quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Platão e a tirania política da "doxa"

Sidney Silveira
Num texto publicado no blog em junho de 2008, intitulado Raízes anti-religiosas do liberalismo, citávamos o insuspeito José Guilherme Merquior, que dizia o seguinte: o liberalismo só se tornou historicamente possível, no terreno ético-político, em razão do colapso da noção cristã de Summum Bonum, o que gerou o individualismo moderno com todas as suas venenosas conseqüências, e entre elas a mais funesta — a perda da idéia de bem comum político. No mesmo texto, afirmávamos que a desconfiança em todas as instâncias do poder, que os liberais clássicos herdaram de Locke e Montesquieu, nasce de sua visão monolítica do poder público como um lugar de desmandos, violência e coerção das liberdades individuais.

Em resumo, o contratualismo liberal é filho de uma visão deturpada da natureza humana, pois parte da pressuposição de que os interesses individuais são a única coisa capaz de fazer com que uma pessoa concorde com as leis; e que os homens sempre cometeriam injustiças para tirar proveito das situações, se tivessem oportunidade para tanto. Ora, esta é justamente uma das opiniões (doxai) que Platão coloca como responsáveis pela corrupção da sociedade. Na República, quando os jovens Glauco e Adimanto, oprimidos pelos erros que a pólis desordenada tenta impingir-lhes por todos os lados, pedem a Sócrates que esclareça alguns pontos fundamentais, são enumeradas as três principais doxai que precisam ser refutadas, para o bem de todos. E uma delas é, justamente, a idéia de que, quando os homens praticam a justiça, o fazem com relutância e por necessidade, e não porque a justiça seja um bem.

Prosseguindo a minha leitura de Ordem e História, de Eric Voegelin, com muita satisfação deparo-me com a afirmação de que o contratualismo — sem dúvida, um câncer liberal — é uma das doxai modernas. No caso de Thomas Hobbes, segundo Voegelin, o acordo contratual (social) foi motivado por uma dessas paixões cegantes que estão sempre por trás de todas as opiniões equivocadas: o medo da morte. Diz Voegelin que, em Hobbes, essa paixão específica levou-o à criação de uma ordem artificial em que o summum bonum universal não mais era experimentado como uma realidade aglutinadora e ordenadora. Nas palavras do pensador alemão, “o desaparecimento do summum bonum (...), ou seja, a perda do realissimum universal, deixou os mundos de sonhos dos indivíduos como a única realidade (grifo nosso!)”.

Ora, quando a sociedade chega ao ponto de conceber a lei como a mera resultante de um contrato social que já parte de uma noção errônea de justiça — e não como a expressão da reta razão orientada ao bem comum, que, por sua vez, se ordena ao Bem absoluto —, o abismo está consumado. Pelo seguinte: num ambiente como este, a doxa foi entronizada como valor político supremo, a pretexto de defender a liberdade dos indivíduos, e a justiça já não é vista como o que é — um bem em si mesmo —, mas apenas como o contrapeso das vantagens e desvantagens pessoais dos indivíduos ou de grupos.

Voegelin repete várias vezes uma idéia que para nós é cara: a deturpação da obra platônica pelos modernos intérpretes joga por terra a maravilhosa análise de Platão sobre os fenômenos causadores da desintegração social. E diríamos mais: tal miopia, em grande parte instilada por pensadores liberais, impossibilitou para muitos intelectuais a visão das etapas progressivas de dissolução política em uma sociedade — dos primeiros passos até o ponto em que toda a realidade é absorvida pela doxa e a verdade passa a ser considerada, apenas, com relação ao que for socialmente aceito; é o momento crucial e dramático em que doxa ganha foros de verdade (aletheia). Aqui, a realidade se deslocou tanto do seu epicentro ôntico que a verdade tornou-se uma pura e simples impossibilidade, no âmbito político. Estamos, pois, no patamar em que, como disse Voegelin, somente os devaneios individuais terão o respeito social — sendo, por isso, a realidade válida em si, o valor dos valores, sempre a pretexto de defesa da liberdade. Estamos, pois, no mundo liberal por excelência.

Ocorre que o mesmo pluralismo que dá aos indivíduos a falsa sensação de liberdade é o veneno que agirá sobre o DNA de uma sociedade, corrompendo-a até o ponto em que nenhuma virtude humana se tornará possível. Ou melhor: a única virtude a ser defendida, com unhas e dentes, será a de opinar. “Opino, ‘ergo sum’”, poderia muito bem ser o lema do homo democraticus contemporâneo, forjado nas oficinas liberais dos séculos XVIII, XIX e XX.