segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Lições de Sócrates

Sócrates

Carlos Nougué
Ainda este mês de fevereiro, estarão disponíveis no site do Curso de História da Filosofia “Do Impulso Grego ao Abismo Moderno” duas das aulas que ministrarei sobre Sócrates e o socratismo.[1] Importante passo em nosso Curso: Sócrates é o albor da grande filosofia, aquela que avançará grandemente com Platão e sua “segunda navegação”, cujo porto é o supra-sensível, e se consolidará profundamente com Aristóteles e sua ciência do ente enquanto ente, a metafísica, cujo firme e essencial fundamento é a tese do ato e da potência.

Gostaria de já antecipar aqui, porém, algumas das mais importantes lições que nos legou Sócrates, não só com sua doutrina, mas com sua vida – doutrina e vida que, afinal, como se verá, se entrelaçam tão intimamente, que chega a ser difícil dissociá-las. Servir-nos-ão tais lições em diversos âmbitos, do filosófico ao da prhónēsis ou prudentia, mesmo do ângulo católico. Vejamo-las, pois, ainda que brevemente, ao modo de apontamentos.

1) Em tudo e de tudo, como dirá Aristóteles e como veremos detidamente nas referidas aulas, buscava Sócrates a definição, e esta é uma das vertentes metódicas que desembocarão, na Idade Média, na disputatio escolástica, cujo aperfeiçoamento final se dará com Santo Tomás de Aquino. Com efeito, como já se vê nos primeiros e “aporéticos” diálogos platônicos (Êutifron, Íon, Lísis, Cármides e os dois Hípias),[2] não dava trégua Sócrates ao intelecto em sua busca – já propriamente científica – de resolver todos os argumentos ou objeções possíveis contra o correto entendimento e definição de algo.[3] (A outra vertente, como já vimos em nosso Curso, é a fundada por Zenão de Eléia com sua reductio ad absurdum, forma de raciocínio que, como veremos detidamente no mesmo Curso, tanto servirá à metafísica aristotélico-tomista para defender os primeiros princípios da razão especulativa, os quais, por evidentes, não se podem provar.) E, de fato, a confutação e a maiêutica socráticas são a profícua semente que, após germinar no método científico de Aristóteles, florescerá abundante e vigorosamente nas muitas quaestiones disputatae do Aquinate (De veritate, De potentia, De anima, De malo, De virtutibus, De spiritualibus creaturis, De unione Verbi), em suas quaestiones de quolibet e, especialmente, em sua Suma Teológica.

2)
Antecipando o que se dirá na República de Platão acerca da democracia ou governo da maioria, fustiga diversas vezes Sócrates o fundamento daquele regime, com o qual, como vimos em nosso Curso, a sofística formava algo uno.[4] (E não se dará algo semelhante nos dias de hoje? O que é a ciência hoje, em especial as ciências humanas, senão o reino do relativismo – o reino da sofística – a serviço da democracia liberal, que, porém, sob o manto de governo da maioria, não passa de uma partidocracia a serviço de uma onipoderosa plutocracia?) Veja-se, a título de exemplo, o seguinte trecho do diálogo platônico Laques, na parte respeitante à educação dos filhos de Lisímaco e Melésias: “Sócrates – Por quê, Lisímaco? Vais aceitar o que a maioria de nós aprovar? Lisímaco – Mas o que se poderia fazer, Sócrates? Sócrates – Por acaso tu, Melésias, agirias de igual modo? E, se houvesse uma reunião para decidir acerca da preparação ginástica de teu filho, em que deve exercitar-se, levarias em conta a maioria de nós ou aquele que fosse precisamente formado e preparado por um bom professor de ginástica? Melésias – A este, logicamente, Sócrates. Sócrates – Levá-lo-ias mais em conta que a nós quatro? Melésias – Provavelmente. Sócrates – Suponho, então, que o que se há de julgar bem deve julgar-se segundo a ciência, e não segundo a maioria.”

3) O socrático “só sei que nada sei” pode traduzir-se, como o diz reiteradamente o mesmo Sócrates, no aparente paradoxo de que só é verdadeiramente sábio aquele que se sabe não-sábio. Como, porém, resolver de modo preciso este aparente paradoxo? Duplamente. Em primeiro: o não-saber socrático é verdadeiro saber diante do falso saber sofístico, porque destrói o monólogo de efeito dos sofistas e abre campo para a disputa propriamente científica.[5] Em segundo: só é sábio aquele que se sabe não-sábio diante do deus e que, por isso mesmo, segue os desígnios dele sem vacilar, mesmo em face da morte. Esta segunda resolução – em que não posso deixar de ver uma espécie remota de “figura” de Cristo e de seus mártires – não a alcança a grande maioria dos comentadores de Sócrates, como, por exemplo, Giovanni Reale. Que todavia é assim, o veremos extensamente em nosso Curso. Fiquemos aqui apenas com sua demonstração mais cabal. Com efeito, como negá-lo após ler os últimos parágrafos daquele mesmo e comovente diálogo Críton, nos quais Sócrates, tentando convencer a este seu amigo de que não deve fugir para escapar à morte injusta decretada pelo tribunal de Atenas, imagina que as leis lhe dirigem as seguintes palavras: “‘Antes, Sócrates, dá crédito a nós [as leis], que te formamos, e não tenhas em mais conta teus filhos nem tua vida nem nenhuma outra coisa do que ao justo, para que, quando chegares ao Hades [o mundo dos mortos], exponhas em teu favor todas estas razões diante dos que governam ali. Com efeito, nem aqui te parece a ti, nem a nenhum dos teus, que o fazer isto seja melhor nem mais justo nem mais pio, nem melhor quando chegares ali. Pois bem, se te vais agora [ou seja, se escapas agora da prisão], vais condenado injustamente não por nós, as leis, mas pelos homens. Mas, se te evadires tão ineptamente, devolvendo injustiça por injustiça e mal por mal, violando os acordos e os pactos feitos conosco [as leis] e fazendo mal aos que menos convém, a ti mesmo, a teus amigos, à pátria e a nós [as leis], irritar-nos-emos contigo enquanto viveres, e ali, no Hades, as leis nossas irmãs não te receberão com boa disposição, sabendo que na medida de tuas forças tentaste destruir-nos. Procura que Críton não te persuada mais que nós a fazer o que diz [ou seja, a fugir].’” Prossegue Sócrates: “Fica bem ciente, meu querido amigo Críton, de que é isto o que eu creio ouvir [da parte de Deus], [...] e o eco mesmo destas palavras retumba em mim e faz com que eu não possa ouvir outras. Fica ciente de que é isto o que eu penso agora e de que, se falares contrariamente a isto, falarás em vão. No entanto, se crês que podes conseguir algo [ou seja, para convencer-me a fugir], fala.” Responde Críton: “Não tenho nada que dizer, Sócrates.” E conclui Sócrates, encerrando o diálogo: “Eia, pois, Críton, ajamos neste sentido, dado que por aí nos guia o deus [ou seja, caminhe eu para a morte segundo o desígnio do deus e responda, assim, com um ato de justiça a uma condenação injusta].”[6] Não por nada é Sócrates quem dá, um pouco como reflexo distante do Noûs de Anaxágoras, a primeira prova mais consistente da existência de Deus, a mesma prova, em essência, que dará Santo Tomás definitivamente com sua quinta via na Suma Teológica.

4) Pois todo o comportamento de Sócrates diante do que conduz à sua mesma morte traz a última das lições que quis brevemente antecipar aqui. Com efeito, não bastaria, para o efeito querido pelo deus e pois por Sócrates, que este simplesmente morresse num ato de justiça como resposta a um ato injusto. Era preciso deixá-lo patente para o máximo de pessoas possível: e por isso não deixa o filósofo de dizer, alto e bom som, como se lê em toda a platônica Apologia de Sócrates, exatamente que responderia a algo injusto com um ato de justiça. E o diz claramente, enfaticamente, virilmente, apontando sem rebuço tanto os fautores remotos como os feitores diretos daquele ato injusto. Movidos por especialíssima graça do Espírito Santo, mostrarão algo semelhante os mártires quando, por exemplo, marcharem com o sorriso claro, enfático, viril – mas doce como a caridade – para a boca das feras. Por certo, mostrarão eles, de modo claro, enfático, viril e doce, que o fautor principal deste ato injusto, como de todos os atos injustos, não é senão o mal do pecado, e seu feitor a carne, o mundo e o demônio; e que não pode haver maior ato de justiça que o render a devida glória a Deus com o sacrifício pessoal.[7] Evidentemente, ainda não o podia exprimir assim Sócrates. Mas pôde fazê-lo, sim, em “figura” remota, e nada obsta a que para tal tivesse recebido do Espírito Santo uma especial graça atual.

Voltaremos talvez ao assunto.[8]

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[1] Para os alunos de nosso Curso: com estas duas aulas sobre Sócrates e o socratismo, teremos no mês de fevereiro, em vez das duas aulas de praxe, quatro ao todo.

[2] Ou seja, entre primeiros os diálogos platônicos, não são aporéticos o Críton e, a meu ver, o Protágoras. (Quanto à Apologia de Sócrates, só impropriamente se pode classificar entre os diálogos.) Ademais, por aporéticos que sejam, não o são em um sentido preciso: o mostrar que a sofística não é um verdadeiro saber nem conduz à sōphrosýnē (“sensatez” ou, segundo Demócrito, o Platão do Crátilo e Aristóteles, “temperança”, aquilo que se opõe a akolasía ou desenfreio, descomedimento).

[3] Com efeito, diz Sócrates a Laques, no diálogo homônimo, “o bom caçador deve prosseguir a perseguição e não deixá-la”, referindo-se precisamente à busca da definição, da verdade. Usará Platão metáfora semelhante em diversos outros lugares, como, por exemplo, Lísis, 218 c, e República, IV, 432 b.

[4] Um aluno me perguntou como podia a sofística ser algo uno com a democracia ateniense se, de fato, grande parte dos sofistas não era daquela pólis. Ora, antes de tudo, foi Protágoras – propriamente o fundador da sofística – um dos principais ideólogos da democracia “ilustrada” de Péricles. Ademais, mesmo quando estrangeiros, só em Atenas podiam os sofistas exercer plenamente sua atividade. Veja-se, para tal, a passagem do diálogo Hípias Maior (283 a-284 c) em que este sofista da Élide reconhece que os homens de Lacedemônia (Esparta) não lhe entregam os filhos para que os eduque nem, pois, lhe dão dinheiro. Diga-se algo semelhante de Górgias, que era de Leontinos, e dos demais sofistas não atenienses.

[5] Como veremos com precisão em nosso Curso, o diálogo socrático (e pois o platônico) nada que ver com o diálogo relativista ou ecumenista moderno, justamente porque aquele, como ciência, visava à verdade, enquanto este já parte da negação mesma da verdade. Como já se disse, o diálogo socrático é método de grande mestre.

[6] A distinção aristotélica entre ato de justiça e ato justo, e pois entre ato de injustiça e ato injusto, é, como se pode antever aqui e como se verá perfeitamente em nosso Curso, de fulcro socrático.

[7] Servem perfeitamente de ilustração a isto as últimas palavras de São Thomas Morus antes de ser decapitado. Pergunta-lhe, pouco mais ou menos, um sacerdote: “Não está com medo?” “Estou certo de que irei para o céu”, responde o mártir da unidade da Igreja. “Mas ter tal certeza não é tentar a Deus?”, insiste o sacerdote. Ao que responde o Santo: “Como poderia Deus não receber alguém que vai com tanta alegria para Ele?”

[8] Sirva este breve artigo de antecipação também de outro tema, que tratarei neste mesmo blog a pedido de alguns jovens leitores: a atitude que o católico deve ter diante de um mundo patentemente ou aparentemente perdido. Ou seja: deve o católico, ainda segundo as palavras daqueles jovens, ser pessimista e tornar-se quietista, sem atuar contra poderes aparentemente imbatíveis, ou deve armar-se de otimismo e engajar-se em lutas concretas para defender bastiões da Cristandade? Afinal, prosseguem, a postura pessimista não seria uma negação da virtude da esperança? Tal como formulada pelos referidos moços, a questão não tem resposta satisfatória. Reformulada, porém, pode tê-la; e o veremos num próximo artigo. Digam-se aqui apenas quatro coisas: primeira, a justeza de uma guerra ou combate requer adequação de meios; segunda, a palma da vitória de que fala São Paulo se conquista combatendo o bom combate, não necessariamente “vencendo” o bom combate; terceira, combate sempre terá, aqui, sentido analógico, como se verá; e, quarta, a virtude da esperança – virtude teologal infusa – não se ordena própria nem primariamente a coisas da terra, ainda as melhores, mas própria e ultimamente às coisas do Céu.
Adendo do Sidney: Não resisto a pôr aqui um trecho do famoso filme de Rossellini (Sócrates), em que este gigante discute com Hípias sobre o que é a beleza, e um outro trecho da mesma película no qual Rossellini faz menção à Apologia de Sócrates.