fonte divina, inexaurível, do bem e da verdade, e caminha positivamente apesar de todas as imperfeições humanas (e, acrescentaríamos nós, cristãos, da nódoa do pecado original), ou se transformará num espectro de hediondez sem igual, fazendo da maldade a lei.

Tertium non datur.


Em tempo: Observe-se que não cito aqui o conceito de “liberdade”, pois uma sociedade saudável não pode ter a liberdade política como finalidade, mas apenas como instrumento, meio, veículo para atualização dos atos propriamente humanos.
Em tempo2: Nada mais absurdo, para um liberal, do que o seguinte relato do historiador Máximo Valério: os romanos preferiam ser pobres num império rico, a ser ricos num império pobre. E o preferiam justamente porque o bem comum da Cidade era para eles algo superior aos bens individuais. Quando lemos isto nos advém a certeza de que a política, em seu sentido verdadeiro, acabou. Morreu. Estiolou-se. Perdeu-se decisivamente quando o liberalismo ganhou o mundo e minou a idéia de bem comum, transformando-a numa espécie abstração irrealizável.

[1] No estupendo livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, lembra-nos com muito acerto o filósofo Jorge Martínez Barrera que, depois de Maquiavel, abusou-se imensamente da categoria hermenêutica do “poder” para a análise das coisas políticas. Isto já se dá num horizonte em que a idéia de bem comum perdeu-se decisivamente. Com o liberalismo, tal perda estará totalmente sedimentada.